Fui roubado às 19hs

29/09/2014 às 22:34
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Na verdade, como você (e)leitor, sou roubado todos os dias.

Na verdade, como você (e)leitor, sou roubado todos os dias – pela corrupção que deixa a segurança pública à míngua. No final de semana, na saidinha do Banco do Brasil, às sete da noite, na Avenida Castro Alves, fui roubado por uma dupla de trapiches: dois caras que fazem a travessia entre a vida e morte. Esses dois não são como o barqueiro da mitologia que, por uma moeda, levaria você até a outra margem da continuação da existência. Por uma moeda, o trapiche te mata. Tive dois sinais de que aquilo ia ocorrer, quando passaram e pediram dois reais – deveria ter dado, para me livrar do encosto – e na entrada da agência, quando ambos adentraram a uma garagem ou algo assim, mais à frente. Nas duas intuições e avisos do Hélio – o taxista amigo de infância –, pensei que eram só cracudos e que estavam fumando uma pedra. Ledo engano, esperavam que eu saísse com o dinheiro. Dito e feito, tão logo saí do banco, coloquei as muletas no carro e me preparava para sentar, vi os dois vindo em minha direção – escolhi não dirigir. Há uns dez metros, um deles começou a correr e gritar de mão em riste: “perdeu, perdeu”. Ele deve assistir o Datena policialesco. Tive uma calma que não é minha, virei de lado, protegendo minha perna abalada pela paralisia, olhei bem sua cara de perverso, e me posicionei para não ficar nem de frente e nem de costas para ele. Levantei os braços, seguia-o todo o tempo com a visão lateral e falei, seguro e frio: “Calma, calma”. Nesse momento, ele colocou a mão no bolso da calça – pegou o celular e os 400 reais. Ainda foi irônico: “Calma?” Disse-lhe em seguida: “É! Calma”.

O cérebro humano realmente é incrível, porque nesse um segundo que durou a agressão à minha dignidade, pude ver que estava descalço e que havia me apontado uma arminha de dedo. Lembra-se quando éramos crianças e brincávamos de bandido e mocinho, apontando o indicador com o polegar para cima? Pois é, essa arminha de dedo não me assustaria se tivesse um metro e noventa ou se fosse bombado de academia e Jiu-Jitsu. Fui roubado – e graças ao “calma, calma” não fui agredido e nem esfaqueado –, mas fui roubado porque sou deficiente físico e é obvio que os trapiches sabiam. Viram minha impossibilidade de reação. Depois, pularam um portão do lado do INSS, abandonado, e me mandaram “vazar”. Duas vezes. Olhando de longe para mim. Em seguida, fui a um posto, como planejado, comprar charutos e cigarros. Pedi à moça um telefone para chamar pelo 190. O policial, muito novo e despreparado, não conhecia Marília – queria saber o bairro, o número da agência e outras inutilidades. Ainda me instruiu a ir à delegacia. Eu queria uma viatura para, junto, recuperar o que era meu: o número de telefone dos meus amigos e amigas. O celular? Comprei outro no dia seguinte, passeando pelo shopping e tomando chope, para esquecer dos trapiches.

Pela primeira vez, a polícia me deixou falando sozinho. Voltei para casa, desabafei com minha esposa, bebi umas quatro latinhas, fumei o charuto e fui à delegacia. Queria engrossar as estatísticas do governador, como cidadão prestando serviço cívico. Já na delegacia, vi a feitura de quatro boletins de ocorrência, de todo tipo. Ouvi no rádio que um tinha levado uma facada no pescoço. Nunca pensei que poderia ser meu caso. Também soube que na Zona Sul há uma única viatura fazendo rondas noturnas. Não espanta, certamente, a sensação de abando público que todos nós temos e sentimos. Enfim, uma hora e meia depois, sem fazer nada, voltei para casa. Com outra dívida em bandeira dois, do taxi. Portanto, sem nada receber do Estado Gendarme, faço desse texto o meu BO. Os números devidamente bloqueados na operadora são: (69) 8129-9830; (14) 98161-4349. O trapiche não levou os cartões porque estavam no outro bolso da calça, justamente, o lado que protegi ao ficar de lado para o agressor do ego. Como sei que nunca estou sozinho, agradeço por não ter havido nada de mais grave comigo. Por fim, também agradeço ao estatuto do desarmamento, porque, se estivesse armado, teria baleado os dois, quando vi de longe sua arminha de dedo. Ficaria me arrastando por tribunais o resto da vida e queimando meu patrimônio com advogados. Ficou a raiva, que os dias levarão, e o preconceito dos trapiches – jamais darei moedinhas no semáforo ou comida no portão de casa. Lembrei-me do que se dizia no passado: “temos de acirrar a luta de classes”. Os sujeitos me trouxeram essa consciência política de volta. Os dois trapiches já perdoei; mas, ao governador, nunca!

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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