O "moderno" Estado Medieval

18/10/2014 às 09:58
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Ainda me surpreendo, negativamente, com a Humanidade.

~~É quase impossível, mas me surpreendo negativamente com a Humanidade: no exemplo tomado, a barbárie ocidental viola o bom senso. O Reino Unido quer combater rebeldes do Estado Islâmico, e cidadãos britânicos, com uma lei de 1351 - do reinado do Rei Edward 3º. Philip Hollobone, parlamentar do partido governante Conservador, argumentou que “a velha lei de traição seria mais eficaz contra jihadistas do que estatutos de contra-terrorismo ”. Quer dizer: toda lei de terror é mais eficaz do que as limitações humanitárias do direito internacional? Contra o mal, temos o direito de usar o Mal-Maior? Em nome da civilização, promovemos a barbárie? Outro adeus à Convenção de Genebra? É pior do que aplicar a lei do “olho por olho, dente por dente”; pois, aqui, retroagimos em quase 700 anos. A exceção é para lá de medieval. Afinal, o que são sete séculos de um processo civilizatório que criou oficialmente – em nome da “Ilustração” e da emancipação humana, de 1789 – o próprio Estado de Exceção?
Se ainda não bastassem todos os recursos fatalistas do Terrorismo de Estado, baseados na exceção jurídica que se converte em regra de poder, ainda precisamos do antiterrorismo de Edward 3º. O grave atentado – além de tudo – viola a Constituição Inglesa que se iniciara com a Carta Magna, de 1251: “Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado de seus bens [...] senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país [...] Todos os direitos e liberdades, que concedemos e que reconhecemos enquanto for nosso o reino, serão igualmente reconhecidos por todos, clérigos e leigos, àqueles que deles dependem (Jorge Miranda. Textos Históricos do Direito Constitucional. Lisboa: Casa da Moeda, 1990). Este foi, por muito tempo, o Princípio da Legalidade.
O passo seguinte seria promover a insurgência de Torquemada, do Santo Ofício, da “morte sob a tortura que traz expiação à alma”. Pietro Verri  – discípulo de Beccaria: um dos criadores da humanização das penas –, no livro Observações Sobre a Tortura (Martins Fontes, 2000), apresentou uma narrativa das barbáries do poder, àquela altura já em estrita consonância com a “Razão do Estado”. Contudo, foi além, porque se trata de um livro que luta por um quádruplo: razão, verdade, justiça, dignidade. Não há razão sem verdade, nem justiça sem dignidade: não é digno de fé quem não age pela verdade; não tem razão quem não é justo.
Observações Sobre a Tortura é um livro representativo do iluminismo do século XVIII, e relata a aplicação da tortura quando se buscavam os responsáveis para a peste que assolou a Milão de 1630. É uma narração intensa, perturbadora, angustiante. Verri luta contra a barbárie praticada pela tortura, pelo uso da força bruta; denuncia o obscurantismo, a ignomínia, a estupidez e a crendice. De outro modo, é uma aposta na razão, no conhecimento, na inteligência, na arte do desvelamento. Verri cita Cícero (no discurso Pro Silla): “A tortura é dominada pela dor, governada pelo temperamento de cada um, tanto de espírito quanto de membros, ordenada pelo juiz, dobrada pela dor, corrompida pela esperança, debilitada pelo temor, de modo que entre tantas angústias não resta nenhum lugar para a verdade” (p. 113). É inquestionável a revolta do obscurantismo, como tormento indefectível da modernidade. Aliás, muito já se escreveu sobre isso, mas pouco foi feito. Basta-nos ver os presídios-masmorras brasileiros.
 

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

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