SOBRE O ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS

20/10/2014 às 14:47
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O presente artigo tem por escopo abordar a ausência de critério e direcionamento por parte do Poder Público em relação ao consumo de drogas em sentido lato, comportamento que tem como resíduo uma série de políticas públicas contraditórias e infrutíferas.

Centenas de artigos já foram escritos, dezenas de documentários realizados, além de outras centenas das mais variadas formas de manifestação foram produzidas pela sociedade de uma forma geral, todos apontando para os incontáveis malefícios, diretos ou indiretos, produzidos pelo consumo do álcool. Porquê, fica o questionamento eloquente, até hoje nenhuma medida realmente efetiva foi implementada por parte do Poder Público no sentido de abordar com seriedade o problema e implementar, com a mesma seriedade, soluções.
            No outro lado da moeda, com um número não inferior de artigos, documentários, depoimentos, filmes, etc., encontramos as drogas nominadas “ilícitas”, com a constatação surpreendente de que as vozes que pugnam pelo seu reduzido, e as vezes inexistente, potencial lesivo são mais eloquentes, abalizadas e razoáveis, do que as que, na oposição, repetem o mesmo discurso obsoleto e divorciado da quadra temporal em que hoje nos encontramos. Uma coisa é evidente, tais perfilhações positivas acerca das drogas “ilícitas” superam absurdamente, matemática e qualitativamente, as praticamente inaudíveis e raras opiniões profissionais em defesa do consumo de bebidas alcoólicas. Mas esse é apenas a ponta de um iceberg de contradições, corrupções, desinformações e, como sempre, preguiça mental que permeia o imaginário popular acerca do consumo de drogas pelos seres humanos. 
           Contudo, o presente artigo não é o instrumento adequado e competente para dissecar as notórias mazelas do nosso sistema político, bem como não se presta a ladrilhar as engrenagens do poder em busca de sinais, sempre abundantes, do óleo que o azeita. O nosso objetivo é tentar fazer um paralelo claro e imparcial acerca do tratamento díspar levado a termo pelo Poder Público em relação ao consumo de bebida alcoólica em comparação com as indigitadas drogas “ilícitas”, no afã de lançar uma luz calidoscópica, calcada em números e pesquisas, sobre o tema, visando alcançar soluções que sejam consentâneas e coerentes com a realidade posta. 
           Segundo o Relatório Global sobre Álcool e Saúde, divulgado recentemente pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mais da metade da população mundial faz uso do álcool, sendo que no Brasil o consumo total estimado é superior a média mundial, equivalendo a 8,7 litros por pessoa, quando a média mundial fica em torno de 6,2 litros. Estamos falando de 3,5 bilhões de pessoas consumindo uma das drogas mais poderosas e nocivas já engendradas pela inventividade humana: o álcool. Nos termos dos números apresentados pelo estudo acima referido, o álcool está relacionado ao absurdo número de 3,3 milhões de mortes todos os anos, sendo um dos fatores de risco de maior impacto para morbidade, incapacidade e mortalidade em todo o mundo. Apenas a título de exemplo, o uso da bomba atômica no Japão na segunda guerra mundial matou aproximadamente 300 mil pessoas em Hiroshima e Nagasaki, ou seja, o consumo do álcool no mundo equivale a detonação de duas bombas atômicas, todos os meses, ao redor do globo.
           Na outra ponta, o consumo drogas “ilícitas” no planeta, segundo dados do Relatório Mundial sobre Drogas da ONU (Organização das Nações Unidas), atinge 243 milhões de pessoas, sendo que deste contingente 27 milhões acabam desenvolvendo dependência ou tem distúrbios ligados ao seu uso. O mesmo relatório aponta, ainda, que no ano de 2012 cerca de 200 mil pessoas morreram em razão do consumo de tais substâncias.
           Todos os números foram extraídos de relatórios produzidos por instituições sérias e estruturadas, sendo, por si só, a personificação do abismo incongruente que existe em relação ao uso e malefícios causados pelo álcool em contraponto com o uso e malefícios das drogas “ilícitas”, levando-se em linha de consideração o fato de que mais pessoas morrem por mês em decorrência do álcool do que todas as pessoas que morrem por ano em virtude das drogas enquadradas como “ilícitas”.
           Porém, tais fatos e números não são os únicos com os quais se deve bater a perplexidade da população. A situação se torna ainda mais dramática e caótica quando começamos a tabelar os efeitos criminais da repressão, aparentemente aleatória, ao uso das drogas que receberam o rótulo de “ilícitas”.
           Em pesquisa concluída no final de 2012, o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) apurou que o número de presos condenados por tráfico de drogas teve um aumento de 30% entre os anos de 2010 e 2012, passando de 106.491 para 138.198 pessoas. No mesmo período houve um acréscimo de apenas 10% da massa carcerária em geral, denotando a evolução e o agravamento do tratamento dispensando ao tráfico de drogas e seus reflexos na falida política penitenciária em vigor no país. Estima-se que atualmente mais de 25% das insuficientes e parcas celas existentes no sistema penitenciário brasileiro estão ocupadas por “traficantes”. As aspas se justificam porque, entre outros fatores, são raros os casos em que os verdadeiros traficantes são presos, sendo que, em geral, são flagrados na ação delitiva apenas os “entregadores” das drogas, os quais são facilmente e rapidamente substituídos pelos verdadeiros donos do negócio, o que, por seu turno, não é suficiente para sequer abalar o fornecimento da droga para seus usuários. Outro dado alarmante, ligado diretamente ao tráfico, está refletido na diminuição da média de idade dos detentos que hoje gira em torno de 26 anos, quando era de 36 anos há três décadas atrás.
           Se de um lado temos a evolução da repressão ao consumo das drogas “ilícitas”, o que envolve gastos bilionários e pífios resultados práticos, de outro temos, também em uma curva sempre ascendente, os espantosos gastos com publicidade no intuito de fomentar o já estratosférico consumo de bebida alcoólica. No ranking dos dez maiores anunciantes do mercado, divulgado pela revista eletrônica meio&mensagem, figuram nada menos do que duas empresas que atuam no ramo de venda de bebidas alcoólicas: a gigante AMBEV com gastos de 643 milhões de reais e a Cervejaria Petrópolis com também nada modestos 374 milhões de reais.
           O resumo dos dados levantados indica uma situação no mínimo intrigante. Temos de um lado a droga mais devastadora de todos os tempos, contabilizando o assustador número de 3 milhões e 300 mil mortos todos os anos. Do outro lado estão todas as drogas aquinhoadas com o selo de “ilícitas”, as quais por seu turno ceifam aproximadamente 200 mil pessoas anualmente. A primeira não apenas conta com a cômoda e conveniente aceitação do Poder Público, mas também com sua cumplicidade legislativa ao permitir que continue a ser estimulado seu consumo através de campanhas publicitárias milionárias que invadem diariamente e incansavelmente os lares de toda a população através dos mais variados meios e formas de comunicação. As demais, por razões políticas não satisfatoriamente definidas, fazem parte de uma cruzada sanguinária e com ares de inquisição implementada pelo governo, sorvendo bilhões de reais nessa busca aparentemente sem muito resultado prático.
           Não pense o desavisado leitor que aqui se encontra um libelo a favor do consumo de drogas “ilícitas”, porque em verdade sou completamente avesso e filosoficamente contra o uso de qualquer tipo de droga, ilícita ou lícita. Da mesma forma como sou absolutamente contra qualquer tipo de raciocínio, conduta ou política que abra mão do bom senso. Não existe nenhum argumento minimamente razoável que venha dar suporte para o tratamento diametralmente diverso a que são submetidos duas categorias de substâncias com o mesmo potencial lesivo. Potencial esse, é bom que se assinale, que não é fruto de ilações ou divagações políticas ou acadêmicas, e sim de estudos sérios realizados por instituições renomadas. 
           O ser humano, vítima que é dos estímulos químicos necessários e naturais à sua existência, recorrentemente acaba por sucumbir a vícios e hábitos deletérios adquiridos ou desenvolvidos durante o decorrer de toda sua vida. Conduta que invariavelmente virá a ter reflexos extremamente desastrosos para si e para todos com os quais convive. Sempre foi assim e não se tem esperança de que, pelo menos em um horizonte próximo, tal realidade seja modificada.
           Tenho comigo que se o Poder Público entende que deve tutelar a vida de sua comunidade no sentido de definir qual droga é permitida e qual droga não é tolerada, deveria pautar seu discernimento como um pai zeloso e preocupado com a saúde e futuro de sua prole e não como um cafetão ganancioso e conivente. Pensar e agir unicamente movido por ideias e conceitos hipócritas e obsoletos, ou pela ambição egoísta e desenfreada, com certeza, não trará qualquer benefício para a sociedade, continuando a incrementar a distorção causada em todo o sistema. O que se espera, por fim e no mínimo, é que não apenas os detentores dos mandatos outorgados pelas urnas, mas toda a população de um modo geral, proceda de forma a justificar o signo que nos permitiu a distinção dentre as demais espécies, ou seja, usando a inteligência e seus consectários imanentes: bom senso, coerência e constância. Seria pedir muito?

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Sobre o autor
Gil Messias Fleming

Juiz de Direito de Entrância Especial, atualmente titular da 1ª Vara de Execuções Penais da Comarca de Campo Grande/MS. Pós-graduado em nove áreas do Direito.

Informações sobre o texto

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