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A questão da prisão perpétua na extradição

01/10/2002 às 00:00
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Introdução

A controvérsia acerca da comutação de pena de prisão perpétua em prisão limitada ao máximo fixado na legislação interna - isto é, trinta anos de reclusão - a ser exigida pelo Governo brasileiro ao do Estado requerente, como condição para a efetivação da entrega do extraditando, é a que se faz mais acirrada no atual momento institucional do Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, repousa ela na dúvida de se saber se constitui obstáculo à conclusão de uma extradição o fato do estar o extraditando sujeito, em função do crime que lhe é atribuído, à pena de prisão perpétua no Estado requerente; esta pena, como se sabe, é vedada pelas Constituições brasileiras

posteriores à de 1934, com exceção da Carta outorgada em 1937.

A primeira vez que o Supremo Tribunal enfrentou diretamente a questão foi no julgamento – em conjunto - das extradições requeridas contra Franz Paul Stangl.


Caso Franz Paul Stangl

Na ocasião, em função das acusações de co-autoria em crimes de homicídios em massa, Stangl encontrava-se sob a ameaça de sofrer a pena perpétua, nos termos dos pedidos de extradições feitos pelos Governos da Áustria, da Alemanha e da Polônia.

A defesa dativa do extraditando - em memorial assinado pelo então advogado Xavier de Albuquerque - alertou a Corte para este perigo, enfocando que "tanto a pena de morte quanto a de prisão perpétua são radicalmente incompatíveis como o regime constitucional brasileiro inaugurado depois da edição da lei que ainda regula a extradição - Decreto-lei n° 394/38 , e nas restrições que esta estipula se hão ambas de inserir."

O defensor de Franz Stangl, requereu, por conseguinte, à par de outros argumentos, o indeferimento das pretensões extradicionais, salientando que nenhum dos países interessados havia apresentado o prévio e necessário compromisso de comutação ou de redução da pena perpétua em prisão de prazo certo.

Nelson Hungria contra-atacou a linha de defesa - em parecer exarado a pedido do Governo Alemão - atestando que "não conheço acórdão algum do Supremo Tribunal Federal que haja impugnado extradição porque o extraditando estivesse sujeito, no país requerente, à prisão perpétua, devendo ser acentuado que tal pena é admitida em países que com maior freqüência têm solicitado ao Brasil a entrega de criminosos."

E arrematou, dizendo: "Se na Constituição se dispõe sobre a inadmissibilidade de certas penas, como a de morte e a de prisão perpétua, é bem de ver que tal dispositivo não tem, nem poderia ter o significado de intolerância para com essas penas ainda mesmo quando admitidas e tenham de ser aplicadas em país estrangeiro."

O Procurador-Geral da República que oficiou no feito - Haroldo Valladão - abordou a temática com raciocínio similar ao de Hungria, isto é, sustentando que o direito extradicional brasileiro, ao determinar a comutação de determinadas penas como condição de entrega de extraditando, baseou-se "num princípio liberal e humanitário (Briggs), sempre independente e, não raro, acima do nosso direito positivo, constitucional ou não."

Nesta perspectiva, concluía o Procurador-Geral que a pleiteada comutação de penas, em "julgamento de caso concreto, além de não ter fundamento jurídico, consistiria, da parte do Brasil, surpreender todos os Estados com os quais mantém relações internacionais."

Relatando o processo, o Ministro Victor Nunes resumiu bem esses argumentos: "O memorial da Alemanha, bem como os pareceres do Procurador-Geral e do Ministro Nelson Hungria, sustentam que a comutação de pena, como exigência do direito extradicional, não está vinculada às vedações constitucionais. É norma autônoma, inspirada em outras razões, tanto que a Constituição de 1937 admitia a pena de morte, em certos casos, e a nossa Lei de Extradição, decretada na sua vigência, determinou a comutação."

Apesar do que foi exposto por Hungria e Valladão, o Tribunal - naquela oportunidade – não abraçou a tese de que o direito extradicional pudesse ser de todo independente do direito constitucional, ao dispor, unicamente, sobre o compromisso de comutação de pena de morte ou corporal, e nele não incluir a sanção perpétua.

Conforme as palavras do Ministro Victor Nunes Leal: "Não podemos, data venia, aceitar esse ponto de vista sem reserva. É certo que o direito extradicional, ao dispor de tal modo, se inspira no sentimento de umanidade, mas também não é por outro motivo que o direito constitucional renega tais ou quais penalidades: ‘As penas perpétuas... vão-se limitando aos chamados incorrigíveis, como supostos refratários a todo tratamento’, observa Roberto Lyra, citando, a seguir, esta conclusão do Congresso Penitenciário de Washington: ‘Nenhum indivíduo, quaisquer que sejam sua idade e antecedentes, deve ser considerado incapaz de emenda’."

Entretanto, considerou-se que, apesar do compromisso de comutação da pena perpétua não figurar, previamente, em nenhum dos pedidos de extradição, o mesmo poderia ser suprido pelo Estado interessado, quando da efetivação da entrega do extraditando.

Em síntese, o Caso Stangl ficou, no ponto, ementado da seguinte forma :

a) a extradição está condicionada à vedação constitucional de certas penas, como a prisão perpétua, embora haja controvérsia a respeito, especialmente quanto às vedações da lei penal ordinária. (...)

b) o compromisso de comutação da pena deve constar do pedido, mas pode ser prestado pelo Estado requerente antes da entrega do extraditando.

A decisão final dessa extradição serviu de precedente para os casos que se seguiram e que envolveram a questão da comutação de pena perpétua.


Caso Russel Wayne

Apesar da sedimentada linha iniciada no Caso Stangl, quando do julgamento do pedido de captura e entrega do americano Russel Wayne Weisse - Extradição n° 426 - o Supremo Tribunal alterou seu posicionamento, não mais exigindo a comutação da pena perpétua, como condição para a efetivação da entrega do extraditando.

A ação havia sido solicitada pelo Governo dos Estados Unidos, uma vez que o extraditando fugira da Califórnia, onde cumpria pena de prisão perpétua, em razão de condenação por homicídio e outros crimes.

O Relator da extradição - Ministro Rafael Mayer - acolhera o parecer da Procuradoria da República, donde se destacava: "Estando preenchidos os mais pressupostos normativos que autorizam a extradição, somos pelo deferimento do pedido, com a ressalva de que a pena por prisão perpétua seja convertida em restritiva da liberdade, não superior a 30 anos, na conformidade do artigo 75 do Código Penal (Lei n° 7.209/84), presente a condição inserta no inciso III, do artigo 91, do Estatuto do Estrangeiro e a jurisprudência desta Suprema Corte, consolidada nos pedidos de Extradição n°s. 399 e 417."

Salientava o Ministro Rafael Mayer da necessidade da reserva, porque "repugna ao ordenamento jurídico brasileiro a aplicação, em tempo de paz, da pena de morte, bem assim de prisão perpétua, ambas as sanções tratadas geralmente, ‘pari passu’, nas legislações que as adotam, e na doutrina como integrantes da mesma categoria de penas eliminatórias. Trata-se de um reflexo, na aplicação das leis ou dos tratados, da supremacia do valor consagrado na proibição constitucional do § 11 do art. 153, não sendo admissível que se faça a entrega de alguém, submetido à sua jurisdição, para sofrer pena que no País não se aplicaria, por absoluta incompatibilidade com os seus preceitos."

Porém, na seqüência dos votos, o Ministro Francisco Rezek revolucionou o trato da questão, criticando, inicialmente, a Procuradoria da República, por pregar a "extensão transnacional" da vedação constitucional da pena de morte ou da prisão perpétua.

A sua linha de argumento foi bastante semelhante à utilizada por Haroldo Valladão e Nelson Hungria no Caso Stangl, qual seja, a da impossibilidade de imposição do direito positivo brasileiro, inclusive o constitucional, às outras ordens jurídicas, via processo de extradição.

Decidiu-se, na Extradição, que não cabe deferir o pedido condicionando-o à comutação da pena privativa de liberdade, porquanto ao caso não se aplica ‘a pena corporal ou de morte’, como preceitua o art. 91, inc. III, do Estatuto do Estrangeiro. Inteligência do art.153, § 11, da Constituição. A prisão perpétua é suscetível de abrandamento, ora pelo indulto, ora pelo livramento condicional, como ocorre na Alemanha e na Itália. Não se justifica a reserva preconizada no parecer da douta Procuradoria-Geral da República. Decisão tomada por maioria de votos, nesse particular."

O mesmo entendimento jurisprudencial foi reproduzido nas extradições n° 439, Relator Ministro Djaci Falcão; n° 469, Relator Ministro Francisco Rezek; n° 472, Relator Ministro Moreira Alves; n.° 486, Relator Ministro Octávio Gallotti; n.° 507, Relator para o acórdão Ministro Ilmar Galvão; n.° 598, Relator Ministro Paulo Brossard; e n° 599, Relator Ministro Néri da Silveira.


A Questão da prisão perpétua na extradição da atualidade

Em que pesem os diversos julgados reafirmando a postura de não restringir-se a entrega do extraditando em havendo a previsão de cominação ou execução da pena perpétua, a verdade é que, nem por isto, a questão encontra-se hoje pacificada.

Em síntese, o que se pode constatar é que a Corte Suprema encontra-se dividida sobre o mérito destas questões - apesar de pendente para a manutenção da orientação do descabimento de qualquer ressalva quando à pena de prisão perpétua em sede de extradição - e que a tendência do direito extradicional, no ponto, encontra-se jungida à composição futura do Plenário do Supremo Tribunal Federal, nele considerando o Ministro Nelson Jobim, que recentemente assumiu a vaga deixada pelo Ministro Francisco Rezek.

Ementa mais atual sobre a matéria em estudo:

"Extradição. Promessa de reciprocidade: República Federal da Alemanha. Crime de homicídio. Prisão perpétua. (...) 3. A cominação de prisão perpétua ao delito de homicídio, prevista em legislação penal estrangeira, não inviabiliza a extradição, consoante reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal. 4. Pedido de extradição deferido."

A detração extradicional

Em que pese o predomínio jurisprudencial, por mais de uma década, da tese contrária, que o compromisso de comutação da prisão perpétua é medida que se impõe, por força da regra inserta no inciso XLVII, letra "b", do artigo 5°, da Carta Política, e também pela própria disposição dos textos legais e convencionais.

Com efeito, dois pontos podem ser discriminados como sendo incisivos para a manutenção da jurisprudência:

O primeiro deles, sustenta que não se pode emprestar eficácia transnacional aos direitos expressos na nossa Constituição da República.

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"A extradição é cooperação internacional para a repressão penal e (...) há de ser excluída dessa cooperação a aplicação de penas que entenderam ofensivas à dignidade humana ou à própria função da pena como concebida pela Constituição, que, por isso, expressamente, foi vedada."

O segundo argumento que sustenta a linha dominante é de base infraconstitucional: a Lei n° 6.815/80, no seu artigo 91 inciso III, e a grande maioria dos tratados em vigor só impõem, aos Estados interessados, o compromisso de comutação de pena corporal ou de morte.

Dessa maneira e diante da proposital omissão do legislador, entende a maioria dos ministros que não é cabível a imposição da pena perpétua em sede extradicional; ou, nos termos utilizados pelo Ministro Moreira Alves, "a não ser, pois, que a lei brasileira ou os tratados relativos à extradição estabeleçam a restrição - como ocorre quanto à pena de morte e às contravenções penais - não podemos impô-la."

E pode-se agregar ao final, um argumento ainda inédito.

Partindo da premissa de que o processo de extradição não tem segmento sem que o extraditando seja preso e colocado à disposição da Corte; adicionando o fato de que – em média - o julgamento de um pedido demora cerca de sete meses e meio; somando-se a isto a norma cogente que determina a detração - na sentença penal estrangeira - do tempo em que esteve preso o extraditando; e, finalmente, levando-se em conta a própria finitude humana, conclui se que - sob pena de violação do preceito em questão - é forçoso que se exija do Estado requerente o compromisso de não aplicar a pena perpétua, computando-se, ainda, na respectiva prisão por prazo certo, o período de tempo em que o extraditando esteve preso à disposição do Supremo Tribunal.

De todo pertinente, em suma, a observação feita por Francisco Rezek, ao tempo da lei anterior, no seguinte sentido: "Muitas são as espécies em que a incidência do art. 98 demanda análise aprofundada, e comporta debate somente realizável no âmbito do Tribunal. Não é certo, por exemplo, que a detração imposta pelo inciso II refoge sabidamente à prática processual de países que figuram entre nossos mais assíduos clientes em matéria extraditória"


Conclusão

Em conclusão, devido à obrigatoriedade da detração da prisão provisória na pena definitiva - exigível do Estado requerente no processo de extradição -, somado à outros argumentos de índole constitucional, sustenta-se que a sanção de prisão perpétua - em tese ou em concreto - encontra-se excluída de nosso direito extradicional, competindo, dessa forma, ao Supremo Tribunal, o dever de condicionar a entrega do extraditando ao compromisso de comutação em questão.


Bibliografia

I. Constituição da república Federativa do Brasil

II.Revistas Pesquisadas

1.Revista de Jurisprudência Do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

2. Revista dos Tribunais

3. Revista AJURIS

4. Revista do Superior Tribunal de Justiça - Brasília

5. Revista de Informação Legislativa

6. Revista Jurídica

III. Código Penal

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Sobre o autor
Theo Bastos Barcellos

acadêmico de Direito da Universidade Luterana do Brasil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARCELLOS, Theo Bastos. A questão da prisão perpétua na extradição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3314. Acesso em: 25 abr. 2024.

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