Introdução
A família brasileira, conceitualmente falando, foi diretamente influenciada pelo direito canônico, em consequência da colonização portuguesa, sendo que, inicialmente, o casamento religioso era o único caminho para a constituição da chamada “família legitima”, organizada e totalmente subordinada à autoridade paterna.
Podemos dizer que durante décadas, vários dogmas e conceitos foram adotados de forma rígida e pouco modificaram através das gerações.
Apenas recentemente, em função das grandes transformações históricas, culturais e sociais, ocorridas principalmente pós-revolução industrial, o direito de família e consequentemente o direito das sucessões, passaram a tecer novos rumos, adaptados à realidade e a problemática social surgidas a partir destas transformações.
A evolução do conceito de paternidade na família brasileira
Segundo a sociologia moderna a família é um conjunto de pessoas que se encontram unido por laços de afinidade ou consanguíneos.
Para Maria Helena Diniz [1]:
“Família no sentido amplíssimo, seria aquela em que os indivíduos estão ligados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade. Já a acepção lato sensu do vocábulo refere-se aquela formada além dos cônjuges ou companheiros, e de seus filhos, abrange os parentes da linha reta ou colateral, bem como os afins (parentes do outro cônjuge ou companheiro). Por fim, no sentido restrito restringe família, a comunidade formada pelos pais (matrimônio ou união estável) e da filiação” .
Com as profundas transformações da sociedade, surge um novo modelo de instituição familiar, restringindo a autoridade dos pais e posteriormente proclamando a igualdade absoluta entre os cônjuges e entre os filhos.
Neste sentido, o direito de família inicialmente sofreu forte influencia do direito romano, especialmente da família canônica, consolidando-se com a promulgação do Código Civil de 1916, seguindo esta linha até as grandes inovações trazidas com a Constituição Federal de 1988, principalmente quanto a função social da família no direito e na sociedade brasileira.
Merece especial destaque, a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, no artigo 358 do código civil de 1916 proibia o reconhecimento de filhos adulterinos e incestuosos e somente o filhos naturais poderiam ser reconhecidos, embora apenas os legitimados pelo casamento poderiam ser considerados legítimos.
A respeito do tema leciona Luiz Edson Fachin [2]:
“O preceito adotado pelo Código Civil de 1916 tratava de um sistema fechado que abordava apenas disposições que favoreciam à classe dominante. Desta forma, não foram codificados institutos que a sociedade da época não queria ver disciplinados, como o modo de apropriação de bens e a vida em comunhão”.
Com o reconhecimento de uma nova ordem de valores, estabelecida pela Carta Magna de 1988, favoreceu ao surgimento de outros horizontes ao instituto jurídico da família que , impulsionaram a aprovação do Código civil de 2002, convocando os pais para uma nova forma de exercer a paternidade, onde os vínculos de afeto se sobrepõe á verdade biológica.
No mesmo sentido, ensina Paulo Luiz Netto Lôbo [3]:
“ (...) A família atual não é mais, exclusivamente, a biológica. A origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais. (...) No âmbito jurídico, encerrou definitivamente o seu ciclo após o advento da Constituição Federal de 1988. O modelo científico é inadequado, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, uma vez que outros são valores que passaram a dominar esse campo das relações humanas” .
Paternidade biológica x paternidade afetiva
Ao longo das últimas décadas, a partir das adaptações socioculturais, em uma sociedade dinâmica e complexa com a brasileira, propiciaram o surgimento de novas normas que se alteraram e, gradativamente, deram novas feições ao direito de família que acabou afastando a ideia da família como pressuposto do casamento.
Paralelamente, a evolução da medicina, que elaborou testes capazes de evidenciar com índices altíssimos de acertos a paternidade biológica, o paradigma relacionado à investigação da filiação biológica deixou de ser um problema.
Entretanto, após a promulgação da constituição Federal de 1988, a problemática que envolve a paternidade, que antes parecia definitivamente solucionada, voltou a ser tema de debates, uma vez que deixou de relacionar-se especificamente a questão biológica e introduziu outro sistema de valores que rivalizavam com os fatores consanguíneos.
Prevê o artigo 227, parágrafo 6°, da Constituição Federal:
“Os filhos, havidos ou não na relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
No mesmo sentido, o art. 1.596 do Código Civil em vigor, apresenta a mesma redação, consagrando o princípio da igualdade entre os filhos e confirmando a influencia constitucional na codificação civil.
Muito embora coexistam diferentes correntes doutrinarias sobre a conceituação de paternidade, fato pacifico é que não se pode desprezar a relação sanguínea, principal fonte dos demais direitos inerentes à filiação, como o direito ao nome, sobrenome, reconhecimento cartorial, bem como os efeitos patrimoniais relativos a sucessão.
Todavia, o reconhecimento da paternidade deve ser de forma responsável, restando ao direito tutelar os fatos ocorridos geradores de conflitos supervenientes das inúmeras formas de relação entre pais e filhos.
Neste sentido, prevê a Constituição Federal, em seu artigo 226, § 7º:
“Fundados nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.
Paternidade biológica
Antes da Constituição Federal de 1988, bastava que o filho nascesse durante a vigência do casamento de seus pais e, assim, seria considerado legítimo. Porém, os filhos havidos fora do matrimônio, eram bastardos, adulterinos, sem direitos juridicamente reconhecidos e o pai não tinha obrigação no seu sustendo.
Conforme redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15.01.1919, em seu artigo 38:
“ Presumem-se concebidos na constância do casamento: I - os filhos nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal (art. 339); II - os nascidos dentro nos 300 (trezentos) dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite, ou anulação”.
Esse modelo de interpretação tornou-se, de certa forma, obsoleto, em virtude da possibilidade de certeza da filiação, trazida pela evolução científica, com a possibilidade de exame do exame de DNA que revela a verdade biológica, através da relação sanguínea.
A paternidade socioafetiva
Trata-se de conceito jurídico que visa ao estabelecimento da relação de paternidade com base em outros fatos além da relação genética, fundamentados nos laços afetivos constituídos pela convivência entre pais e filhos, distinguindo-se, portanto, a figura do pai e do genitor.
No mesmo sentido é o entendimento do professor Rolf Hanssen Madaleno [4]:
“A paternidade tem um significado mais profundo do que a verdade biológica, onde o zelo, o amor paterno e a natural dedicação ao filho revelam uma verdade afetiva, uma paternidade que vai sendo construída pelo livre desejo de atuar em interação paterno-filial, formando verdadeiros laços de afeto que nem sempre estão presentes na filiação biológica, até porque, a paternidade real não é biológica, e sim cultural, fruto dos vínculos e das relações de sentimento que vão sendo cultivados durante a convivência com a criança”.
A renovação no instituto da paternidade, fundamentados principalmente a dignidade da pessoa humana trouxe consigo novos paradigmas justificados nos laços de recíprocos entre pais e filhos, como elemento principal caracterizador da paternidade em detrimento do fator biológico.
A paternidade socioafetiva e o direito de herança
No sistema jurídico pátrio, a filiação era estabelecida pela presunção, adotada pelo Código Civil de 1916, como efeito direto do casamento. Por consequência, muitas vezes a paternidade não correspondia com a realidade “genética”; em contrapartida, os filhos “verdadeiros” advindos de relações fora do casamento estavam impedidos de ser reconhecidos e nem mesmo buscar ou provar este vinculo biológico.
Hoje, é indiscutível o direito do filho de conhecer sua origem genética, entretanto, não pode contrariar a paternidade socioafetiva já existente e consolidada para assegurar, como único e principal objetivo, ao direito da herança deixada pelo pretenso genitor.
Segundo o entendimento de Paulo Lobo [5]:
“A investigação da paternidade só é cabível quando não houver paternidade, nunca para desfazê-la, e a jurisprudência se manifesta não permitindo que a investigação da paternidade seja utilizada em busca apenas do direito ao patrimônio, em virtude da filiação biológica, pois prevalece no ordenamento jurídico a verdade social”.
Quanto aos efeitos jurídicos da socioafetividade paterna, são idênticos aos efeitos gerados pela adoção, conforme disposição no artigo 41 do ECA - Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990:
“A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais”.
Considerações Finais
Diante da evolução do instituto jurídico da família e da sociedade como um todo, a figura e o conceito de paternidade dentro desta nova concepção de família, passou por profundas modificações.
O direito é um produto social, deve, portanto interagir com a sociedade, adequar-se aos novos fatos sociais, para então, acompanhar e regrar a conduta dos indivíduos, sob pena de se transformar em letra morta, inaplicável, sem qualquer fundamento de existência.
Com essa nova interpretação Constitucional, estabelecida a igualdade de filiação e o reconhecimento de várias formas de interpretar a paternidade, trouxe consigo novos conflitos decorrentes do binômio paternidade afetiva versus paternidade biológica, que carecem de legislação específica, tanto para regular o direito de família como em suas repercussões na esfera patrimonial.
Para solucionar as lacunas existentes a partir destas transformações, o ordenamento jurídico brasileiro preceitua que o magistrado deve recorrer à utilização da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito.
No caso especifico exposto neste singelo trabalho, a questão da paternidade, envolve muito mais que um mero registro documental, adoção de um sobrenome ou a partilha de bens de uma herança, envolve a valoração de princípios constitucionalmente protegidos, levando em consideração o afeto como elemento formador da família e preservando os interesses da criança como forma de efetivar a dignidade da pessoa humana, principio norteador de todo ordenamento jurídico brasileiro.
Referências:
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito de Família: 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014;
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das sucessões: 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012;
(DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: Direito de Família. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2008;
LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao Estado de Filiação e Direito à Origem Genética: uma distinção necessária. Revista CEJ, Brasília, n. 27, out/dez. 2004;
FACHIN, Luiz Edson. Da Paternidade: Relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996;
COLEN, Dalvan Charbaje. Paternidade socioafetiva e o direito de herança. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 fev. 2013. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.42201&seo=1>. Acesso em: 09 nov. 2014;
Notas:
[1] (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: Direito de Família. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 5. p. 9)
[2] FACHINI, Luiz Edson, Averiguação Oficiosa e investigação de paternidade. Curitiba: Gênesis, 1995.
[3] LOBO, Paulo Luiz Netto. A paternidade socioafetiva e a verdade real. Revista CEJ, Brasília, n. 34, pp. 15-21, jul./set. 2006.
[4] MADALENO. Rolf Hanssen Madaleno, Novas Perspectivas no Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
[5] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.510.