A constitucionalização da proteção do meio ambiente na Constituição Federal de 1988 e o seu significado para o ordenamento jurídico constitucional

25/11/2014 às 22:34
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O presente artigo aborda o processo constituinte que resultou no texto que confere conteúdo ao art. 225 da Constituição Federal de 1988 e a sua importância para o ordenamento jurídico constitucional.

O processo constituinte que resultou na promulgação da Constituição de 1988 talvez tenha sido um dos raros momentos de participação popular na tomada de decisões políticas na história democrática do Brasil. Dele tomaram parte pessoas de diversos setores da sociedade e que professavam as mais diversas ideologias.

Como destaca Cirne,

Metalúrgicos, mulheres, índios, trabalhadores rurais, professores, servidores públicos, advogados, dentre outros protagonistas, ‘[...] trabalharam, pressionaram, gritaram, choraram, cantaram, e negociaram com parlamentares detalhes nunca antes discutidos num parlamento brasileiros’ (CIRNE, 2013, p. 07).

Nas palavras de Rattes (2009, p. 26), “O país e sua sociedade, de repente, estavam ali, desnudados, contraditórios, grandiosos e problemáticos, em toda a sua verdade.”

Dentre os atores desse processo constituinte apareceram com destaque os ecologistas, os quais contribuíram sobremaneira para a elaboração do capítulo da Constituição sobre o meio ambiente.

Conforme acentua Cirne (2013, p. 08), no que se refere ao tema ambiental, “os parlamentares da Subcomissão de Saúde, Previdência e do Meio Ambiente viajaram pelo Brasil para avaliar os problemas de perto e ter a chance de conversar com os seus principais conhecedores”.

Por outro lado, inúmeras foram as propostas de iniciativa popular encaminhadas aos constituintes com sugestões sobre o tema. De acordo com Cirne (2013, p. 08), “mais de 80 emendas populares foram recebidas, dentre as quais se encontravam propostas em defesa do meio ambiente e contrárias às armas nucleares.”

Havia na composição da Assembleia Nacional Constituinte uma frente parlamentar, chamada Frente Verde, que estava em constante diálogo com os movimentos sociais, cuja pauta era a proteção ambiental. Tratava-se de um grupo de parlamentares de diversas legendas e com posições ideológicas até mesmo antagônicas, “mas que agiam em conjunto no intuito de viabilizar as propostas de proteção do ambiental” (CIRNE, 2013, p. 09).

Segundo Cirne (2013, p. 09), quando se aproximou o momento em que seria votado o capítulo sobre o meio ambiente, alguns parlamentares receberam uma enxurrada de telegramas, comunicados e documentos defendendo a aprovação do texto apresentado pela Comissão de Sistematização.

Certamente, se não fosse essa participação e pressão popular, o capítulo da Constituição relativo ao meio ambiente não seria objeto de elogios tão enfáticos, como o de que “o capítulo do meio ambiente da Constituição de 1988 é um dos mais avançados e modernos do constitucionalismo mundial” (BULOS, 2009, p. 1324).

E isto porque, havia também na Assembleia Nacional Constituinte um movimento contrário às propostas de defesa do meio ambiente, representado pelo lobby das grandes empresas nacionais e multinacionais. Como destaca Cirne (2013, p. 09), “a pressão popular tentava evitar as emendas propostas pelo Centrão que descaracterizariam o projeto construído pela Frente Verdade.”

Nesse contexto, pode-se dizer que o processo de construção do texto constitucional, especialmente do relativo ao meio ambiente, foi um processo plural, que conjugou a participação popular com a representação política, e é exatamente desse processo democrático que a Constituição Federal retira a sua legitimidade.

E nesse processo de construção do capítulo relativo ao meio ambiente, diversos temas foram objeto de acirrado debate, sendo digno de nota a discussão acerca da abrangência e amplitude do texto constitucional. A pergunta que os constituintes se faziam à época era seguinte: que temas seriam materialmente constitucionais na defesa do meio ambiente? Por detrás dessa pergunta, há um tema muito caro aos estudiosos do Direito, que é a tentativa de diferenciação entre a estrutura formal e a material da Constituição.

Há na doutrina quem faça a diferenciação entre normas constitucionais formais e normas constitucionais materiais. No entanto, é de se alertar que não existe um critério seguro e objetivo que nos permita identificar, a priori e com validade absoluta, o conteúdo essencial ou a matéria própria de toda norma constitucional.

Para quem admite essa diferenciação, seriam essencialmente constitucionais as normas relativas às atribuições, estrutura e competência dos órgãos do Estado e ao status do cidadão frente ao Estado.

Medina (2011, p. 02) expõe essa dicotomia da seguinte forma:

As normas constitucionais superiores – ou normas constitucionais “fortes”, nas palavras de Maunz, citado por Gomes Canotilho – comporiam, assim, a constituição material, ou as normas tipicamente constitucionais, que são aquelas relativas à estrutura, atribuições e competências dos órgãos supremos do Estado, sobre as instituições fundamentais do Estado e sobre a posição do cidadão no Estado (cf. Otto Bachof, Normas constitucionais inconstitucionais?, p. 39; José Joaquim Gomes Canotilho, ob. cit., p. 70). Já a Constituição em sentido formal, sob esse prisma, é “qualificada essencialmente através de características formais” (cf. Otto Bachof, ob. cit., p. 39).

No Brasil, a Constituição de 1824, em seu art. 178, dispôs que “É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos e aos direitos políticos e individuaes dos cidadãos; tudo o que não é constitucional póde ser alterado sem as formalidades referidas pelas legislaturas ordinárias”. Assim, a Constituição política do Império do Brasil admitiu, expressamente, a diferenciação aqui discutida.

Uma questão que está subjacente a essa diferenciação diz respeito à discussão acerca da possibilidade de existência de normas constitucionais inconstitucionais, ou seja, se uma norma formalmente constitucional pode ser contrária a um preceito fundamental da Constituição, e se, por isso, é possível a existência de normas “inconstitucionais” ou “inválidas” dentro da Constituição.

Essa discussão surgiu a propósito da obra do professor alemão Otto Bachof, cujo título é “Normas constitucionais inconstitucionais?” O professor Lênio Luiz Streck (2009, p. 03), após descrever as motivações históricas que levaram o professor alemão a escrever essa obra, afirma que


a tese de Bachof pode ser enquadrada diante da seguinte pergunta: haveria a possibilidade de dizer que normas constitucionais possam ser inconstitucionais, por contrariar algum tipo de essência jurídica absoluta, ou mesmo o próprio sistema interno do texto constitucional, de modo a permitir uma alteração significativa de seu conteúdo? Quer dizer: tratava-se da (tentativa de) afirmação de um direito para além da própria lei fundamental que permitisse algo como uma “Constituição verdadeiramente alemã”.

Na doutrina alemã, há autores que admitem essa possibilidade, como Krüger e Giese, para quem existiriam normas constitucionais superiores (as quais, segundo Giese, seriam o “conteúdo de princípio da Constituição”) e inferiores, sendo que estas seriam inválidas se contrariassem as normas constitucionais superiores (MEDINA, 2011, p. 03).

A tese de Bachof não vingou. De acordo com José Afonso da Silva (2002, p. 45), a doutrina que defende a possibilidade de existência de normas “inconstitucionais” na Constituição tem se enfraquecido ante a integração de novas finalidades, pelo Estado, o que ampliou o leque de normas fundamentais de organização estatal.

O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se pronunciar sobre essa questão e decidiu que o reconhecimento de que há certa hierarquia interna entre as normas constitucionais pode ter valor argumentativo, mas não autoriza a declaração de inconstitucionalidade de regra formalmente inserida no corpo da Constituição pelo Poder Constituinte originário (cf. STF, ADI 815, rel. Min. Moreira Alves, Pleno, j. 28.03.1996).

Em verdade, essa discussão é bastante ultrapassada, pois hoje sabemos que o conteúdo material de uma Constituição está sempre aberto para ser reinventado pela sociedade, no decorrer de sua experiência histórica, e o que ontem poderia ser visto como matéria “não essencialmente constitucional”, na atualidade, poderá ser visto como matéria essencialmente constitucional. Afinal de contas, “ao que saibamos, não existe nada que, por natureza, possa reputar-se constitucional e, assim valer como critério para se constitucionalizar o que quer que seja”, como ensina Inocêncio Mártires Coelho (2009, p. 46).

Como assinala Cirne (2013, p.22),


Os princípios insertos no texto constitucional (formalmente) são essenciais para a possibilidade de reinvenção material de seu conteúdo. Exatamente por conta disso é que essa discussão entre o que é “de fato constitucional” remete a uma dicotomia entre constituição material e formal que não merece ser privilegiada, já que estes conceitos estão imbricados.

Nesse contexto, avaliar se o art. 225 da Constituição Federal ostenta conteúdo essencialmente material ou formal é tarefa destituída de sentido, uma vez que a Constituição formal é, também, a Constituição material, a que serve de expressão, de sorte que os elementos material e formal são indissociáveis, apresentando-se como facetas de uma mesma moeda.

Outro tema que foi objeto de intenso debate no processo constituinte de 1987-88 está relacionado ao tamanho do texto constitucional relativo ao meio ambiente. Por trás desse debate, estava a definição quanto ao formato da Constituição brasileira, se sintética ou analítica.

Os constituintes que defendiam um texto abrangente, com detalhes, o faziam com o argumento de que isso tornaria possível a sua concretização, pois o que se tinha até aquele momento no país era uma descrença acentuada quanto ao cumprimento de nossas leis sobre esse tema. Além disso, temiam que, acaso alguns temas não fossem contemplados no texto constitucional, nem sequer se legislasse, ordinariamente, sobre esses temas.

Por certo, os defensores de uma Constituição detalhada sobre a proteção do meio ambiente viam na adoção desse modelo de Constituição, além da possibilidade de se conferir maior eficácia jurídica ao texto constitucional, um instrumento que serviria de “barreira para a desregulamentação e alteração aos sabores das crises e emergências momentâneas” (CIRNE, 2013, p. 06).

Assim, buscava-se, com a adoção de uma Constituição analítica, garantir não só a rigidez constitucional, mas também conferir estabilidade ao direito legislado sobre o meio ambiente (CIRNE, 2013, p. 06-07).

Nada obstante a expressa inserção dos princípios no texto constitucional não evitar que abusos possam ser cometidos, tal inserção pode servir de valioso instrumento para se exigir a concretude e a aplicação da própria Constituição.

Dessa forma, a adoção de uma Constituição detalhada sobre o meio ambiente é de fundamental importância não só para dar maior eficácia ao texto constitucional, mas também para conferir estabilidade ao direito legislado sobre o meio ambiente, que se obtém com rigidez constitucional.

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No que toca ao debate relacionado à importância da existência de um texto escrito, é de se verificar que há países que adotam Constituição escrita e há países que adotam Constituição não escrita. Na Inglaterra, que adota Constituição não escrita, a limitação constitucional está na sua tradição nacional. Já nos Estados Unidos, essa limitação constitucional decorreria da positivação de princípios notados na realidade. No entanto, nesses dois modelos, o que se observa é que a característica principal do constitucionalismo está presente, qual seja, a limitação jurídica do poder (CIRNE, 2013, p. 09).

Assim, mais importante do que discutir qual modelo devesse ser adotado no Brasil - se o modelo com Constituição escrita ou o modelo com Constituição não escrita-, é o ensinamento que podemos retirar da história do constitucionalismo moderno, no sentido de que há uma necessidade inafastável de limitação tanto dos governos quanto da própria sociedade e essa limitação é viabilizada por meio da Constituição.

Contudo, não é apenas esse papel que pode ser atribuído ao texto constitucional. O texto constitucional exerce também um relevante papel na concretização dos direitos fundamentais, tarefa que deve ser atribuída não apenas ao Poder Judiciário, mas também ao Poder Público como um todo.

Nesse contexto, forçoso é reconhecer que a adoção, naquele momento histórico, de uma Constituição detalhada sobre o meio ambiente representou um importante passo para a efetiva proteção do meio ambiente em nosso país. E isto porque, a inserção no texto constitucional de princípios que norteiam a defesa do meio ambiente significou um importante mudança de paradigma na proteção ambiental.

Por certo, nem todos os temas relevantes e necessários à proteção ambiental foram contemplados na Constituição, pois além da existência de interesses antagônicos no momento de sua elaboração, em um tema tão complexo e dinâmico como o meio ambiente, essa pretensão de esgotar o assunto seria tarefa impossível, até porque, o legislador – e o constituinte também não escapa a essa inexorável limitação – é um míope que mal enxerga a realidade que o cerca, quiçá aquela está dele distante no tempo e no espaço.

Portanto, tão importante quanto ter um texto constitucional detalhado sobre o meio ambiente, talvez seja concretizá-lo por meio da atividade interpretativa, fazendo com que os princípios nele insculpidos possam acompanhar as mudanças do tempo. Afinal, a afirmação constitucional de uma sociedade é um processo sempre em construção, algo que deve ser vivido e experimentado.

__________
Referências

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1325. 

CIRNE, Mariana Barbosa. Texto-base 2: Desvendando sentidos do Capítulo sobre Meio Ambiente da Constituição de 1988. Brasília - DF: CEAD/UnB, 2013b. (Pós-graduação lato sensu em Direito Público). Disponível em: < http://moodle.cead.unb.br/agu/course/view.php?id=9>. Acesso em: 23 ago. 2014.

MEDINA, José Miguel. Normas materialmente e formalmente constitucionais. Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/josemiguelmedina/2011/11/28/normas-materialmente-e-formalmente-constitucionais/. Acesso em: 23 ago. 2014.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martins; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

RATTES, Ana Maria. Um Olhar de 20 anos. In: BRASIL. Câmara dos Deputados. Constituição 20 anos: Estado, Democracia e participação popular – cadernos de texto. Brasília: Edições Câmara, 2009, p. 26.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21° Ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

STRECK, Lênio Luiz; BARRETO, Vicente de Paula; OLIVERIA, Rafael Tomaz de. Normas constitucionais inconstitucionais. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jul-19/confiar-interpretacao-constituicao-poupa-ativismo-judiciario. Acesso em: 23 ago. 3013.

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Sobre o autor
Jose Domingos Rodrigues Lopes

Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade de Brasília - UnB. Procurador Federal (PGF/AGU) atuante no STJ e STF.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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