A análise da doutrina processual permite dizer que, hoje no Brasil, existem duas escolas de processo. Uma, é a escola paulista, que encampa a visão tradicional, centrada nos conceitos de ação, jurisdição e processo, apenas agregando-lhes aspectos finalísticos. Essa corrente é denominada de teoria instrumentalista.
A outra, poderíamos chamar de escola mineira de processo, que prega o rompimento com essas categorias tradicionais, não mais centrado nas teorias do liberalismo e tampouco nas teorias sociais do processo, mas sim um modelo constitucional de processo mais aberto e mais democrático, inspirado nas teorias discursivas de pensadores alemães, sobretudo de Habermas. É a chamada teoria neoinstitucionalista do processo.
O critério utilizado para essa divisão decorre da proposta epistemológica de cada uma delas. A escola paulista é uma escola essencialmente dogmática, sem muita abertura para outros ramos do conhecimento, como a Sociologia, a Filosofia, a Ciência Política etc.
Já a escola mineira, podemos dizer, é uma escola essencialmente filosófica e interdisciplinar, com inserções no campo da Hermenêutica e da Filosofia da Linguagem, apresentado uma proposta epistemológica bastante densa, que coloca em xeque o próprio paradigma da modernidade.
A teoria instrumentalista, que tem Cândido Rangel Dinamarco como seu principal formulador, é hoje a concepção dominante sobre o processo civil nos meios acadêmicos brasileiros. Tal concepção, que se apresentou apenas como um aperfeiçoamento da teoria defendida pela chamada escola paulista de processo, não efetuou uma ruptura com as categorias tradicionais, como os conceitos de ação, jurisdição e processo, mas apenas agregou-lhes uma dimensão de instrumentalidade, numa clara tentativa de adaptar o discurso processual ao ambiente democrático que sugira após a queda do regime militar (COSTA; COSTA, 2013, p. 02).
Esse arcabouço teórico serviu de bússola orientadora para várias reformas na legislação processual ocorridas nas últimas décadas em nosso país e ganhou tanto prestígio entre os processualistas que hoje, salvo as dirigidas pela perspectiva neoinstitucionalista de Rosemiro Leal e por Calmon de Passos, ainda são raras as críticas ao instrumentalismo.
A instrumentalidade de DINAMARCO pode ser sintetizada em três eixos: a) valorização da categoria jurisdição, com o deslocamento do principal eixo processual da ação para a jurisdição; b) admissão do caráter teleológico do processo, reconhecendo que ele tem escopos sociais, políticos e jurídicos; c) defesa de que o processo não pode ser considerado um fim em si mesmo (sentido negativo da instrumentalidade), e que os juristas devem perseguir os objetivos fixados nos três planos citados (sentido positivo da instrumentalidade) (COSTA; COSTA, 2013, p. 02-03).
Essa valorização da categoria jurisdição pode ser depreendida da opção de DINAMARCO por eleger o acesso à justiça como uma síntese de todos os demais princípios do processo (Cf. DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 373).
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No que se refere ao caráter teleológico do processo e seus escopos, DINAMARCO (2003, p. 387) concebe que ele tem na realidade, escopos sociais (pacificação com justiça, educação), políticos (liberdade, participação, afirmação da autoridade do Estado e do seu ordenamento) e jurídico (atuação da vontade concreta do direito).
Com relação aos sentidos pelos quais a instrumentalidade pode ser vista, DINAMARCO (2003, p. 390) afirma que o aspecto negativo corresponde à negação do processo como um valor em si mesmo e repúdio aos exageros processualísticos a que o aprimoramento da técnica pode insensivelmente pode conduzir e, nesse sentido, guarda alguma semelhança com a ideia da instrumentalidade das formas; já o sentido positivo é caracterizado pela preocupação em extrair do processo, como instrumento, o máximo proveito quanto à obtenção dos resultados propostos (os escopos do sistema).
Na opinião de COSTA e COSTA (2013, p. 03), embora a formulação original da instrumentalidade possibilitasse leituras mais amplas, o certo é que a proposta de DINAMARCO acabou sendo reduzida, no senso comum dos juristas, penas ao seu aspecto negativo, ou seja, à afirmação de uma instrumentalidade das formas, o que transformou a instrumentalidade numa categoria teórica que tinha relevância apenas como topos argumentativo na dogmática contemporânea, não propiciando os novos diálogos interdisciplinares inicialmente sugeridos pelo autor.
COSTA e COSTA (2013, p. 04) procura entender a razão pela qual houve essa apropriação restrita das ideias propostas por DINAMARCO, concebendo, inicialmente, que tal postura poderia ser debitada ao caráter conservador do senso comum dos juristas. Porém, refletindo melhor, afirma que esse tipo de interpretação não leva devidamente em conta uma tensão interna à própria construção da teoria instrumentalista, qual seja, ela propõe uma abertura teleológica muito ampla, mas não estabelece crítica das categorias tradicionais, capaz de substituí-los por conceitos novos, que tenham sintonia com essa nova perspectiva.
Esmiuçando ainda mais essa tensão interna do pensamento instrumentalista e seu compromisso com a continuidade, COSTA e COSTA (2013, p. 04) assevera:
Critica-se a ausência de uma perspectiva teleológica na concepção tradicional, como se esse defeito pudesse ser corrigido por meio do acréscimo de um novo princípio, e não por meio de revisão mais ampla das categorias envolvidas na teoria processual. Assim, o desenvolvimento do instrumentalismo não propiciou uma crítica das bases conceituais da teoria tradicional, tendo sido mantidas incólumes as suas categorias fundamentais (ação e jurisdição), bem como a noção de que o processo é voltado à realização da vontade concreta da lei. A instrumentalidade envolve ampliação teleológica dessa vontade concreta, mas não representa rompimento com a concepção hermenêutica que reconhece no juiz uma função eminentemente técnica, e não política.
Esses vínculos do pensamento instrumentalista com as categorias tradicionais estão presentes, por exemplo, na filiação de DINAMARCO à teoria da jurisdição defendida por seu mestre, Chiovenda, a qual pressupõe a separação entre direito e processo, em contraste com Carnelutti, para quem o que vale é a solução do conflito, embora o próprio DINAMARCO admita que tal distinção deva ser relativizada. Essa distinção entre os mundos material e processual conduz à negação do papel criativo do juiz, bem como à manutenção da construção artificial de que o escopo jurídico do processo é a “atuação da vontade concreta da lei” (COSTA; COSTA 20013, p. 05-06).
Também, a demonstrar o compromisso de DINAMARCO com a teoria chiovendiana e com as categorias tradicionais, tem-se, no seu pensamento, a distinção ontológica relacionada às cargas decisórias, segundo a qual somente as tutelas executivas e constitutivas seriam aptas a prestar integralmente jurisdição (Cf. DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 255).
Na visão de COSTA e COSTA (2013, p. 07) a perspectiva epistemológica de DINAMARCO está desatualizada, na medida em que a abertura interdisciplinar por ele proposta terminou sendo bastante centrada em uma visão juridicista da ciência política, ou seja, concebeu o poder apenas como poder de decisão estatal, e não como uma categoria que permita reflexão mais ampla das relações de dominação dentro da sociedade.
Nesse contexto, forçoso é concluir que a teoria instrumentalista não propôs uma nova Teoria Geral do Processo, mas apenas a incorporação de argumentos de caráter finalístico ao discurso jurídico processual. Na opinião de COSTA e COSTA (2013, p. 07), a apropriação de uma teleologia por uma base conceitual que lhe é avessa revela o caráter pouco filosófico da instrumentalidade, a qual se apresenta como uma forma prática de pensar, sem diálogos mais amplos com a Filosofia do Direito e a Hermenêutica contemporâneas e essa limitação filosófica foi que deu ensejo às críticas de alguns autores.
E as críticas mais bem elaboradas dirigidas ao instrumentalismo são de autoria da chamada escola mineira, cujo maior expoente atende pelo nome de Rosemiro, o qual desenvolve linhas de pesquisa que entrelaçam Processo e Hermenêutica com bastante desenvoltura. É a chamada corrente neoinstitucionalista do processo.
O neoinstitucionalismo recorre às teorias discursivas dos pensadores alemães, sobretudo de Habermas, para conceber seu modelo constitucional de processo. Essa vinculação teórica pode ser extraída do seguinte trecho:
Sem que o dissesse expressamente em suas obras, Habermas, em seu trabalho ‘Direito e Democracia; entre facticidade e validade’, finalmente se rende, a nosso ver, ao pensamento de Popper para justificação (testificacão) da legitimidade do direito a partir de uma legalidade que se permitisse, em conteúdos fundamentais, uma reconstrutividade por procedimentos abertos a todos destinatários de direitos de tal sorte que, em função dessa titularidade fiscalizatória pelo direito-de-ação incondicionado e irrestrito, também, e simultaneamente, pudesse tais destinatários reconhecer-se autores da normatividade vigorante (LEAL, 2002, p. 160).
A corrente neoinstitucionalista coloca em xeque “justamente a visão de mundo que temos e nosso marco teórico incapaz de trabalhar o direito a partir de uma ótica verdadeiramente constitucional, pois nossas ferramentas foram forjadas para o direito liberal individual” (COSTA; COSTA, 2013, p. 09)
Para o criador da proposta neoinstitucionalista, Rosemiro Pereira Leal, o modelo constitucional de processo, assim chamado pela doutrina brasileira, não representa um abordagem constitucional ao processo e sim uma continuação da sua tradição civilista de abordagem.
A escola neoinstitucionalista propõe a superação tanto do antigo modelo de liberalismo processual, com protagonismo das partes, quanto do atual modelo de socialização processual, com protagonismo judicial.
Manifestando-se acerca do pensamento neoinstitucionalista, COSTA e COSTA (2013, p. 10) afirma:
O neoinstitucionalismo nega aos juízes essa liberdade e propõe uma releitura mais restrita de seus parâmetros de decisão, a partir das teorias discursivas contemporâneas. Ao mesmo tempo, diagnostica que atualmente no Brasil o judiciário de instâncias superiores se inclina mais a julgar teses do que casos, o que seria incompatível com sua missão constitucional. Adotar essa tendência a julgamentos abstratos é uma escolha política relevante, que gera uma judicializacão da política de viés centralizador que termina por exigir do judiciário decisões gerais e abstratas que ele precisa tomar numa lógica de aplicação de normas (que ele tem autoridade para realizar) e não de equilíbrio de interesses (que ele não tem legitimidade para realizar).
Assim, na linha do ensinamento de COSTA e COSTA (2013, p. 11), é possível afirmar que o constitucionalismo do século XX exigiu que o processo passasse a servir de instrumento democratizante, com participação mais ampla e não submissa apenas à percepção do juiz. A doutrina dominante no Brasil diz carregar essa bandeira do processo constitucionalizado, o que é negado pelo neoinstitucionalismo, que crê faltar legitimidade a um sistema judicial centrado na vontade de juiz.
REFERÊNCIAS
ABBOUD, Georges; OLIVEIRA, Rafael de. O dito e o não-dito sobre a instrumentalidade do processo: críticas e projeções a partir de uma exploração hermenêutica da teoria processual. São Paulo: RT, 2008, pp. 27-70.
COSTA, Henrique Araújo; COSTA, Alexandre Araújo. Texto-base: Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: Uma Avaliação das Críticas Neoinstitucionais à Teoria da Instrumentalidade do Processo. Brasília - DF: CEAD/UnB, 2013. (Pós-graduação lato sensu em Direito Público). Disponível em: < http://moodle.cead.unb.br/agu/mod/folder/view.php?id=163>. Acesso em: 15 mai. 2013.
DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002.
PASSOS, Calmon de. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. In: Revista de Processo. Ano 26, v. 102, abr./jun. São Paulo: RT, 2001, pp. 54-67.