1 - Introdução
Não se discute – como outrora – que o Estado pode ser responsabilizado por ilícitos, devendo reparar os danos eventualmente causados. Nesse sentido, há previsão expressa na Constituição que dispõe sobre a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público.
2 – Legislação, doutrina e jurisprudência sobre responsabilidade civil do Estado
De início, cumpre transcrever o específico dispositivo constitucional que dispõe sobre este tão importante tema:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
[...]
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
Percebe-se que a normatização é específica, sendo o regime jurídico da responsabilidade civil do Estado diverso do da responsabilidade civil tradicional, prevista no Código Civil. Atualmente, é consenso que o Estado deve indenizar os danos causados por seus atos, independentemente de culpa. Isto é, a responsabilidade do Estado é, a princípio, objetiva.
Tal posição decorre do fato de que, superada a teoria da culpa administrativa, a responsabilidade civil do Estado alicerça-se na teoria do risco administrativo – em alguns casos específicos expressamente previstos na Constituição, no risco integral, v.g., atividades nucleares. A teoria do risco administrativo delineia que o Estado deve reparar os danos causados por seus atos, ainda que não concorra com culpa, salvo se houver alguma excludente de responsabilidade. São consideradas excludentes da responsabilidade extracontratual a culpa da vítima e a força maior. Portanto, o que diferencia a teoria do risco integral da teoria do risco administrativo é exatamente a aceitação dessas denominadas excludentes de responsabilidade.
A respeito, vale transcrever a doutrina de Yussef Said Cahali:[1]
“Com efeito, a distinção entre risco administrativo e risco integral não é ali estabelecida em função da distinção conceitual entre as duas modalidades de risco pretendidas, mas simplesmente em função das conseqüências atribuídas a uma ou outra modalidade: o risco administrativo é qualificado pelo seu efeito de permitir a contraprova da excludente de responsabilidade, efeito que seria inadmissível se qualificado como risco integral , sem que nada seja enunciado quanto à base e natureza da distinção.
Desenganadamente, a responsabilidade objetiva da regra constitucional se basta com o reconhecimento do nexo de causalidade entre o procedimento comissivo e omissivo da Administração Pública e o evento danoso verificado como conseqüência; o dano sofrido pelo administrado deve ter como causa o fato da atividade administrativa, regular ou irregular, não compondo necessariamente a responsabilidade objetiva os elementos da culpa administrativa, culpa anônima do serviço, falha, irregularidade funcionamento deste.
A questão se desloca, assim para a investigação da causa do evento danoso, objetivamente considerada, mas sem se perder de vista a regularidade da atividade pública, a anormalidade da conduta, a eventual fortuidade do acontecimento, na determinação do que seja dano injusto, pois só esse merece reparação.”
Há que se ter em mente que todas essas considerações acerca da responsabilização objetiva do Estado referem-se aos atos comissivos. Em relação aos danos causados por omissão estatal, o regime jurídico é diverso. Isso porque a correta interpretação do § 6º do art. 37 da Constituição pressupõe um agir positivo dos agentes públicos para fins de responsabilização sem se questionar de culpa.
Em hipóteses nas quais advenha dano de conduta negativa estatal – ou seja, decorrente da falta do serviço que deveria ter sido prestado pelo poder público – a responsabilidade será, portanto, subjetiva. Entendimento diverso levaria à teoria do risco integral ou, pior, pressuporia que o Estado deve estar presente em todos os lugares, como garante universal, o que é evidentemente impossível.
A respeito da responsabilização por condutas negativas, cumpre transcrever os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello[2]:
“Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. (...)
Logo, a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade por comportamento ilícito. E, sendo responsabilidade por ilícito, é necessariamente responsabilidade subjetiva (...)
Nesse sentido, já se manifestou o Supremo Tribunal Federal:
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ATO OMISSIVO DO PODER PÚBLICO: DETENTO FERIDO POR OUTRO DETENTO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA: CULPA PUBLICIZADA: FALTA DO SERVIÇO. C.F., art. 37, § 6º.
I. - Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por esse ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, em sentido estrito, esta numa de suas três vertentes – a negligência, a imperícia ou a imprudência -- não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço.
II. - A falta do serviço -- faute du service dos franceses -- não dispensa o requisito da causalidade, vale dizer, do nexo de causalidade entre ação omissiva atribuída ao poder público e o dano causado a terceiro.
III. - Detento ferido por outro detento: responsabilidade civil do Estado: ocorrência da falta do serviço, com a culpa genérica do serviço público, por isso que o Estado deve zelar pela integridade física do preso. IV. - RE conhecido e provido.” (RE 382.054/RJ, “DJ” de 1º.10.2004)
Ademais, mesmo que se entenda presente o nexo de causalidade, cumpre destacar que o que se exige da Administração Pública para que não se configure o ilícito omissivo é o resguardo de padrões razoáveis, minimamente esperados, tendo-se em vista o contexto da realidade concreta. Jamais pode se erigir um referencial exagerado ou utópico de expectativa. Isso, em última análise, levaria à responsabilização integral do Estado por todas as mazelas que deveria – mas que infelizmente é impossível – evitar.
A respeito, oportunas as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello[3]:
“Não bastará, então, para configurar-se responsabilidade estatal, a simples relação entre ausência do serviço (omissão estatal) e o dano sofrido. Com efeito: inexistindo obrigação legal de impedir um certo evento danoso (obrigação, de resto, só cogitável quando haja possibilidade de impedi-lo mediante atuação diligente), seria um verdadeiro absurdo imputar ao Estado responsabilidade por um dano que não causou, pois isso equivaleria a extraí-lo do nada (...) Em uma palavra: é necessário que o Estado haja incorrido em ilicitude, por não ter acorrido para impedir o dano ou por haver sido insuficiente nesse mister, em razão de comportamento inferior ao padrão legal exigível.
Não há resposta a priori quanto ao que seria o padrão normal tipificador da obrigação a que estaria legalmente adstrito. Cabe indicar, no entanto, que a normalidade da eficiência há de ser apurada em função do meio social, do estádio de desenvolvimento tecnológico, cultural, econômico e da conjuntura da época, isto é, das possibilidades reais médias dentro do ambiente em que se produziu o fato danoso.
Como indício destas possibilidades há que levar em conta o procedimento do Estado em casos e situações análogas e o nível de expectativa comum da Sociedade (não o nível de aspirações) (...)
Descabe responsabilizá-lo [o Estado] se, inobstante atuação compatível com as possibilidades de um serviço normalmente organizado e eficiente, não lhe foi possível impedir o evento danoso gerado por força (humana ou material) alheia (...)
Ademais, solução diversa conduziria a absurdos. É que, em princípio, cumpre ao Estado prover a todos os interesses da coletividade. Ante qualquer evento lesivo causado por terceiro, como um assalto em via pública, uma enchente qualquer, uma agressão sofrida em local público, o lesado poderia sempre arguir que “o serviço não funcionou”.
Evidentemente também que a integridade sempre ser preservada. Mas conforme nos adverte o consagrado na Suprema Corte princípio da reserva do possível, a se preservar uma total e virtualmente inquebrável segurança comprometer-se-ia a própria finalidade da Administração – a realização das políticas públicas afetas. Estariam os fins totalmente comprometidos pelos meios; negada a finalidade da lei a razão de ser da própria Administração. Portanto, a única escolha válida do administrador dentre as possibilidades discricionárias é a de cotejar com equilíbrio a preservação de razoável “segurança” com a destinação dos demais recursos para a finalidade pública que justifica a existência do ente.
3 – Conclusão
Portanto, diante de todo o exposto, conclui-se que a responsabilidade civil do Estado alicerça-se na teoria do risco administrativo, e em alguns casos específicos expressamente previstos na Constituição, na do risco integral (atividades nucleares, por exemplo).
4 – Referências
CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil Doutrina e Jurisprudência. Ed Saraiva, p. 371.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, Ed. Malheiros, 18ª Edição, p. 936-939.
Constituição Federal.
[1] Responsabilidade Civil Doutrina e Jurisprudência. Ed Saraiva, p. 371
[2] Curso de Direito Administrativo, Ed. Malheiros, 18ª Edição, p. 936-939
[3] Curso de Direito Administrativo, Ed. Malheiros, 18ª Edição, p. 936-939