A violação dos direitos humanos no sistema prisional brasileiro

Resumo:


  • O sistema prisional brasileiro enfrenta críticas severas quanto à sua eficácia em reeducar e reintegrar ex-detentos à sociedade, com altas taxas de reincidência e condições desumanas que desrespeitam os direitos humanos básicos.

  • Michel Foucault, em "Vigiar e Punir", analisa a evolução histórica das prisões e sugere que o modelo atual falha em sua função ressocializadora, propondo a busca de alternativas mais eficazes e humanas.

  • Para uma reintegração bem-sucedida, é necessário que o Estado ofereça aos detentos acesso à saúde, educação e oportunidades de trabalho, além de suporte após a liberação, visando reduzir a reincidência e promover justiça social.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A partir do elemento da prisão se depreenderá: função social; ideologias que a cercam; entendimento que a sociedade moderna tem sobre ela. a prisão vem tendo efeito inverso ao que se espera.

INTRODUÇÃO

O sistema prisional não está cumprindo com seus reais objetivos, que são sancionar as condutas delituosas e reeducar o preso, a fim de reintroduzi-lo à sociedade. Efeito disso são os elevados índices de reincidência criminal nos estados brasileiros, assim, o desafio para aqueles que saem da prisão, de se reintegrarem ao mercado de trabalho e ambiente comunitário tonam-se um desafio, visto a visão pejorativa que a maioria da sociedade brasileira ainda tem acerta dos presídios.

A tutela que o Estado deve prestar aos detentos é ignorada, os direitos humanos básicos e princípios fundamentais que devem ser garantidos mesmo mediante restrição da liberdade são infringidos por aqueles agentes públicos que deveriam garantir tais benefícios. Na maioria dos centros de detenção do país não há acesso à saúde de qualidade, formação intelectual e incentivo ao trabalho, impossibilitando assim, que o ex-detento possa almejar um futuro melhor para si e para seus familiares.


REFERÊNCIAL TEÓRICO

A base histórica para este artigo foi Michel Foucault. Como pensador francês da segunda metade do século XX destaca-se entre os seus pares por empreender uma profunda crítica, numa primeira fase do seu pensamento, aos sistemas de pensamento ocidentais.  Fundamenta a sua obra a partir de um viés frankfurtiano, logo neo-marxista. Considerado um dos grandes estruturalistas da sua época junto com Lévi Strauss, Lacan e Derrida; numa ultima fase das suas pesquisas desenvolveu uma investigação sobre a estrutura das instituições judiciais e penitenciárias na época moderna.

Partindo da obra “Vigiar e Punir”, Foucault procura dar um parecer histórico sobre o surgimento das prisões e objetivos que cercam a privação de liberdade. Cerceando este desenvolvimento, o autor procura alternativas à modelos que já não cumprem a sua verdadeira função, que é tornar o preso apto a conviver novamente em sociedade.

A Reincidência Criminal

Um dos grandes problemas que envolvem a temática do sistema prisional brasileiro é o alto número daqueles que, após serem libertos, voltam a praticar crimes. De acordo com o Informe Regional de Desenvolvimento Humano (2013-2014) do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), p. 129 (Disponível em: <latinamerica.undp.org>) o percentual de reincidência no Brasil é de 47,4%, uma das mais altas do mundo. Tal estatística é demonstra também que a maioria da população carcerária pertence à classe de baixa renda e possuem baixa escolaridade. Por estarem à margem da sociedade, e devido à precária qualificação profissional, muitos ex-detentos continuam vendo no crime uma forma de sustento mais acessível, já que o mercado de trabalho formal possui altos critérios de instrução técnica, visto alto grau de desenvolvimento do capitalismo.

Notoriamente a quantidade daqueles que se reabilitam plenamente à sociedade é muito reduzida. Esta situação vai contra o objetivo final da detenção, que é a reativação do indivíduo na sociedade, para que, fazendo parte da população economicamente ativa, possa se sentir apto a exercer atividades que influenciem na convivência e bem estar social.

As Instituições Carcerárias

As penitenciarias constituem um dos destinos de muitos dos indivíduos marginalizados em todas as sociedades. Tal marginalização, recorrentemente está acompanhada de fome, de moradia precária, de saúde defasada, de acesso limitado à cultura e a outros benefícios sociais. Nesse contexto é que surgem muitos dos infratores existentes atualmente. Tendo em vista que com poucas oportunidades de se inserir na sociedade, tais indivíduos recorrem ao ilícito para ganhar a vida e para usufruí-la de acordo com seus ideais. Nesse sentido, muitas dessas pessoas que estão à margem da lei são presas ou mortas pela força coercitiva estatal. Tendo em mente que ao optarem por tal forma de vida os marginalizados colocam em risco toda a sociedade convencional, o que exige que esta se defenda.

No Brasil, falta gerenciamento de qualidade dentro das penitenciárias, a precariedade das instalações físicas culmina com diversos processos judiciais acusando o Estado de ser displicente quanto aos direito humanos. O sistema penal se apresenta sob a roupagem de instituição responsável promotora de avanços sociais que contribui para a plena socialização do indivíduo infrator. Mas o que se apresenta não condiz com a realidade. As prisões nem sempre cumprem os objetivos propostos teoricamente almejados em termos de discurso: “ressocializar aquele que cometeu o desvio social”.  Daí, talvez, a origem da problemática da reinserção na sociedade do preso pós-sistema carcerário. Neste sentido afirma Mirabete:

“A ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciárias, tendem a converter-se num microcosmo no qual se reproduzem e se agravam as grandes contradições que existem no sistema social exterior. [...] A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. A prisão não cumpre a sua função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da estrutura social de dominação.” (MIRABETE, 2002, p. 145).

Quando o Estado efetua a ação de enviar o infrator à prisão, ele o faz sobre a prerrogativa de privar o individuo de seu direito de ir e vir, para que o mesmo passe por um processo de regeneração, para que mais tarde seja ressocializado. No entanto, apesar de tal medida nos parecer demasiadamente racional, no Brasil ela não passa de uma grande hipocrisia estatal e social. Tendo em vista, que os presídios brasileiros, em sua grande maioria, não proporcionam de forma alguma as condições necessárias para a reabilitação do presidiário. O que se observa, na verdade, são condições que tornam o detento ainda pior do que quando entrou na penitenciaria. Tal fato fica evidente quando se tem em mente que em Dezembro de 2012 havia, no país, 548 mil presos para 310 mil vagas nas penitenciarias brasileiras, segundo o Ministério da Justiça.

Segue no gráfico abaixo dados mais atualizados sobre a relação entre quantidades de detentos por quantidade de vaga nos estados brasileiros.

Tal situação acarreta em condições subumanas de existência para qualquer individuo. Tendo em vista que os detentos estão inseridos em uma instalação que lesa sua integridade física, uma vez que o superlotamento impede que necessidades vitais do corpo humano (como o sono, a higiene, a alimentação) sejam realizadas de forma adequada. Além disso, a violência dentro dos próprios presídios já constitui um ambiente totalmente hostil, que é agravado por essa concentração absurda de detentos em um mesmo espaço. Vale ressaltar que não há separação de presos pela natureza do crime cometido (apesar de ser uma norma da Constituição de 1988), o que de fato acontece é que um pequeno infrator é colocado na mesma cela de um criminoso de alta periculosidade social. Dessa forma a integração entre os dois é muito maléfica para o detento que realizou crimes de menor relevância. Tendo em mente que o mesmo pode ser influenciado ou submetido a realizar outras ações ilícitas pelo outro detento, ou, até mesmo, sofrer violências de diversos tipos por este.

Outro grande problema estrutural é quanto aos agentes penitenciários, que não recebem o treinamento apropriado para lidar com os detentos, não possui rotina regulada por procedimentos operacionais e seus salários facilitam a corrupção dentro das cadeias, visto que o aliciamento por parte dos presos é uma realidade alarmante.

A disciplinarização dos detentos não vem sendo observada nos presídios. Pelo contrario, o que se verifica é o aumento da criminalidade que supostamente deveria ser reduzido pela penitenciaria. Nesse sentido o que se está amplamente comprovado é que o cárcere aumenta os crimes na sociedade, em vez de reduzi-los. É mais do que evidente que o sistema prisional acentua a marginalidade dos indivíduos que nele ingressam, aumentando aquilo que deveria combater. Nesse sentido o que se observa é uma “eficácia inversa” de tal sistema. Logo, de fato, podemos inferir que o suposto escopo estatal de regeneração do marginal é hipócrita. Tendo em mente que isso nunca virá acontecer com o sistema penitenciário que existe hoje no Brasil, e em grande parte dos países ocidentais. Tal situação contribui com um fato alarmante: o detento vai sendo moldado e criando suas próprias aferições sobre o sistema, que o enclausura numa cela, muitas vezes, sem condições infraestruturais dignas de humanidade, permitindo que além da ociosidade, se crie uma mente capaz de arquitetar planos maléficos fora daquele recinto ou até mesmo dentro dele.

Dessa forma, empreendemos desse raciocínio que os esforços sociais não devem recair sobre a punição da infração, mas principalmente sobre as causas do crime. Vale destacar que nos referimos a crimes gerados pela marginalização, ou seja, crimes oriundos de precária situação social.  No entanto, seria também hipocrisia de nossa parte se não admitíssemos que a punição possuísse sim sua importância. Tendo em vista que se não se aplica punição alguma, o crime fica sem nenhuma solução imediata, o que resulta em um maior caos social do que já existe em nossa sociedade.       

Direitos Violados

Há, dentro e fora das penitenciárias, arbitrariedade e abusos de poder por parte da polícia, morosidade da justiça no desenrolar dos processos penais, além das péssimas condições estruturais e violência no sistema penitenciário. Tal fato demonstra uma fragilidade e precariedade do sistema, onde é presente o uso abusivo de violência tanto nas atividades de vigilância quanto nos processos de investigação. “A confissão do acusado continua sendo mais importante do que as evidencias resultantes de um processo de investigação (inquérito policial), o que acaba fazendo da tortura uma prática constante em delegacias”. (ZALUAR, 1996). “A incapacidade de controle pelo poder público sobre a população carcerária, a falta de apoio ao egresso para reinserir-se na comunidade, a falta de preparo dos agentes penitenciários, além do descaso do Estado aos direitos dos presos, ao não assegurar condições elementares de encarceramento (assistência jurídica, social, médica), evidenciam a realidade alarmante e preocupante das prisões brasileiras”. (MARTINS, 2013, pág. 36). Há casos em que reclusos devido à medida de segurança imposta pela Justiça, não recebem atendimento médico-psicológico, afetando ainda mais a situação do cidadão.

Alguns estabelecimentos funcionam em condições precárias, distantes do ideal normativo, deixando de contribuir, como poderia, com as diretrizes indicadas no artigo 1º da Lei de Execuções Penais: humanizar e punir. A falta de oportunidades de trabalho em regime fechado também evidencia um descumprimento da Lei de Execuções Penais, visto que seu art. 126 diz que o condenado que cumpre pena nos regimes fechado e semiaberto pode descontar, para cada três dias de trabalho, um dia no restante da pena.

Justiça Social e Oportunidade

Partindo da atual situação em que se encontram as carceragens no Brasil, é fácil entender a origem do medo em receber um ex-detento no local de trabalho de um “cidadão comum”. O sistema punitivo penitenciário marca o indivíduo que nele ingressa pelo resto da vida. Tendo em mente que a sociedade em geral conhece as condições subumanas da maioria das penitenciarias brasileiras, tem ciência também que muitos dos indivíduos não saem reabilitados dessas instituições. Dessa forma ao sair do presídio o ex-detento tem enormes dificuldades para conseguir um emprego. Tal fato acarreta em uma maior marginalização desses indivíduos que sem trabalho não conseguirão se sustentar e muito menos a ter acesso a algum desenvolvimento humano.

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Diante de tal contexto é possível entender a necessidade de promover aos ex-presidiários oportunidades para que se mantenham na sociedade capitalista, e é através de políticas públicas que beneficiem estes cidadãos que é possível a sua reinserção na sociedade.

 O acompanhamento pós-detenção abordado por Foucault revela:

 

‘’Princípio da boa ‘’condição penitenciária’’: 7) O encarceramento deve ser acompanhado de medidas de controle e de assistência até a readaptação definitiva do antigo detento. Seria necessário não só vigia-lo à sua saída da prisão, mas prestar-lhe apoio e socorro (boulet e benquot na Câmara de Paris). [1945]: É dada assistência aos prisioneiros durante e depois da pena com a finalidade de facilitar sua reclassificação (Princípio das instituições anexas). ’’ (FOUCAULT, 2010, p. 257).

Para que os presos tenham igual oportunidade ao serem libertos é essencial que, enquanto estiverem reclusos, tenham oportunidade de se especializarem em profissões que possam lhes proporcionar emprego que garanta seu sustento e da sua família na sociedade livre. Um detento, enquanto aprende e aplica suas técnicas nos próprios presídios adaptados, fazem mais pela sociedade do que presos ociosos em suas celas. Nota-se que tal qualificação já vem sendo empregada por alguns setores carcerários, mas a taxa de profissionais formados nestes cursos de especialização é ínfima em comparação com o número de ex-detentos desempregados, porta aberta para se reincidirem no crime.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há um sucateamento nas prisões, onde propostas políticas giram em torno de aumentar o número de celas e diminuir a maioridade penal, ao invés de investirem em educação, lazer, trabalho digno e qualidade de vida a toda população diminuindo assim proporcionalmente o número de presidiários.

Paulo Sette dá as diretrizes para a solução dos problemas no sistema prisional:

 

‘’Exige esforço conjunto e ações articuladas entre os diversos níveis de governo e sociedade. Requer alterações legais, como a independência do Executivo na gestão penitenciaria, mantendo a supervisão da Justiça e a fiscalização do Ministério Público; passa pela tipificação criminal da conduta da fuga dos presos e a sanção disciplinar para a posse e o uso de telefone celular, arma ou objeto de uso proibido por interno; implica o estabelecimento de critérios objetivos para a conquista gradual de direitos (trabalho, visita íntimas, etc.) dos reclusos; passa pela aceleração da tramitação dos processos com réus presos; pela parceria de empresas para uso dessa mão de obra; pela formação de profissionais especializados em administração e controle prisionais. ’’

 

É dever do Estado e clamor da sociedade ver os criminosos detidos, para que assim, possam retornar a sociedade aptos a conviverem segundo o “contrato” social. Mas esta reclusão deve ser embasada sob uma forte política reeducadora, onde os presos possam ter direito também à saúde, lazer e segurança dos direitos humanos, só assim o fim último da restrição da liberdade poderá ser alcançado.


REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 38a ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 10a ed. São Paulo: Atlas, 2002.

MARTINS, Herbert. Crime, criminoso e prisão: um estudo sobre a reincidência penitenciária em Montes Claros – MG. Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 7, n. 2, p. 32-48 Ago/Set 2013.

CUNHA, Elizangela. Ressocialização: O desafio da educação no sistema prisional feminino. Cad. Cedes, Campinas, vol. 30, n. 81, p. 157-178, mai.-ago. 2010. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br

SETTE, Paulo. A Política Carcerária e a Segurança Pública. Rev. bras. segur. pública | São Paulo. Ano 1. Edição 1, n. 2, p. 64-70. Fev/Mar 2007.

GODOI, Rafael. Para uma reflexão sobre os efeitos sociais do encarceramento. Rev. bras. segur. pública | São Paulo. Ano 5. Edição 8, p. 138-154. Fev/Mar 2011.

REIS, Thiago. Brasil tem hoje déficit de 200 mil vagas no sistema prisional. Em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2014/01/brasil-tem-hoje-deficit-de-200-mil-vagas-no-sistema-prisional.html. Acesso em: 21 julho 2014.

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Sobre os autores
Jordan Tomazelli Lemos

Advogado. Mestrando em Direito Processual pela UFES.

Arthur Cypriano de Almeida Pinto

Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo que visa entender o sistema carcerário brasileiro numa análise da violação dos bens jurídicos dos detentos.

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