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A inutilidade das leis (em demasia)

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01/11/2002 às 00:00
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6- A permanência da crise jurídica apesar do excesso de leis: conclusão

                      Não obstante todos os sacrifícios, todas as leis, todos os órgãos, todos os impostos, todos os consertos e reformas, o Estado moderno não deu nenhum dos bens que inconsideradamente lhe exigiram. E tanto lhe forçaram o maquinismo, que ele por fim explodiu na crise em que se debate. Devemos, por isso, ater-nos ao que disse Tácito em tempos imemoriais: Corruptissima in republica plurimae leges (as leis abundam nos Estados mais corruptos). Efetivamente, o número exagerado de leis é sinal inequívoco de que os costumes se deterioram, pois mesmo com esta infinidade de leis, a máquina legiferante continua a girar mais que a casa da moeda em período de hiperinflação. O problema do estiolamento moral é gritante e salta aos olhos; quando os cidadãos e a sociedade são eticamente íntegros, as leis em quantidade desmesurada são desnecessárias; quando são corruptos, as leis passam a ser inúteis. A perfeição não consiste na quantidade, mas na qualidade. Tudo que é muito bom e valioso, sempre é pouco e raro. A desenfreada quantidade de leis explica-se por uma dissolução moral e perda de sensibilidade cidadã.

                      Países politicamente organizados e com relativa tradição democrática não reclamam novas leis, mas o cumprimento das já existentes. É este espírito de continuidade histórica, de respeito à história e de apego à tradição que falta ao Brasil. Se devemos copiar algo, que copiemos o modo de ser e de se comportar diante das rupturas, dialetizando e sintetizando novas soluções e não puros procedimentos institucionais que se mostram ineficientes, pois despidos do selo histórico. Exemplo de arraigado espírito de tradição encontra-se na Inglaterra, como nos dá conta Edward Freeman: "Em todas as nossas lutas políticas, a voz dos ingleses nunca se ergueu para pedir a afirmação de novos princípios, o estabelecimento de leis novas; o grito público foi sempre para reclamar uma melhor obediência às leis em vigor e para se repararem os males nascidos da sua corrupção ou do seu esquecimento. Até à Magna Carta ter sido arrancada ao Rei João, reclamaram-se as leis do bom Rei Eduardo; e, quando o tirano, contra a sua vontade, apôs o selo nesta obra capital, fundamento de todas as nossas leis posteriores, limitamo-nos a exigir o estrito acatamento de uma Carta que passava por não ser senão a Constituição de Eduardo sob uma forma nova. Fizemos mudanças de tempo a tempos. Mas estas mudanças foram simultaneamente um acto de conservação, porque eram um progresso; um progresso, porque conservavam" [10].

                      O avanço do Direito, com a inflação legislativa, representa um encolhimento da esfera da moral, sendo um índice seguro de regressão ou involução social (o fenômeno de desmobilização social que aludi acima). A passagem para uma organização social superior segue em direção inversa, pressupondo a substituição de certo comportamento jurídico por outro, moral. Efetivamente, quando os indivíduos regulam as suas relações com os demais não sob a ameaça de uma pena ou pela pressão de uma coação externa, pode-se afirmar que nos encontramos diante de uma forma de comportamento moral mais elevada.


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS:

                      ABBAGNANO, Nicola. Dizionario di filosofia, trad. Alfredo Bosi, Ed. Martins Fontes, 4ª.ed., São Paulo, 2000.

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                      LYONS, David. Ethics and the rule of law, trad. Luís Alberto Peluso, Ed. Papirus, 1990.

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                      MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, Ed. Forense, 14ª. ed., Rio de Janeiro, 1994.

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                      POPPER, Karl. The logic of scientific discovery, Ed. Cultrix, São Paulo, 1972.

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                      SCHELER, Max. La esencia de la filosofia y la condición moral del conocer filosófico, Editorial Nova, Buenos Aires.

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                      WEIL, Eric. Philosofie politique, Edições Loyola, trad. Marcelo Perine, São Paulo, 1990.


NOTAS

                      1. Cf. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, tomo I, p. 231. Em Portugal, houve uma inversão na locução em vez de "Estado democrático de direito" (como no Brasil) tem-se "Estado de direito democrático", como numa síntese entre "Estado de Direito e democracia" (conforme asserto de Jorge Miranda, Manual..., cit., II/390). Ao falar duma síntese entre Estado de Direito e Democracia, resultante da expressão, o autor português implicitamente reconhece a existência em separado dos dois elementos: Estado de Direito e Democracia. A forma como foi colocada na Constituição portuguesa me parece correta, por que aí o adjetivo "democrático" não qualifica o Estado tão-só (como aqui no Brasil), antes o "Direito". E de fato, como já foi dito aqui (reproduzindo lição de Alain Touraine) só se dá a Democracia quando o Direito se deixa permeabilizar por princípios éticos superiores. Assim, é legítimo falar-se em "Direito democrático" (ou "legalidade democrática", como também aparece na Constituição portuguesa – art. 2º), e por extensão, em "Estado de direito democrático", não porém, em "Estado democrático", pura e simplesmente. É necessário deixar bem clara a diferença entre Estado, Estado de Direito e Democracia.

                      2. Há três espécies de positivismo jurídico: o positivismo legalista (defende as formações jurídicas legislativas), o positivismo historicista ou sociologista (defende as formações jurídicas pré-legislativas) e o positivismo psicologista (rende preito à intuição individual ou consciência jurídica do intérprete). Todas as formas do positivismo giram num círculo em cujo centro está o ponto de chegada que é a lei e o Estado.

                      3. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, I/33.

                      4. Apud Antônio Carlos Wolkmer, Ideologia, Estado e Direito, p. 89.

                      5. Teoria Política, Vol. XXXVI, p. 32.

                      6. Rui Barbosa, Teoria Política, n. XX.

                      7. Diz-se à guisa de ressaltar o espírito pragmático do romano, que enquanto o grego para modelar fisicamente o corpo exercitava-se nos ginásios, o romano mourejava no campo, unindo o útil ao agradável, pois que trabalhava o corpo e ao mesmo tempo produzia. Omnium virtutum et utilitatum rapacissimi – os romanos eram avidíssimos por tudo quanto representasse valor e utilidade, dizia Plínio, o Velho.

                      8. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, p. 62.

                      9. Tobias Barreto, Menores e Loucos, em: Estudos de Direito II, p. 42.

                      10. Apud Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, I/124-125.

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Sobre o autor
João Gaspar Rodrigues

Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. A inutilidade das leis (em demasia). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3477. Acesso em: 18 abr. 2024.

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