Habermas, um dos mais importantes filósofos contemporâneos da atualidade, se debruçou na busca de uma teoria universalista do direito e superou, através de sua teoria discursiva, as visões liberais e comunitárias do direito.
Buscou demonstrar, em sua obra denominada “Facticidade e Validade”[1], que no Brasil recebeu o título de “Direito e Democracia”, como a Teoria Discursiva poderia contribuir para a construção de um Estado Democrático de Direito, a partir do momento em que o Direito e o discurso fossem conexos, possibilitando uma real coexistência entre autonomia privada e pública.
Procurou mostrar que não se podia subordinar o principio democrático à moral e que a autonomia privada, pública, os direitos humanos e a soberania popular, atribuiam-se reciprocamente. Analisou a relação entre Direito e moral no campo metafísico, onde a moral e o direito se diferenciavam simultaneamente da ética tradicional. No entanto, entre ambas formas de regulação, existia uma relação que se complementava. Apesar da diferença da ética tradicional, Moral e Direito se encontravam juntos em um mesmo nível. A diferença é que a moral era um sistema de símbolos, enquanto o Direito era um sistema institucionalizado de ação.
Na moral[2], prevalecia o critério da consideração igualitária de interesses, enquanto que no principio democrático, era permitido formas de ação que se apresentavam em forma jurídica. Para ambos, era válido o principio discursivo geral, ou seja, uma norma só era válida quando todos os afetados por ela pudessem aprová-la como participantes de um discurso racional.
Sua teoria englobou concepções individuais de vida digna e valores compartilhados por identidades coletivas. Defendia que nenhuma das autonomias deveria sobrepor à outra, pois não eram antagônicas, não sendo possível optar por uma em detrimento da outra.[3] Somente através da participação de todos os cidadãos, através de um debate democrático, seria possível a produção de um direito legitimo, onde direitos fundamentais e democracia se complementassem. (SELVATTI, 2011).
Analisando os direitos fundamentais à luz da teoria de Habermas, é possível perceber que o citado autor se empenha no esclarecimento da relação interna existente entre soberania popular e direitos fundamentais. Acreditava que a positivação de um sistema de direitos fundamentais em uma Constituição, possuía a função de contextualizar princípios universalistas e transformá-los numa base comum a todos os cidadãos.
Como bem salienta:
“A idéia dos direitos humanos e da soberania do povo determinam até hoje a autocompreensão normativa de Estados de direito democráticos. A história de teoria é um componente necessário, um reflexo da tensão entre facticidade e validade, entre positividade do direito e a legitimidade pretendida por ele, latentes no próprio direito” (Habermas, 1997, p.128).
Para Habermas, os conceitos de Direitos Humanos e soberania do povo são os alicerces que sustentam o direito moderno. Isto porque tais idéias sobrevivem e subsistem, mesmo depois que a substância normativa, filtrada discursivamente, passa pelo crivo da fundamentação pós-tradicional. Direitos fundamentais e soberania do povo não se subordinam às dimensões da autodeterminação e da autorealização.
Para o autor alemão, só é possível a existência de uma democracia verdadeira, quando houver legitimidade do direito, que pressupõe garantia das liberdades subjetivas conjugada com a ativa participação dos cidadãos. Em suma, uma sociedade democrática só apresenta-se como tal, se houver liberdade de discurso e garantia dos direitos fundamentais.
Conforme observa o autor:
“A idéia básica é a seguinte: o principio da democracia resulta da interligação que existe entre o principio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo esse entrelaçamento com uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. [...] o principio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A gênese lógica desses direitos forma um processo circular, no qual, o código do direito e o mecanismo para a produção de direito legítimo, portanto o princípio da democracia, se constituem de modo co-originário.” (Habermas, 1997, p. 158).
Habermas (1997, p. 130), procurou mostrar que a tensão entre direitos humanos e soberania popular, poderia solver-se mediante uma compreensão adequada da conexão entre facticidade e validade no âmbito do direito, o que implicaria que os direitos humanos poderiam fundamentar-se a partir da própria prática da autodeterminação dos cidadãos, através do exercício da soberania popular.
Quando os direitos fundamentais são assegurados em uma Constituição, através de um procedimento democrático-deliberativo, eles passam a ser normas de caráter obrigatório, blindados, protegidos contra as maiorias inconseqüentes frente ao humor momentâneo das massas, evitando assim, a instrumentalização do poder através de mecanismos como a representação, a divisão de poderes e a distinção entre lei ordinária e constitucional.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Habermas e o Direito Brasileiro. 2ª ed. Belo Horizonte: Lúmen Juris, 2008.
DUARTE, Bernardo Augusto Ferreira. Em busca da legitimidade dos discursos jurisdicionais relativos ao direito à saude: uma análise a partir da reviravolta hermenêutico-linguístico-pragmática. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito) Programa de Pós-Graduação em Direito, PUCMINAS, Belo Horizonte.
DURÃO, Aylton Barbieri. La interpretación de Habermas sobre la tensión entre derechos humanos y soberania popular en el pensamiento de Kant. Doxa, Alicante, n. 26, p. 5-46, 1989.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade I. 2. Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
_________. El concepto de dignidad humana y la utopia realista de los derechos humaños. Diánoia, México, vol. LV, n. 64, p.3-25, may. 2010.
SELVATTI, Giovana C. A. A relação interna entre democracia e direitos fundamentais: um estudo à luz da teoria discursiva de Jürgen Habermas. Âmbito Jurídico. Brasil, n. 94, ano XIV, nov. 2011.
NOTAS
[1] Para Habermas, Kant e Rousseau tentaram superar a tensão entre direitos humanos e soberania popular por meio do conceito de autonomia, que permite relacionar razão prática e vontade geral do povo. Contudo, nem Kant e nem Rousseau conseguiram realizar corretamente sua pretensão, pois Kant privilegiou a razão prática que tem como fundamento moral as normas jurídicas e instituiu o império da lei sobre a soberania popular, desenvolvendo uma teoria mais liberal que republicana. Já Rousseau, estreitou o conceito de soberania popular como a autocompreensão ética de uma comunidade concreta, o que resultou em uma concepção mais republicana que liberal. (Habermas, 1997, p.130).
[2] Cruz (2008, p. 132), aponta que em Facticidade e Validade, Habermas procurou ajustar sua proposta aos pressupostos da Filosofia da Linguagem, separando-a da Moral que podia ainda ser vista como uma vinculação ao pensamento kantiano.
[3] Para Habermas, este seria um dos grandes desafios para a democracia contemporânea, propor soluções para a tensão entre a necessidade de igual tratamento para todos e a proteção das identidades culturais.