Direito: ciência, técnica ou arte?

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3. Direito como Arte

Etimologicamente, a palavra Arte: “Do lat. Arte-, f., talento, saber, habilidade, arte (em sentidos geral e moral); aquilo em que se aplica o talento; profissão, mister, arte, ciência; conhecimentos técnicos, teoria, corpo de doutrinas, sistema, arte [...]”  (MACHADO, 1952, p. 260).

Conforme se denota, o termo arte se demonstra como o mais amplo entre os três em análise, englobando em si tanto a ciência, quanto a técnica. Dessa maneira, se retrata a completude da palavra como bem deve ser o Direito e as decisões dos juristas, que para a tomada de suas posições devem adotar uma abordagem ampla da realidade, vez que toda decisão possui uma carga política e axiológica.

Sem embargo, levando em consideração o exposto, cabe-nos a constatação de que Direito e arte são termos correlatos, vez que são abstrações construídas a partir de outras abstrações, como por exemplo, a elaboração das normas e das obras artísticas (SCHWARTZ; MACEDO, 2008).

 Assim, o caráter artístico prevê a superação da percepção do Direito como elemento isolado da sociedade, fazendo com que este se relacione com as demais áreas do saber, diferentemente do que dizia Kelsen ao pregar que o direito não necessitava das demais áreas do conhecimento para se auto-explicar.

Ademais, a atividade do jurista pressupõe sempre uma carga subjetiva deste ao exercer seu ofício, ou seja, não há como o intérprete ou julgador exercer sua atividade de forma totalmente destituída de uma carga axiológica, condição esta que elimina qualquer possibilidade de o Direito ser considerado como ciência ou técnica e evidencia a caráter artístico deste conhecimento, pois a arte pressupõe aspectos pessoais de seu elaborador que caracterizam sua obra.

Nesse sentido versa Porcher Júnior:

A obra artística, por assim dizer, ao passo que limita o horizonte de expectativas estéticas do seu observador, na medida do conteúdo que traz explícito ou implícito, também reserva um espaço para construções circunspectas ao tema proposto. Da mesma Forma, o ordenamento jurídico se conserva substancialmente poroso e elástico, para abraçar a infinidade de casos concretos que possam surgir, ao passo que traz dispositivos com caráter de balizas para suas respectivas sociedades, conforme os valores por estas aspirados: são as chamadas cláusulas pétreas, dotadas de uma tenacidade que, quando ignorada, faz abalar, a partir da desconstituição de categorias do direito subjetivo, todo o sentimento de justiça de um povo (PORCHER JÚNIOR, 2006, p. 25).

Já a ciência, é um conhecimento axiologicamente neutro, pois o cientista ao exercer suas atividades não deve transportar seus elementos pessoais para as tarefas desenvolvidas, devendo apenas constatar fatos. Nesse diapasão, podemos mencionar as lições de Rubem Alves:

[...] Os indivíduos, ao contrário, se caracterizam por este fato trágico e grandioso: sua decisão de ser diferentes do que são. Isso os torna dolorosa e maravilhosamente particulares, neuróticos e sofredores, capazes de criar a arte, de amar, de se sacrificar, de fazer revoluções e se entregar às causas mais loucas, de cometer suicídio. Mas são essas variações, entretanto, que jazem fora do campo da ciência. Porque a ciência, em sua busca de leis e uniformidades, só pode lidar com tipos (grifo do autor). (ALVES, 2012, p. 115).

Neste ponto, nos deparamos com a teoria tridimensionalista de Miguel Reale (1986), o qual considera o Direito como o conjunto de três aspectos: fato, valor e norma. Dessa forma, a tridimensionalidade funcional do saber jurídico (REALE, 1986) enxerga a norma como o resultado da valoração dos fatos sociais, onde os três aspectos acima citados coexistem de forma dialética, demonstrando-se mais uma vez o lado artístico desse conhecimento.

Outrossim, devemos vislumbrar o Direito como um objeto claramente cultural, pois de acordo com determinado país ou espaço temporal, certos comportamentos podem ser qualificados pelo ordenamento jurídico, o que não, necessariamente, ocorrerá em outra cultura. Aqui, demonstra-se a ausência de universalidade do conhecimento do jurídico, excluindo-se mais uma vez o caráter de ciência do Direito e ressaltando o elemento arte à atividade.

Nas esteiras do conhecimento jurista francês de Michel Villey, este conclui:

Pode haver uma ciência do direito, tomando esta palavra em sentido estrito, se o direito for um conjunto de fatos: ciência das leis do Estado existentes, ou então ciência das sentenças dos juízes. Ao contrário, se o direito não tem realidade positiva, mas é um valor a ser buscado, melhor seria falar de arte jurídica: e a extensão e método das investigações serão diferentes (VILLEY, 2009, p. 5 – 6).

E Villey não se encontra sozinho em seu posicionamento, sendo acompanhado por Pedro Lessa (1992), o qual considera as regras de direito como preceitos artísticos, normas para fins práticos, determinações, ordens, que se impõe à vontade, não se confundindo com afirmações científicas, que se dirigem à inteligência.

Cabe-nos ainda trazer à baila a visão de Paulo Ferreira da Cunha (2005), o qual enxerga o Direito como um fenômeno a ser analisado segundo uma tríplice perspectiva, qual seja, técnica, ciência e arte, obtendo a partir isso a conclusão de que é a arte que comanda a vida do Direito, enquanto a ciência e a técnica são suas servidoras imprescindíveis.

Sem deixar de mencionar, que o Direito enquanto arte encontra-se intrinsecamente relacionado à literatura, vez que este conhecimento reflete um contar de histórias:

Ainda, não se pode olvidar que o Direito é um “contar” de histórias. Assim como os antigos perpassavam o conhecimento por intermédio da oralidade, um processo judicial é, além de conhecimento (processo de conhecimento), um conjunto de histórias contrapostas uma à outra. Sua lógica sequenciada permite ao juiz a compreensão do acontecimento dos fatos, da mesma forma que uma boa obra literária reporta o leitor ao entendimento linear de sua narração. A correta narrativa judicial é, portanto, um meio de se assegurar uma decisão que estabilize as expectativas lançadas pelas partes em um procedimento judiciário. Dessa forma, resulta factível que a observação do Direito como Literatura pode trazer novos parâmetros de interpretação da “realidade” jurídica constitucional, sendo capaz de inovar em um terreno que há muito carece de novas idéias (SCHWARTZ; MACEDO,2008, p. 1026-1027).

Da mesma forma leciona Marga Inge Barth Tessler (2013, p. 10) ao considerar que “como arte educativa, a literatura contribui para a formação do direito, abrindo perspectivas novas, e especialmente para a atividade interpretativa, por sua perspectiva humanizadora”.

A partir disso, verifica-se a clara relação entre a disciplina do Direito, que se mostra como um elemento narrativo e a literatura, uma das perspectivas da arte, afinal a cada nova decisão proferida o magistrado baseia-se em seus precedentes, constituindo-se como um romancista em série.

Em suma, devemos superar a visão de que o Direito é um elemento separado da sociedade, mostrando-se a visão artística do conhecimento jurídico como a mais ampla e completa vez que abarca os demais, quais sejam ciência e técnica, demonstrando o caráter artístico do mundo do Direito.


CONCLUSÃO 

Podemos denotar que antes a visão do Direito possuía uma abordagem mais retórica e com o positivismo ocorre uma abertura desta perspectiva, levando alguns a defenderem o campo científico, outros o da técnica ou tecnologia e outros, ainda, o da arte, não havendo uma compreensão uníssona sobre o tema, apesar de o posicionamento científico ser predominante entre os juristas, como para Hans Kelsen, por exemplo.

Sob essa perspectiva, constata-se que no mundo contemporâneo ocorreu à transformação da ciência em técnica e da técnica em tecnologia, pois o conhecimento científico está voltado à lógica da invenção e construção de objetos teóricos, estando cada vez mais atrelado a citada tecnologia e esta última a produção de conhecimento, retratando uma interação. Sem deixar de mencionar, que como já salientado técnica nos remete a arte, a qual abarca os dois outros elementos: ciência e técnica.

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Assim, conforme o exposto, claro se torna o fato de que o Direito e arte estão conectados, sendo esta a definição mais ampla capaz de abarcar a completude deste conhecimento, já que este é por demais complexo para se restringir à normatividade ou a simples aplicação da lei ao caso concreto, senão se resumiria a mera técnica.

Dessa maneira, Direito e arte sempre andaram afinados no discurso e estranho seria se assim não sucedesse, pois a forma de percepção dessas duas esferas sofre, indiscutivelmente, a influência histórica do pensamento das sociedades, que transpassa todas as produções culturais e as ciências, deixando verdadeiras impressões digitais a identificar a congruência dos diversos campos do saber (PORCHER JÚNIOR, 2006).

Portanto, o Direito enquanto arte se revela como algo inacabado, em constante formação de acordo com o período e os anseios sociais, refletindo-se como uma arte redefinida, intrinsecamente relacionada com a literatura, que contribui para a formação do Direito, abrindo-lhe novas perspectivas. Logo, conforme se depreende das sábias palavras de Ronald Dworkin (2000, p. 237-238), “o Direito retrata uma criação contínua, um romance cujo enredo não possui um final único e sim um último ‘contador”.


REFERÊNCIAS

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CUNHA, Paulo Ferreira da. Anti-Leviatã. Direito, Política e Sagrado. Porto Alegre : SAFE, 2005.

CUNHA, Renan Severo Teixeira da. Introdução ao estudo do direito. Campinas – SP: Editora Alínea, 2008.

DINIZ, Maria Helena. A Ciência Jurídica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 2012.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação. São Paulo: Saraiva, 1973.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 4. ed. Curitiba: Editora Positivo: 2009.

GOMES, Orlando. A crise do direito. São Paulo: Max Limonad Editor, 1955.

LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Trad. Fátima de Sá Correia et. al. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

LESSA, Pedro Lessa. Estudos de Philosophia do Direito. Rio de Janeiro: Editora Obra Prima, 1912.

MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 1ª ed., v. II. Lisboa: Editorial Confluência, 1952.

PORCHER JÚNIOR, Roberto Ernani. Direito e Arte: intersubjetividade e emancipação pela linguagem. Rio Grande do Sul, 2006. (Trabalho de Conclusão de Curso). Curso de graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul 2006. Disponível em:<http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2006_2/roberto_ernani.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2014.

SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 16. ed. Porto – Portugal: Edições Afrontamento, 1987.

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

TESSLER, Marga Inge Barth. Justiça também se faz com literatura O acesso ao livro – um direito cultural. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 57, dez. 2013. Disponível em:<http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao057/Marga_Tessler.html>. Acesso em: 21 jun. 2014.

VARGAS, Milton. Técnica, tecnologia e ciência. Ciência e tecnologia: informativo semanal da radiobrás. Disponível em:<http://www.radiobras.gov.br/ct/artigos/1999/artigo090799.htm.>. Acesso em: 09 jun. 2014.

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. 2. ed. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

SCHWARTZ, Germano; MACEDO, Elaine Harzheim. Pode o Direito ser Arte? Respostas a Partir do Direito & Literatura. In: XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI, 2008, Salvador. Anais do Conpedi. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 1013-1031. Disponível em:<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/germano_schwartz.pdf>. Acesso 09 jun. 2014.

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