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O caráter punitivo das indenizações por danos morais:

adequação e impositividade no direito brasileiro

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01/11/2002 às 00:00
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SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Distinção entre os punitive damages e o caráter punitivo das indenizações por danos morais no Brasil; 3. Adequação e impositividade do caráter punitivo no sistema da responsabilidade civil do direito brasileiro ; 4. O arbitramento do valor indenizatório ; 5. Há mesmo no Brasil uma "indústria do dano moral" ? 6. Conclusões ; 7. Referências Bibliográficas; 8. Bibliografia consultada.

"...O romano Nerácio passeava pelas ruas de Roma, acompanhado de um escravo, encarregado de pagar a taxa legal pelas bofetadas que se divertia em vibrar nos transeuntes. Durante a guerra peninsular, um oficial do exército inglês costumava penetrar a cavalo numa feira de Coimbra, quebrando com chicote os objetos de barro em exposição e ganhando a impunidade pela indenização..."

(apud Roberto Lyra, Comentários ao Código Penal, Forense, 3ª ed.,vol. II, nº 33, pgs. 246/247)


1. INTRODUÇÃO.

Vigentes os altos mandamentos da Constituição Federal, tornou-se expresso e incontestável no ordenamento jurídico brasileiro o direito a indenização por danos morais.

Esgotada a discussão sobre o tema específico da indenizabilidade, deslocou-se a abordagem teórica e prática para os aspectos informadores da valoração dos danos morais e, com mais arraigada força, para a quantificação da indenização a ser paga pelo responsável e obrigado à indenização.

Revelando-se minimamente eficazes as indenizações concedidas, e concentradas as condenações sobre renitentes setores da sociedade que teimam em não se adequar ao consagrado princípio geral de direito que prescreve ser conduta desejada e esperada toda aquela que não causa dano a outrem, a mira das discussões passou ser o valor das indenizações, e bem assim os critérios adotados pelos juízes para o arbitramento do valor indenizatório.

Surgem então teses e teorias que objetivam desqualificar a validade jurídica da aplicação do valor de desestímulo, assim obtido por meio da imposição de caráter punitivo às indenizações da espécie, em suma sob os seguintes argumentos :

a)o caráter punitivo no Brasil é mera cópia dos "punitive damages" do direito norte-americano ;

b)o caráter punitivo não é compatível com o sistema jurídico brasileiro porque, sendo uma pena, não há prévia cominação legal ;

c)sendo pena, o caráter punitivo tem feições criminais, estando assim os juízes cíveis usurpando competência exclusiva dos juízes criminais ;

d)os valores das indenizações por danos morais aplicados no Brasil têm sido milionários, justamente por causa da adoção do valor de desestímulo, gerando enriquecimento ilícito para quem recebe tais valores ;

f)a indenização por danos morais deve apenas compensar o dano, na sua exata extensão, daí porque também não ser cabível o caráter punitivo agregado ao compensatório ;

g)o acolhimento indiscriminado das ações judiciais tem colaborado para a banalização do instituto indenizatório, fomentando no seio da Justiça brasileira uma "indústria dos danos morais".

Procuraremos demonstrar neste estudo que os argumentos acima arroladas contém equívocos conceituais e sistêmicos que os tornam inválidos perante o ordenamento jurídico vigente e que, ademais, não correspondem em termos práticos à realidade refletida nas causas submetidas ao crivo judicial.


2. DISTINÇÃO ENTRE OS PUNITIVE DAMAGES E O CARÁTER PUNITIVO DAS INDENIZAÇÕES POR DANOS MORAIS NO BRASIL.

Leciona Vicente Ráo (O Direito e a Vida dos Direitos, RT, pg. 459), que, antes de alcançar a adaptação do fato ou caso concreto ao comando da lei, deve o estudioso do fenômeno jurídico ultrapassar cinco fases operacionais : a) a análise direta do fato, ou diagnóstico do fato ; b) sua qualificação perante o direito, ou diagnóstico jurídico ; c) a crítica formal e a crítica substancial da norma aplicável ; d) as interpretação desta norma ; e) sua aplicação ou adaptação ou fato, ou caso concreto.

Ocorrendo falha ou desvio neste percurso, não será de boa técnica expressar conclusões valorativas porque restará prejudicada a suma interpretativa que se queira conferir a um determinado fenômeno jurídico.

Comprometido com este método de enquadramento jurídico do instituto da indenização em análise, o foco inicial deste estudo está direcionado ao fim de distinguir a dimensão jurídica dos punitive damages aplicados no direito norte-americano daquela alcançada pelo caráter punitivo das indenizações por danos morais no direito Brasileiro.

Objeta-se quanto ao cabimento da adoção do valor de desestímulo, entendendo-se estar sendo aplicado no Brasil tal e qual os "danos punitivos" – punitive damages - dos norte-americanos, inclusive como que por uma tosca imitação e sem maiores preocupações de adequação ao sistema jurídico brasileiro.

Não sem motivo grafamos com aspas a locução "danos punitivos".

É que a tradução livre do inglês "punitive damages" conduz a uma expressão vazia e desprovida de conteúdo significativo no campo jurídico brasileiro.

Ao pé da letra "punitive damages" quer significar punição por decorrência dos danos, por causa dos danos.

Assim, nos moldes aportuguesados, dá-se a impressão de que, com o valor indenizatório, se estaria impingindo um "dano ao causador do dano", com carga vingativa, estritamente emulativa, o que absolutamente não se coaduna com o sistema de responsabilidade civil do direito brasileiro.

Embora assemelhado aos punitive damages do direito norte-americano, o caráter punitivo adotado no Brasil dele se diferencia em forma e substância, sendo em nossa terra de fato mais bem aperfeiçoado e eficaz, em termos jurídicos e práticos.

No Brasil destaca-se o caráter punitivo como fator de desestímulo por meio da imposição de um valor suficiente a servir como uma efetiva punição ao agente lesante, a ponto de demovê-lo de novas práticas lesivas da mesma espécie ou diversa.

Frisamos que falar em desestímulo não implica em admitir a imposição de vingança, pois quem se vinga não quer, em primeira linha e primordialmente, educar o agressor, mas apenas retrucar-lhe o mal causado com outro mal que o aflija.

Desestimular é fazer perder o estímulo, ou ao menos esmaecer a incitação ou propensão do indivíduo às atividades aptas a causar danos morais.

Punir é impor reprimenda, castigar.

Aquele é o fim almejado ; este é o meio utilizado.

Pune-se o indivíduo para desestimulá-lo da prática infracional.

Noções distintas, portanto, mas que por traduções livres ou diretas do inglês têm sido confundidas e tratadas como conceitualmente iguais.

Por outro lado, no dito sistema alienígena, agrega-se ao valor estritamente compensatório direcionado à satisfação relativa da vítima – aqui expressão do atendimento ao interesse particular - um valor punitivo concernente ao comando repreensivo e vingativo imposto pelo interesse social, a título sobretudo exemplar, dando-se por forma diferida a aferição dos valores pecuniários : primeiro, fixa-se o montante compensatório e depois estabelece-se o "dano punitivo".

Os "danos punitivos" dos norte-americanos, invariavelmente ultrapassam em muito o valor compensatório, e são apontados de modo destacado através de deliberação do jury, nos casos mais graves segundo o grau de culpa do agente ofensor e o sentimento de reprovabilidade social.

Portanto, desde logo distingue-se o chamado "valor de desestímulo", que é a tônica no Brasil, dos punitive damages norte-americanos.

Mas ainda assim apontam ser a indenização por danos morais no Brasil como uma mal acabada importação do direito estrangeiro, quando aqui se adota o dito caráter punitivo.

Temos que, em verdade, no Brasil o instituto é mais bem estruturado, melhor aplicado e mais eficaz.

Dois aspectos assim o demonstram.

Nos Estados Unidos, a análise do cabimento e a quantificação dos "punitive damages" são tarefas atribuídas aos júris populares, formados por cidadãos em regra leigos em ciências jurídicas, sem domínio da técnica legislativa e jurídica, e, portanto, capazes de expressar apenas juízo de valor empírico, e sem fundamento científico sobre as normas.

Fica realçado o caráter vingativo da punição aplicada.

No Brasil, a tarefa da análise do cabimento e da quantificação do valor indenizatório é reservada aos Juízes de Direito, Desembargadores dos Tribunais e Ministros das altas Cortes, profissionais com formação técnico-jurídica e portando preparadas para o cotejo minucioso dos fatos com a lei.

Não há resquício de vingança, mas apenas obediência às normas e princípios basilares do sistema jurídico, que indicam a necessidade de compensação e desestímulo - este por meio da punição agregada – tudo mediante elaboração condenatória fundamentada e motivada.

Nos Estados Unidos, vigora uma arraigada cultura do seguro e do resseguro, de modo que em grande parte dos casos de aplicação dos "punitive damages", de pequeno ou vultoso valor relativo, o peso da condenação, na prática e em última instância, recai sobre a corporações seguradoras – ainda que os valores dos prêmios de seguro tendam a aumentar para os segurados - de modo que, a rigor, o caráter punitivo se desvia em parte, pois que o causador do dano acaba não suportando em sua totalidade um efetivo desfalque em suas finanças.

Desta forma, o montante global das condenações a título de "punitive damages" tende a concentrar-se sobre as seguradoras, que por isso fomentam a reformulação do sistema jurídico da indenizações civis naquele País (a "tort reform").

No Brasil, inocorrendo ainda a cultura do seguro, as indenizações por danos morais em regra são efetivamente suportadas pelo próprio causador do dano, de forma que o caráter punitivo e desestimulador, aqui, funciona com muito mais eficácia, pulverizando-se entre os agentes lesionadores e incidindo diretamente sobre suas finanças.


3. ADEQUAÇÃO E IMPOSITIVIDADE DO CARÁTER PUNITIVO NO SISTEMA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO DIREITO BRASILEIRO.

Partindo da premissa posta no tópico anterior, opõe-se a tese de que os "danos punitivos" não seriam compatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro porque, significando uma verdadeira pena imposta ao responsável pelo dano, toma feições de sanção criminal, no que estaria sendo vulnerado o primado constitucional de que não se pode aplicar pena sem prévia cominação legal, como estaria a exigir o artigo 5°, inciso XXXIX, da Constituição Federal, e aduzindo-se, sob outra ótica, que assim fazendo, estariam os juízes cíveis usurpando competência exclusiva dos juízes criminais.

A dificuldade dos que assim entendem surge da submissão irrefletida, em termos mais amplos, à "Teoria Pura do Direito" de Hans Kelsen.

Seguindo o sistema jurídico brasileiro os moldes do sistema romano-germânico, afirma Guido Fernando Silva Moraes (Common Law – Introdução ao Direito dos EUA. RT,1.999, pg.29/30), que

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"...O pensador que melhor caracteriza o sistema romano–germânico é Hans Kelsen, com sua Teoria Pura do Direito : o direito é uma construção escalonada (stufenbau), tão racional e geométrica que, por isso mesmo, tem a forma de uma pirâmide, mo ápice da qual se encontra uma norma fundamental (Grundnorm), a partir da qual as normas menos gerais retiram sua eficácia e vão perdendo sua generalidade, até aquelas normas colocadas na base (os contratos e as sentenças) em que o princípio geral guarda sua eficácia, após percorrer outros campos de particularismos ( a constituição, a lei ordinária, o artigo...)" e segue advertindo que "... Os perigos em tal tipo de sistema se referem ao culto desmesurado à lógica formal e à racionalidade da construção dedutiva, tida como válida por seu próprio rigor arquitetural, por ela mesma válida, porque racional e coerente dentro do raciocínio abstrato, mas com um acentuado desprezo pelos resultados, na vida corrente."

Sob este vezo positivista, admitem-se como válidas, eficazes e compatíveis entre si e com o ordenamento, apenas as normas expressas literalmente pela letra da lei, sem consideração do que está implícito e que, justamente, diz com os princípios maiores que informam o sistema.

Daí porque não ser concebível para alguns a aplicação de uma condenação implicitamente punitiva, e portanto com feições de pena privada, nas indenizações por dano moral, quando somente conseguem visualizar a prévia cominação delas no campo estritamente criminal.

Ocorre que o primado da necessária prévia cominação de pena imposta pela Constituição Federal, como referido, em seu artigo 5°, XXXIX,(01) dirige-se ao direito criminal, pois que serão considerados crimes e contravenções aquelas condutas comissivas ou omissivas descritas pormenorizadamente e decodificadas em numerus clausus no corpo da legislação específica infra-constitucional.

A imposição da pena criminal reclama, assim, a prévia adequação do fato específico à norma tipificadora.

Esta exigência se justifica pelo grau e destinação da sanção cominada : verificado o ato (materialidade), a tipicidade e a culpabilidade, a pena incidirá diretamente sobre a pessoa do agente, privando-o da liberdade ou, cumulativamente ou não, impondo-lhe pena pecuniária.

No campo da responsabilidade civil o comando punitivo vigora de forma diversa, e quem assim não observa desconsidera, já em ponto inicial, a existência de um preceito genérico punitivo contido no artigo 159 do Código Civil ainda vigente, que prescreve :

"Art.159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano(02)."

O mesmo preceito é reiterado no novo Código Civil :

"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito, ( arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo."

O Código Civil antigo e o novo, desta forma, encerram o comando genérico da reparação civil dos danos com carga punitiva, sem necessidade de enumeração das hipóteses de fato e de direito hábeis a ensejar a obrigação de indenizar.

Atento à questão, Yussef Said Cahali (Dano Moral, RT, 2ª ed., pgs. 33 a 40) argumenta :

" No que contesta a reparabilidade do dano moral, argumenta-se que, se concedida a indenização no caso, esta teria caráter de pena, incompatível assim com o direito privado, na medida em que não visaria a recomposição do patrimônio ofendido... Aliás, na jurisprudência de nossos tribunais, afirma-se que " o direito possui valor permutativo, podendo-se, de alguma forma, lenir a dor com a perda de um ente querido pela indenização, que representa também punição (grifo nosso) e desestímulo do ato ilícito" ; o que também transparece nítido no caráter admonitório e circunstancial da carga indenizatória... Atribui-se também à jurisprudência romana o mérito de haver iniciado validamente o movimento de "despenalização" total do direito privado, tendente a eliminar dele todo elemento penalístico, com a construção de um ilícito aquiliano apenas e tão-somente de caráter reipesercutório. Porém, essa tendência, segundo reconhece Albanese, não pode ser considerada plenamente realizada e satisfeita..."Visualizando a interação do direito privado com o público, arremata o mestre : "...Em realidade, parece mais acertado dizer-se que o mecanismo protetivo da norma geral de ressarcimento ou reparação - neminem laedere(03) – caracteriza-se pela natureza mista... Quando por exemplo o Código Civil diz, no artigo 159, que "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano", está desta forma indicando "qual è la reazione dell’ordinamento giuridico alla commissione del fatto illecito, razione che, in quanto tale, ha caracttere sanzionatorio." O dever de indenizar representa por si a obrigação fundada na sanção do ato ilícito. A regra neminem laedere insere-se no âmago da responsabilidade civil...na solução dos interesses em conflito, o direito, como processo social de adaptação, estabelece aquele que deve prevalecer, garantido-o através de coerção até mesmo física, preventiva ou sucessiva, que não é desconhecida também no direito privado....Assim, pode acontecer que, para induzir alguém a que se abstenha da violação de um preceito, o direito o ameace com a cominação de uma mal maior do que aquele que lhe provocaria a sua observância...Nesse caso – assinala Carnelutti – tem-se a sanção econômica do preceito ; e os meios de diferentes espécies, que visam assegurar a observância do preceito, recebem justamente o nome de sanção, pois sancionar significa precisamente tornar qualquer coisa, que é o preceito, inviolável e sagrada..."

Após referir-se ao caráter aflitivo conjugado ao satisfativo como característicos da sanção implícita na obrigação de indenizar, continua e completa o Mestre :

"O direito moderno sublimou, assim, aquele caráter aflitivo da obrigação de reparar os danos causados a terceiro, sob a forma de sanção legal que já não mais se confunde – embora conserve certos resquícios – com o rigoroso caráter de pena contra o delito ou contra a injúria, que lhe emprestava o antigo direito, apresentando-se agora como conseqüência civil da infração de conduta exigível, que tiver causado prejuízo a outrem...Aliás, segundo registra Hugueney, são numerosas as manifestações do direito moderno, apoiadas na tradição histórica do caráter punitivo da sanção legal, não só em matéria de responsabilidade civil, como igualmente em outros domínios do direito privado...nessas condições, tem-se portanto que o fundamento ontológico da reparação dos danos morais não difere substancialmente, quando muito em grau, do fundamento jurídico do ressarcimento dos danos patrimoniais, permanecendo ínsito em ambos os caracteres sancionatório e aflitivo, estilizados pelo direito moderno.."

No mesmo sentido é o entendimento de Carlos Alberto Bittar (Reparação Civil por Danos Morais, RT. 3ª ed., pg. 26. ), ao discorrer sobre a necessidade da reparação específica :

"Mas interessa também ao lesado a reconstituição de sua situação pessoal, ou, pelo menos, a minoração dos sacrifícios suportados por força de danos ocorridos. Importa, por fim, atribuir–se ao lesante os reflexos negativos resultantes de sua atuação, diante da subordinação necessária à manutenção da tranqüilidade social. Nessa linha de raciocínio, preenche a teoria em estudo os fins de chamar à reparação o lesante e sancioná-lo pelos danos produzidos a outrem, realçando-se, em sua base, a forte influência da Moral." ( grifamos )

Do mesmo sentir compartilha CAio Mário da Silva Pereira (Responsabilidade Civil, 9ª ed., Forense, 1.990, pg. 60), ao abordar os fundamentos da indenização por danos morais :

"O problema de sua reparação deve ser posto em termos de que a reparação do dano moral, a par do caráter punitivo imposto ao agente, tem de assumir sentido compensatório..." (g.n.)

Veja-se : para o Mestre Caio Mário o caráter punitivo é mesmo suposto, subentendido na norma e precedente ao aspecto compensatório da indenização.

Também Maria Helena Diniz (Curso de Direito Civil Brasileiro, Saraiva, 11ª ed. 1° V, pg. 292) enfatiza a sanção civil encarnada na reparabilidade do ato ilícito, ao lado da função compensatória :

"...quando a vítima reclama a reparação pecuniária em virtude de dano moral que recai sobre a honra, no profissional e família, não pede um preço para sua dor, mas apenas que se lhe outorgue um meio de atenuar, em parte, as conseqüências do prejuízo. Na reparação do dano moral, o dinheiro não desempenha a função de equivalência, como no dano material, porém, concomitantemente, a função satisfatória e a de pena..." ( grifamos )

A rigor, falar em compatibilidade do caráter punitivo neste contexto não é a forma mais correta de abordagem do tema, pois o que é do próprio corpo e com ele funciona guarda com este relação de adequação, e não de compatibilidade. Não haveria sentido em tratarmos da compatibilidade ou incompatibilidade do coração que bate no peito de um ser com o próprio corpo deste ser, a menos que advenha este coração de outro corpo e esteja implantado.

Tome-se em conta, ainda, que pena, como sanção, não é vocábulo exclusivo da seara criminal.

Em análise mais abrangente sobre a normatividade do sistema jurídico, Tercio Sampaio Ferraz Junior (Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação, Atlas, 2ª ed., pg. 145.leciona) :

"...Deste modo, porém, a imputação de penas é comum ao Direito Civil, tradicionalmente privado, e ao Direito Penal. A única circunstância plausível para distinguir as sanções civis e as penais está em que as relações sancionadaas com as últimas ( a propriedade, a honra, a liberdade) são consideradas de tamanha relevância, estando em jogo um interesse público tão manifesto, que a elas se atribuía natureza de direito público..."

Sim, porque existem penas civis, criminais e administrativas.

Basta ver que o próprio Código Civil prevê inúmeras penalidades, sanções mesmo, com caráter aflitivo pela desobediência a um seu comando.

O Código Civil de 1.916 refere-se mesmo à cláusula penal no artigo 916, sem que haja, ali, qualquer relação com crime. O mesmo ocorre nos artigos 408 e seguintes do novo Código Civil.

Há outros aspectos.

No campo criminal, há a necessidade de prévia positivação e sistematização dos fatos tipificados como ilícitos criminais devido ao interesse público e social prevalecente, e à vista da invasividade drástica das penas – privação de liberdade do indivíduo - de modo que o sancionamento deve ser precedido da taxatividade das normas incriminadoras, em numerus clausus, nos termos da Constituição Federal, do Código Penal, da legislação especial e da legislação esparsa.

No domínio estritamente civil, a multiplicidade e a complexidade das relações estabelecidas no convívio social são tamanhas, que não seria possível enumerar previamente, com tal taxatividade descritiva, todas as condutas omissivas ou comissivas revestidas de potencial suficiente ao cometimento de ilícito hábil à geração de dano moral e da obrigação de indenizar. Ademais, prepondera aqui o interesse particular, sem exclusão, é certo, do interesse social. Assim porque, verificados a culpa (lato sensu), o dano e o nexo de causalidade, a sanção recairá não sobre a pessoa do lesante, mas sobre seu patrimônio, apenas.

A admitir-se a exigência de prévia cominação legal, em rol taxativo, da pena aflitiva no âmbito da responsabilidade civil, sem consideração ao preceito geral punitivo implícito no artigo 159 do Código Civil Brasileiro, a indenizabilidade dos danos morais ficaria condicionada à vigência de uma espécie de "Código dos Ilícitos Civis", onde se descreveriam, em abstrato e por sistematização articulada, os tipos causadores de danos morais, o que contrariaria a própria estrutura do direito civil brasileiro.

Bem por isso Caio Mário da Silva Pereira (op.cit., p.58) se refere à previsão constitucional ampla e genérica no tocante aos danos morais :

"...A Constituição Federal de 1988 veio pôr uma pá de cal na resistência à reparação do dano moral. O art. 5º, no X, dispôs: ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito da indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação’. Destarte, o argumento baseado na ausência de um princípio geral desaparece. E assim, a reparação do dano material integra-se definitivamente em nosso direito moral. É de acrescer que a enumeração é meramente exemplificativa, sendo licito à jurisprudência e à lei ordinária editar outros casos. Com efeito: Aludindo a determinados direitos, a Constituição estabeleceu a mínima. Não se trata, obviamente de "numerus clausus", ou enumeração taxativa. Esses, mencionados nas alíneas constitucionais, não são os únicos direitos cuja violação sujeita o agente a reparar. Não podem ser reduzidos, por via legislativa, porque inscritos na Constituição. Podem, contudo, ser ampliados pela legislatura ordinária, como podem ainda receber extensão por via de interpretação, que neste tear recebe, na técnica do Direito Norte-Americano, a designação de "construction". Com as duas disposições contidas na Constituiçãode 1988 o princípio da reparação do dano moral encontrou o batismo que o inseriu em a canonicidade de nosso direito positivo. Agora, pela palavra mais firme e mais alta da norma constitucional, tornou-se princípio de natureza cogente o que estabelece a reparação por dano moral em o nosso direito. Obrigatório para o legislador e para o juiz..." ( grifamos )

Basta notar que no título referente aos atos jurídicos, a partir do artigo 81, o Código Civil traça apenas os fundamentos gerais e os aspectos genéricos a serem obedecidos como condição de sua licitude.

Depois, no artigo 159, ainda de forma genérica, prescreve o balizamento para a aferição da ilicitude dos atos civis, aos quais nem mesmo, a rigor, confere o status de ato jurídico.

Portanto, no tocante ao caráter punitivo das indenizações por danos morais, não há conflito entre o mundo civilista privado e o mundo criminalista público, sendo perfeitamente cabível a imposição de pena aflitiva ao causador dos danos desta natureza, tal como indica o caráter punitivo que se lhe imprime já implicitamente o sistema como um todo e o artigo 159 do Código Civil.

Leve-se também em conta que a tão só previsão legal autorizativa da sanção punitiva não basta para servir de desestímulo ao potencial agente de uma lesão de natureza moral.

A norma em abstrato, definitivamente, não constrange por si só à sua obediência. Há que se impor sanção, como forma de coerção.

Ensinando com a sua peculiar autoridade, o Mestre Gofredo Telles Junior assim discorre sobre a coerção psíquica da norma, em seu " Iniciação na Ciência do Direito ", às pgs. 95/96 :

" Poder-se-ia pensar, quem sabe, que a norma jurídica exerce coação pelo simples fato de existir. Estando em vigor, a norma intimida: todos têm receio de violá-la. Essa intimidação, esse receio constituem uma coerção psíquica, que a norma exerce sobre toda a coletividade. E tal coerção é uma forma que também se poderia chamar de coatividade. Considerada como contínua coerção psíquica, essa coatividade pareceria definir, com propriedade, a norma jurídica, porque ela existiria independentemente de qualquer violação do Direito. Com tal acepção, a coatividade constituiria uma qualidade da norma jurídica, ainda mais característica, quem sabe, do que a qualidade autorizante dela. Um flagrante equívoco, porém, invalida essa teoria. O que intimida, o que causa receio, não é, certamente, a própria norma, mas a idéia do que poderá ocorrer, como conseqüência da viola ção da norma. A intimidação e o receio, inibidores da violação, não se prendem diretamente à norma jurídica. Resultam, isto sim, da previsão das providências que, autorizado pela norma violada, o lesado poderá tomar contra o violador. O que intimida, o que causa receio, não é a norma jurídica, não é a regra num pedaço de papel, O que intimida, o que causa receio, é a reação do lesado, após a ação violadora da norma; é a coação legal, que o lesado fica autorizado a exercer. O violador potencial não tem medo da norma. Ele tem medo do lesado. Logo, se alguma coerção psíquica existe, ela é exercida pela eventual previsão, feita na mente de algum violador potencial, das conseqüências prováveis de um ato ilícito..."

De fato, compreendida a função punitiva como ínsita ao preceito geral da obrigação de indenizar no campo da responsabilidade civil, o valor da indenização deverá abranger ambos os fatores : compensatório e desestimulador. Somente assim a coercitividade terá vida prática.

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Sobre o autor
Osny Claro de Oliveira Junior

juiz de Direito em Porto Velho (RO)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA JUNIOR, Osny Claro. O caráter punitivo das indenizações por danos morais:: adequação e impositividade no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3547. Acesso em: 24 abr. 2024.

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