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Manifesto abolicionista penal.

Ensaio acerca da perda de legitimidade do sistema de Justiça Criminal

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01/11/2002 às 00:00

Resumo:


  • A era burguesa é marcada por mudanças contínuas na produção e na sociedade, onde o constante movimento e a insegurança são características distintas, conforme expresso por Marx e Engels em 1848.

  • O abolicionismo penal é uma corrente que defende a abolição do sistema penal, considerando-o ineficaz e injusto, e propõe alternativas para a resolução de conflitos sociais.

  • As propostas abolicionistas variam em suas abordagens e fundamentações teóricas, incluindo influências do marxismo, fenomenologia e estruturalismo, e enfrentam críticas sobre sua capacidade de lidar com questões como o terrorismo e a violência.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

2. Direito Penal – da busca por legitimidade

2.1 Legitimidade e Legalidade

A busca da legitimidade pelo sistema penal, quando um pouco mais aprofundada constata-se não passar de uma ficção jurídica, que, o sistema penal utilizando-se da legalidade, procura fundir os dois conceitos. A intenção do sistema penal é de uma fusão entre os princípios da legalidade e legitimidade, de forma, a criar uma visão virtual da legitimidade. Passa-se a enxergar, puramente, a legalidade, como sendo a legitimidade.

Para ZAFFARONI [16], o que existe é uma utópica legitimidade do sistema penal. O sistema penal é uma complexa manifestação do poder social. Por legitimidade do sistema penal entende-se a característica outorgada por sua racionalidade. O poder social não é algo estático, que se "tem", mas algo que se exerce – um exercício – e o sistema penal quer se mostrar como um exercício de poder planejado racionalmente.

O debate em torno do discurso jurídico penal de racionalidade não suporta uma construção teórica de um planejamento, o qual, o sistema penal procura demonstrar para expor sua legitimidade, seja através da ciência penal, do discurso jurídico-penal, ou da ciência do direito penal, o sistema penal não consegue provar sua racionalidade, pois, ele próprio não atua em conformidade com aquele planejamento proposto. O sistema penal desdiz o próprio sistema penal, pregando e negando, ao mesmo tempo, o próprio planejamento, o que faz com que, exponha a sua própria ilegitimidade.

Há de ser identificado que, a "expressão ‘racionalidade’ requer sempre uma precisão, por ensejar uma alta margem de equívoco. O uso abusivo dessa expressão obriga-nos a prescindir aqui da totalidade da discussão a respeito, para reduzir o conceito de racionalidade com que trabalhamos: a) à coerência interna do discurso jurídico-penal; b) ao seu valor de verdade quanto à nova operatividade social. O discurso jurídico-penal seria racional se fosse coerente e verdadeiro." [17]

Há de se proclamar o entendimento de que a coerência interna do discurso jurídico-penal identificada por ZAFFARONI, não tem seu momento de esgotamento em sua própria complexidade lógica, mas, precisa de uma análise antropológica, que de maneira fundamental, exige uma permanente situação de não-contrariedade, para usar uma expressão do pensador latino-americano o direito serve ao homem, e não o contrário. O que faz surgir o entendimento, de que o exercício do poder do sistema penal, requer sempre, a identificação e constatação dessa antropologia filosófica básica ou ontológica regional do homem. [18]

O que ocorre aqui não é uma viagem ao passado para sustentar – nos dias atuais – uma supremacia metafísica em relação à positivação jurídica da referida antropologia. Mesmo, por que, não é possível negar a existência de uma materialização existente em diversos diplomas internacionais de proteção e defesa dos direitos humanos.

O que se pode afirmar é que, a coerência interna do discurso jurídico-penal é questionada – de forma contundente – por uma fundamentação antropológica, pois, evidencia-se a negação da coerência de tal discurso jurídico, "quando se esgrimem argumentos tais como: ‘assim diz a lei’, ‘a faz porque o legislador o quer’, etc." [19] O que faz constatar que tais expressões produzem prova da ausência total de construção racional, mandato de legitimidade, para o gozo e exercício de poder por parte do sistema penal.

Porém, a negação da construção de coerência do discurso jurídico-penal voltada para uma racionalidade, não pode esgotar-se em si mesmo. Ainda, que tenha uma fundamentação antropológica, o esgotamento de sua racionalidade deve está numa esfera externa, por constatar-se uma impossível realização social – discurso jurídico-penal – de seu programa.

É de lembrar-se que, "o discurso jurídico-penal é elaborado sobre um texto legal explicitando, mediante os enunciados da ‘dogmática’, a justificativa e o alcance de uma planificação na forma do ‘dever ser’, ou seja, como um ‘ser’ que ‘não é’. Para que este discurso seja socialmente verdadeiro, são requeridos dois níveis de ‘verdade social’: a) um abstrato, valorizado em função da experiência social, de acordo com o qual a planificação criminalizante pode ser considerada como o meio adequado para a obtenção dos fins propostos (não seria socialmente verdadeiro um discurso jurídico-penal que pretendesse justificar a tipificação da fabricação de caramelos entre os delitos contra a vida); b) outro concreto, que deve exigir que os grupos humanos que integram o sistema penal operem sobre a realidade de acordo com as pautas planificadoras assinaladas pelo discurso jurídico-penal (não é socialmente verdadeiro um discurso jurídico-penal quando os órgãos policiais, judiciais, do ministério público, os meios massivos de comunicação social, etc., contemplam passivamente o homicídio de milhares de pessoas)." [20]

O que pode ser falado, também, é que tanto o nível abstrato como o concreto pode receber diferentes expressões com uma ampliação do seu significado, o "nível abstrato de requisito de verdade social poderia chamar-se adequação de meio a fim, ao passo que o nível concreto poderia denominar-se adequação operativa mínima conforme planificação. O discurso jurídico-penal que não satisfaz estes dois níveis é socialmente falso, porque se desvirtua como planificação (deve ser) de um ser que ainda não é para converter-se em um ser que nunca será, ou seja, que engana, ilude ou alucina."

A ausência de legitimidade do sistema penal é materializada quando este se refugia no dever ser e abandona, separa-se e divorcia-se do ser.

Diante de tal constatação, o sistema penal procura suprir a legitimidade com a legalidade, que quer significar, a produção de normas reguladoras à luz de mecanismos antecipadamente determinados. A legalidade formal que serve como instrumento legitimador do sistema penal, sofre de um vazio legitimador inequívoco, por ora, procura um ponto de representação democrática para a produção da dogmática penal, por ora, um segundo ponto para a formulação de uma dogmática penal fundamental.

A legalidade formal como instrumento legitimador do sistema penal, vem ratificar a tese de que o sistema – por uma ausência total de legitimidade – não conseguiria manter-se em funcionamento. Diante de um Estado Democrático de Direito, a legalidade formal apresenta-se como a pilastra principal e fundamental de sustentação do sistema penal.

Para finalizar, comprova-se a realidade da tese de insustentável situação do sistema penal, quando se nota uma ausência total de proposituras no sentido de legitimar o sistema penal fora da legalidade formal, ou da dogmática penal.

2.2 Da deslegitimidade – negação à legalidade

Identifica-se que o termo "legalidade" suporta uma pluralidade semântica de maneira a extrair-se um sentido inequívoco para o sistema penal, qual seja, o de operacionalidade. Daí dizer-se que "o sistema penal não atua de acordo com a legalidade (...) a operacionalidade real do sistema penal seria "legal" se os órgãos que para ele convergem exercessem seu poder de acordo com a programação legislativa tal como a expressa o discurso jurídico-penal." [21]

Portanto, é da legalidade formal que o sistema penal retira sua sobrevivência, pois, diante de tal constatação urge uma irrefutável ilegitimidade do exercício do poder. Nem mesmo, a legalidade formal, consegue estabelecer um exercício de poder do sistema penal, que se possa afirmar ser "legal" e "legítimo" ao mesmo tempo, em face, principalmente, de uma nítida contradição na sua programação legislativa.

Sabedor disso o sistema penal, através do discurso jurídico-penal, procura retirar do conceito de legalidade formal – numa busca pela legitimidade de exercício de poder – o que pode identificar-se como "dois princípios: o de legalidade penal e o de legalidade processual (aos quais poder-se-ia somar o de legalidade executiva, ainda insuficientemente elaborado). O princípio de legalidade penal exige que o exercício do poder punitivo do sistema penal aconteça dentro dos limites previamente estabelecidos para a punibilidade. O princípio de legalidade processual exige que os órgãos do sistema penal exerçam seu poder para tentar criminalizar todos os autores de ações típicas, antijurídicas e culpáveis e que o façam de acordo com certas pautas detalhadamente explicitadas." [22]

Porém, uma análise um pouco mais aprofundada, da legislação penal, demonstra uma inequívoca situação de renúncia ou contrariedade à legalidade, situação esta, não identificada pelo discurso jurídico-penal. Isso acontece quando diante de uma efetiva minimização dogmática, de uma ambição pela administrativização, de exclusão de tutelas determinadas, de assistencialismos.

É de notar-se que o próprio sistema penal através de seu discurso jurídico-penal, efetua a exclusão de uma série de requisitos do poder de legalidade. "O exercício do poder de seqüestro e estigmatização que, sob pretexto de identificação, controle migratório, contravenções, etc., fica a cargo de órgãos executivos, sem intervenção efetiva dos órgão judiciais. A lei permite, deste modo, enormes esferas de exercício arbitrário do poder de seqüestro e estigmatização, de inspeção, controle, buscas irregulares, etc., que exercem cotidiana e amplamente, à margem de qualquer legalidade punitiva contemplada no discurso jurídico-penal." [23]

Diante de tal (renúncia expressa à legalidade) realidade constata-se que o poder repressor exercido pelos órgãos judiciais do sistema penal não é o poder repressor punitivo, mas sim, o sistema penal utiliza-se de espécies de controle social extensivo, de forma reiterada, mas precisamente, cotidiana, de manutenção periódica na vida social.

2.3 Do sistema penal formal – desrespeito à legalidade

O discurso jurídico-penal nem sequer consegue evitar um total desrespeito à legalidade no sistema penal formal. É o que acontece quando se examina a sua operacionalidade no âmbito social. Deve-se ter em mente que o aspecto formal do sistema serve apenas como justificação para o exercício real do poder dos órgãos executórios do sistema penal.

No entanto, "a estrutura de qualquer sistema penal faz com que jamais se possa respeitar a legalidade processual. O discurso jurídico-penal programa um número incrível de hipótese em que, segundo o ‘dever ser’, o sistema penal intervém repressivamente de modo ‘natural’ (ou mecânico). No entanto, as agências do sistema penal dispõem apenas de uma capacidade operacional ridiculamente pequena se comparada à magnitude do planificado." [24]

O sul-realismo que vive o sistema penal, no que concerne ao abismo existente entre o exercício de poder pautado numa programação previamente determinada e a capacidade operativa suportada pelos órgãos executórios, só pode ser comparado aos mais desenvolvidos desenhos animados japoneses. No entanto, por outro lado, caso ocorresse uma associação efetiva, uma congruência real entre ambos os pólos, ter-se-ia a produção indesejável, a partir de um determinado momento, de uma reincidência da criminalização, chagar-se-ia o momento em que toda e qualquer conduta seria considerada criminalizada.

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É diante da pintura de um quadro como esse, que a "realização da criminalização programada de acordo com o discurso jurídico-penal é um pressuposto tão absurdo quanto a acumulação de material bélico nuclear capaz de aniquilar várias vezes toda a vida do planeta. Estes dois paradoxos são reveladores de um sintoma da civilização industrial levado a seu absurdo máximo pela atual – ou nascente – civilização ‘tecnocientífica’." [25]

Para um teórico do sistema de justiça criminal – entre tantos – um pouco mais atento, torna-se irrefutável não reconhecer que o sistema penal está montado para uma não-funcionalidade, para uma não-operacionalidade, com a intenção nítida e real do exercício de poder fundado numa arbitrariedade voltada para a clientela do direito penal. Torna-se impossível não reconhecer a seletividade do sistema penal.

Sábia é a lição do pensador argentino, quando leciona no sentido de que "os órgãos legislativos, inflacionando as tipificações, não fazem mais do que aumentar o arbítrio seletivo dos órgãos executivos do sistema penal e seus pretextos para o exercício de um maior poder controlador". Continua o mestre numa inteligente ironia, ao dizer que "ninguém compra um apartamento impressionado por uma bela maquete apresentada por uma empresa notoriamente insolvente; no entanto, compramos a suposta segurança que o sistema penal nos vende, que é a empresa de mais notória insolvência estrutural em nossa civilização." [26]

Obrigatório, também, é reconhecer que a violação praticada pelo sistema penal, ocorre tanto à legalidade processual quanto à legalidade penal. A despeito desta última são diversas as formas pelas quais o sistema penal pratica a sua violação. Seja pela ausência de celeridade nos processos; seja pela ausência total de critérios de formulação de um sistema de penas; seja pela distorção incorrigível das tipificações e da introdução de elementos moralistas na construção dos tipos penais, ou, seja pela arbitrariedade consumada na atuação das agências executivas do sistema penal, atuação esta direcionada a uma seletividade de pessoas menos favoráveis, com a causa de danos irreversíveis.

2.4 Do sistema penal formal – atuação ilícita

Diante de um desrespeito completo à legalidade penal e processual, seja pelo sistema penal ou pela própria dogmática (lei) penal, torna-se previsível uma atuação arbitrária das agências do sistema penal com poder de execução. Portanto, a atuação ilícita pelo sistema penal começa no campo da arbitrariedade, com a inevitável conseqüência de expansão para outros campos de atuação.

Daí verificar-se "na operacionalidade social dos sistemas penais latino-americanos um violentíssimo exercício de poder à margem de qualquer legalidade. Neste sentido, basta rever qualquer informe sério de organismos regionais ou mundiais de direitos humanos para comprovar o incrível número de seqüestros, homicídios, torturas e corrupção cometidos por agências executivas do sistema penal ou por seus funcionários. A estas violações devem ser acrescentadas a corrupção, as atividades extorsivas e a participação nos benefícios decorrentes de atividades como o jogo, a prostituição, o contrabando, o tráfico de drogas proibidas (...)." [27]

Portanto, diante do exposto, pode-se afirmar que o exercício de poder abertamente ilícito por parte do sistema penal, dar-se por algumas vias de fácil constatação, dentre elas: a) a utilização da legalidade de maneira a criar uma visão virtual da legitimidade, que se transforma numa ficção científica; b) uma negação e desrespeito à legalidade penal e processual, com a nítida intenção de uma atuação arbitrária por parte das agências executivas; c) o exercício de poder do sistema penal através da legalidade, princípio este, negado e desrespeitado em determinados momentos pelo próprio sistema penal; etc.

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Sobre o autor
Luciano Nascimento Silva

professor universitário, mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal), bolsista de Graduação e Mestrado da FAPESP e de Doutorado da CAPES, pesquisador em Criminologia e Direito Criminal no Max Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht – Freiburg in Breisgau (Alemanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luciano Nascimento. Manifesto abolicionista penal.: Ensaio acerca da perda de legitimidade do sistema de Justiça Criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3556. Acesso em: 22 dez. 2024.

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