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Manifesto abolicionista penal.

Ensaio acerca da perda de legitimidade do sistema de Justiça Criminal

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01/11/2002 às 00:00

Resumo:


  • A era burguesa é marcada por mudanças contínuas na produção e na sociedade, onde o constante movimento e a insegurança são características distintas, conforme expresso por Marx e Engels em 1848.

  • O abolicionismo penal é uma corrente que defende a abolição do sistema penal, considerando-o ineficaz e injusto, e propõe alternativas para a resolução de conflitos sociais.

  • As propostas abolicionistas variam em suas abordagens e fundamentações teóricas, incluindo influências do marxismo, fenomenologia e estruturalismo, e enfrentam críticas sobre sua capacidade de lidar com questões como o terrorismo e a violência.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5. O clamor por uma resposta marginal – uma teoria zaffaroniana

5.1 Um imperativo jus-humanista

A obra de ZAFFARONI [54]Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal – é um marco na luta contra a ofensa aos direitos humanos, praticada pelos sistemas penais em toda à América Latina. Ao lado do pensador Uruguaio EDUARDO GALEANO figura como um dos mais atuantes defensores da dignidade humana. Poder-se-ia – neste trabalho – até ter escrito sobre o abolicionismo penal de ZAFFARONI, numa concepção histórico-humanista.

A missão do pensador portenho nas ciências penais tem sido, ao longo de sua história, a denúncia da ameaça de um genocídio praticado pelo sistema penal em toda a América Latina. Entende que há uma necessidade de resposta diante dessa ameaça de genocídio praticado pelo tecnocolonialismo e de um outro que se encontra em andamento, procurando evitar o anunciado com a bandeira dos direito humanos, sustentando a deslegitimação do sistema, além de demonstrar a violação dos direitos humanos pelos sistemas penais periféricos, revela que tais violações são da essência e da estrutura de todos os sistemas penais. Chegando a fazer a seguinte afirmação: o exercício de poder dos sistemas penais é incompatível com a ideologia dos direitos humanos. [55]

A teoria zaffaroniana de uma resposta marginal, nasce da constatação de que os direitos humanos, como previstos e consagrados pelos instrumentos internacionais, não podem ser entendidos como ideologia instrumental, mas devem ser reconhecidos como uma ideologia programática para toda a humanidade. Enxerga uma enorme dificuldade em materializar o brocardo: todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Lecionando que a previsão do artigo primeiro da Declaração Universal constitui numa façanha moral.

Denunciar a existência de uma insensatez histórica e de uma expropriação do direito da vítima praticada pelos sistemas penais. Diz que tal insensatez histórica somente pode ser "comparável com a insensatez que pretende a futura existência de um sistema penal que, com a estrutura de qualquer um dos atuais, se inspiraria no princípio da igualdade, quando sabemos que a operatividade seletiva é da essência de qualquer sistema penal." [56]

ZAFFARONI numa investigação histórica, chega a conclusão de que a configuração atua do sistema penal é oriunda da revolução mercantil e da formação dos estados nacionais, que gera o desaparecimento dos instrumentos e mecanismos de solução entre partes conflitantes, o que tem por conseqüência uma expropriação dos direitos da vítima. O que acontece é que o soberano assume a posição de única vítima, fazendo com que o sistema penal converta-se num exercício de poder verticalizante e centralizador.

Num primeiro momento, constata um contraste fundamental entre o sistema penal e a formulação dos direitos humanos, já a configuração dos primeiros provém do século XII com uma reafirmação no século XIX, ao passo que o segundo provém de uma tentativa de limitação deste poder no século XVII. Tal demonstração reafirma a contradição existente entre a ideologia dos direitos humanos e a reafirmação do sistema penal.

Num segundo, leciona que o princípio segundo o qual todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos é próprio dos denominados numes morais, do que se costumou chamar de saber milenário, que tem seu significado nos momentos de mais alta moralidade das culturas arrasadas pelo poder planetário das civilizações mercantil e industrial, assentadas em sua superioridade tecnológica.

Proclama a necessidade e urgência de uma resposta marginal assentada na deslegitimação do sistema penal, que se apresenta na perspectiva de uma programação transformadora que os direitos humanos requerem, principalmente, numa região marginal periférica, do mapa de poder planetário, onde é de fácil constatação a interrupção abrupta do progresso dos direitos humanos, em que o exercício do poder do sistema penal representa o elemento principal do extermínio propugnado.

5.2 Um imperativo ético

ZAFFARONI fala de uma resposta marginal como imperativo ético, afirmando que, aqueles que atuam em uma agência do sistema penal – na região marginal periférica – em especial nas agências de produção de ideologia (entenda-se universidades) quando da reprodução do discurso de justificação do sistema penal formulado por estas agências, tem a missão de enfrentar a questão da deslegitimação do sistema penal.

E, tal enfrentamento tem que se dar no campo de uma urgência de caráter ético, é uma imposição ou imperativo de consciência, seja em razão da violência praticada pelos sistemas penais, seja pela sua atuação no contexto social.

Menciona sobre a crítica de que esse imperativo não teria uma fundamentação objetiva, tratando-se apenas de uma questão de valorização subjetiva. A essa crítica ZAFFARONI responde que a fundamentação existe, e não é nada mais do que o milagre, com o uso da palavra no seu sentido o mais original e etimológico possível. Afirma que na região marginal periférica (especificamente na América Latina) o desempenho de tal função é uma circunstância que deve ser entendida como milagrosa. Pois, trata-se, efetivamente, de uma formidável constelação de casualidades, tão numerosas, que constitui um milagre extremamente privilegiante.

Diz ZAFFARONI que "ser juiz ou catedrático na América Latina significa haver ultrapassado, previamente,muitos riscos: haver nascido (isto é, não ter sido abortado), haver sido alimentado adequadamente, haver superado ou escapado das doenças infantis com seqüelas incapacitantes, haver conseguido alfabetizar-se e, ainda mais, haver ascendido aos níveis médio e superior do ensino, haver escapado das ameaças à vida adulta que os fenômenos naturais catastróficos representam, a violência política e não política, não haver ‘desaparecido’, etc., e outro sem-número de fatores cujo conjunto compõem o milagre que coloca tal individuo numa situação extremamente privilegiada." [57]

5.3 Uma indagação: o que é marginal? [58]

O primeiro significado da expressão marginal utilizada por ZAFFARONI é no sentido de demonstrar a geografia em que se encontra a América Latina – numa posição periférica do poder planetário – em relação aos países centrais. Portanto, a palavra marginal vai receber o significado de periférico. Um segundo significado será o da demonstração de uma necessidade de se adotar a perspectiva de (nossos) fatos de poder na relação dependência com o poder central. Porém, esclarecendo que não há a pretensão de identificar esses fatos com os processos originários do poder central, já que o emprego de algumas analogias – superficialmente consideradas – levam a um equivoco de identificação.

Um terceiro, seria a necessidade de assinalar que a expressão marginal quer significar a imensa maioria dos povos latino-americanos, que sofre uma marginalização por parte do poder. Mas, no entanto, continua como objeto principal da violência do sistema penal. E, um quarto e último significado, quer significar a indicação de uma complexa conceituação do universo urbano diretamente atingido pelos albores do tecnocolonialismo, a identidade de uma situação concretamente generalizada no plano cultural em razão de o colonialismo, o neocolinialismo e o tecnocolonialismo incidente determinarem a origem de uma configuração de todos os povos latino-americanos que sofreu a estigmatização da marginalização.


6. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Não há como negar a idéia original do abolicionismo penal como a proposta mais ousada e radical de abolição do sistema penal. O seu surgimento – isso há de ser reconhecido – acontece em face de uma confiança jusnaturalista, que procura ocupar o espaço do racionalismo, do positivismo e do cristianismo. No entanto, suas principais características não deixam esconder sua ligação umbilical com a ciência do marxismo.

O abolicionismo penal como ciência jusnaturalista de intenção declarada de dispensabilidade e sepultamento do direito positivo, depositando todas as suas crenças nas leis naturais, com uma libertação definitiva do poder estatal, procura efetivar todos os seus propósitos em tais bases como forma de suplementos para uma regulação e resolução dos conflitos sociais.

No entanto, o movimento abolicionista não deixa de reconhecer as mais diversas concepções metodológicas e de pressupostos filosóficos de seus representantes, seja na concepção marxista de METHIESEN, seja na fenomenológica de HULSMAN, seja na estruturalista de FOUCAULT, seja na fenomenológico-historicista de CHRISTIE. O que na verdade representa a riqueza do movimento.

O movimento abolicionista do sistema penal, a partir do início da segunda metade do século XX, passou a fornecer uma contribuição literário-científica para as ciências penais de inestimável valor. Porém, os mais diversos movimentos existentes no campo penal se negam a estudar ou aprofundar as proposituras apresentadas pelo abolicionismo.

O abolicionismo penal propõe a realização de uma política criminal que sempre foi proclamada pelo sistema penal, mas nunca realizada de fato. O abolicionismo negando-se ou resistindo a admitir as influências de movimentos penais que procuram estabelecer uma legitimidade parcial do sistema penal, faz com que se torne inegável o seu caráter autônomo.

A admissão declarada pelo abolicionismo penal – seja o movimento da intervenção penal mínima ou direito penal mínimo, seja o minimalismo penal, ou o garantismo fundamental ferrajoliano – é no campo das etapas de evolução. Todos esses movimentos caracterizando um processo de evolução com a finalidade determinada que é: a abolição do sistema penal. E, enfatizando que tal admissão não quer significar um atestado de legitimidade – mesmo que seja parcial – do sistema penal.

A negação declarada pelo abolicionismo à intervenção penal mínima ou direito penal mínimo surge em virtude da veia de legitimidade parcial que tal movimento procura estabelecer para o sistema penal. Quanto ao garantismo fundamental ferrajoliano – que tem sua raiz no iluminismo – por fazer uma análise do fenômeno crime pautada na exclusão das ações do individuo.

As críticas recebidas, desde a atribuição de um movimento romântico, passando por uma atuação policial – diante da ausência do órgão judicial – perniciosa para os espaços sociais, e chegando a afirmação de haver uma ausência de mecanismos para responder às atuações terroristas, só podem ser respondidas da seguinte maneira: o romantismo do abolicionismo penal vem da sua origem utópica, assim como a própria humanidade; a argumentação de ausência de um órgão judicial não corresponde, pois se propõe a criação de órgãos com competência de atuação na proteção social e de caráter nacional e internacional; e, a afirmação de incapacidade para o combate as atuações terroristas é respondida com uma outra indagação, que é, o sistema penal tem sido capaz em tal combate?

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A questão é que o garantismo fundamental ferrajoliano e a intervenção penal mínima foram sepultados em 11 de setembro de 2001.

O abolicionismo penal é uma teoria utópica diferenciada, pois não declara a crença de que os conflitos sociais irão desaparecer com a abolição do sistema penal, pelo contrário, reconhecer a manutenção de tais conflitos. No entanto, postula pela abolição do sistema penal por entender – e demonstrar – que este serve apenas como instrumento de falsa resolução dos conflitos sociais.

O movimento abolicionista, por ser uma teoria utópica, acredita fielmente que a humanidade só continua a existir, ainda, porque em um ou outro momento de sua caminhada realiza uma utopia. Uma das primeiras utopias realizada pela humanidade foi sua saída das cavernas e uma das últimas foi a extirpação da figura do príncipe ou soberano. A próxima utopia a ser realiza será a eliminação da lei como instrumento de regulação social e a abolição do sistema penal.

A premissa marxista da luta de classe – que na análise de alguns pensadores não mais subsiste face a nova realidade de poder planetário hegemônico e legitimante – deve e está sendo travada na esfera do sistema penal. O triunfo da sua deslegitimidade com a sua conseqüente abolição significará a vitória da ideologia dos direitos humanos.

O abolicionismo penal – de alguma forma – acredita na lição de FRANZ VON LISZT, de que a melhor política criminal ainda é uma boa política social.


7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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__________, Em busca das penas perdidas – a perda de legitimidade do sistema penal. Tradução por VÂNIA ROMANO PEDROSA e AMIR LOPES DA CONCEIÇÃO. Rio de Janeiro : Revan, 1991.

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Sobre o autor
Luciano Nascimento Silva

professor universitário, mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal), bolsista de Graduação e Mestrado da FAPESP e de Doutorado da CAPES, pesquisador em Criminologia e Direito Criminal no Max Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht – Freiburg in Breisgau (Alemanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luciano Nascimento. Manifesto abolicionista penal.: Ensaio acerca da perda de legitimidade do sistema de Justiça Criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3556. Acesso em: 22 dez. 2024.

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