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A ilegitimidade do Delegado da Receita Federal da jurisdição fiscal da filial em mandado de segurança sobre matéria previdenciária

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24/10/2016 às 07:18
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5. Dos estabelecimentos: matriz e filial. Da inscrição no CNPJ.

O ato de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) é dever jurídico decorrente do art. 113, § 2º, do Código Tributário Nacional, o qual autoriza que a Administração Fazendária estabeleça obrigações acessórias aos contribuintes no intuito de viabilizar as atividades de arrecadação, controle e fiscalização na esfera tributária, conforme se pode ler do dispositivo legal:

CTN. Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

(...)

§ 2º. A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização de tributos.”

A primeira das obrigações acessórias que deve ser cumprida por qualquer pessoa jurídica, como condição ao seu funcionamento regular, é a inscrição no Cadastro Nacional das Pessoas Jurídica (CNPJ), que substituiu o Cadastro Geral das Pessoas Jurídicas (CGC), de que cuidava a Lei 5.614/70 e atos normativos regulamentadores (Paulsen, 2010, p. 895).

Verifica-se que o ato de inscrição das pessoas jurídicas no CNPJ não implica nos efeitos previstos no art. 45 do Código Civil (outorga de capacidade jurídica), dado que seu fundamento legal refere-se ao cumprimento de obrigações acessórias instituídas pelos órgãos do Ministério da Fazenda a fim de auxiliar a apuração dos fatos geradores, garantir maior eficácia à fiscalização e viabilizar a arrecadação dos tributos apurados e constituídos.

Conclui-se que contém erro a assertiva de que cada inscrição no CNPJ representa uma pessoa jurídica distinta para fins tributários ou que se podem considerar pessoas jurídicas distintas matriz e filiais da mesma empresa, uma vez que não há lei que preveja que o registro de um estabelecimento filial no CNPJ outorgue-lhe personalidade jurídica nos termos do art. 1º do Código Civil.

A Instrução Normativa RFB nº 1.138/11 não afirma que matriz e filiais de determinada empresa são “pessoas jurídicas autônomas”. Ao contrário, referido ato normativo secundário trata matriz e filiais como estabelecimentos de uma pessoa jurídica, conforme a redação do art. 4º, “in verbis”:

“Art. 4º Todas as pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil, inclusive as equiparadas, estão obrigadas a inscrever no CNPJ cada um de seus estabelecimentos localizados no Brasil ou no exterior, antes do início de suas atividades.

§ 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem possuir uma inscrição no CNPJ, na condição de matriz, que os identifique na qualidade de pessoa jurídica de direito público, sem prejuízo das inscrições de seus órgãos públicos, conforme disposto no inciso I do art. 5 º.

§ 2º No âmbito do CNPJ, estabelecimento é o local, privado ou público, edificado ou não, móvel ou imóvel, próprio ou de terceiro, onde a entidade exerce, em caráter temporário ou permanente, suas atividades, inclusive as unidades auxiliares constantes do Anexo VII a esta Instrução Normativa, bem como onde se encontram armazenadas mercadorias. ” (grifo nosso)

Dessa forma, a própria Instrução Normativa, conforme as definições dos institutos e conceitos traçados pelo direito civil, determina que o que será inscrito no CNPJ serão os estabelecimentos de uma pessoa jurídica.

Estabelecimento é “o local (...) onde a entidade exerce, em caráter temporário ou permanente, suas atividades”, conforme o par. 2º do art. 4º da IN RFB nº 1.138/11. Como se vê, em momento algum há previsão de que o estabelecimento a ser inscrito no CNPJ é considerado como uma pessoa jurídica autônoma. Apenas se determina que, se são vários os locais onde a empresa exerce as suas atividades, cada um deles deve estar cadastrado para fins de fiscalização tributária.

Insta ponderar que é obrigatório o cadastro no CNPJ de órgãos públicos e representações diplomáticas (IN/RFB nº 1.138/11, art. 5º[2]), que não são considerados pela legislação tributária como sujeito de deveres e direitos autônomos distinto das pessoas jurídicas ou físicas que compõem.

Destarte, não há fundamento legal ou infralegal a atribuir personalidade jurídica própria a cada estabelecimento filial inscrito no CNPJ. Inexiste, por conseguinte, ficção legal a respaldar a premissa de que matriz e filial são pessoas jurídicas distintas a serem tratadas como pessoas jurídicas autônomas.


6. Da sociedade empresarial

Em se tratando de pessoas jurídicas empresariais, cada número no CNPJ representa um estabelecimento comercial ou industrial, seja o estabelecimento matriz, seja o estabelecimento filial. Em rigor, não é a pessoa jurídica que deve se inscrever no CNPJ. Deve a pessoa jurídica já existente (inscrita no respectivo órgão de registro público) inscrever no CNPJ seus estabelecimentos comerciais, elegendo qual deles é a matriz e quais são as filiais, nos termos do art. 11, Instrução Normativa RFB nº. 1.183/2011:

“Art. 11. A comprovação da condição de inscrito no CNPJ e da situação cadastral é feita por meio do "Comprovante de Inscrição e de Situação Cadastral", conforme modelo constante do Anexo III a esta Instrução Normativa, emitido no sítio da RFB na Internet, no endereço citado no caput do art. 13.

§ 1º O Comprovante de Inscrição e de Situação Cadastral contém as seguintes informações:

I - número de inscrição no CNPJ, com a indicação de estabelecimento Matriz ou Filial;” (grifo nosso).

Nos mesmos moldes já ocorria com o antigo Cadastro Geral de Pessoas Jurídicas – CGC, instituído pela Lei nº 4.503/64, que concedia o mesmo número cadastral básico (raiz numérica) aos estabelecimentos comerciais de uma pessoa jurídica, possibilitando que a ele fossem adicionados números complementares, caso necessários para a melhor identificação, de acordo com o art. 4º, “in verbis”:

“Art 4º As pessoas jurídicas e seus estabelecimentos receberão um número cadastral básico, de caráter permanente, que as identificará em todas as suas relações com os órgãos do Ministério da Fazenda.

Parágrafo único. O número referido neste artigo poderá ser adicionado de códigos numéricos complementares, quando indispensáveis à administração de determinados tributos”

Identifica-se a pessoa jurídica através da raiz do número do CNPJ (ex.: 00.000.000/), enquanto que seus estabelecimentos, matriz ou filial, são identificados através dos números complementares (ex: /0001-00). Como, no mínimo, toda pessoa jurídica possui ao menos um estabelecimento, tem-se que a identificação completa indica a qual dos estabelecimentos da pessoa jurídica o CNPJ se refere (ex.: 00.000.000/0001-00).

Em suma, para fins da legislação tributária vigente, a relação matriz-filial refere-se aos estabelecimentos comerciais ou industriais de uma mesma pessoa jurídica. Frise-se que em nenhum momento a legislação do CNPJ trata matriz e filial como duas pessoas jurídicas distintas, mas somente como dois ou mais estabelecimentos distintos.

Cumpre rememorar que a legislação empresarial também não confunde o conceito de pessoa jurídica e o conceito de estabelecimento comercial, conforme se pode notar da leitura dos art. 1.142 e 1.143 do Código Civil, “in verbis”:

Código Civil. Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.

Art. 1.143. Pode o estabelecimento ser objeto unitário de direito e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza”

Conceitua-se estabelecimento, no âmbito do Direito Empresarial, como complexo de bens destinados ao exercício da atividade empresarial, objeto de relações jurídicas, que não se confunde com o sujeito de relações jurídicas. Já a pessoa jurídica (sujeito), constituída sob a forma de sociedade empresária, é quem dirige a atividade empresarial realizada através do estabelecimento, podendo inclusive aliená-lo (art. 1.143, CC), sem acarretar necessariamente a sua extinção.

 A unidade da pessoa jurídica, que engloba a matriz e as filiais, também pode ser corroborada pelo teor do art. 969 do Código Civil, que impõe o dever de o empresário informar à respectiva Junta Comercial a constituição de estabelecimento comercial secundário, “in verbis”:

“Art. 969. O empresário que instituir sucursal, filial ou agência, em lugar sujeito à jurisdição de outro Registro Público de Empresas Mercantis, neste também deverá inscrevê-la, com a prova da inscrição originária.

Parágrafo único. Em qualquer caso, a constituição do estabelecimento secundário deverá ser averbada no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede”.

Não se trata de constituir uma nova pessoa jurídica ou conceder aos estabelecimentos secundários personalidade jurídica, mas de registrar uma filial, sucursal ou estabelecimento. Se assim fosse, desnecessária seria a prova da inscrição originária, bem como a menção que a filial também deverá ser inscrita.

Ademais, o parágrafo único do art. 969 do Código Civil, não deixa dúvidas que tanto matriz quanto filiais são estabelecimentos, não pessoas jurídicas autônomas ou dotadas de personalidade jurídica própria, pois nomeia a filial como “estabelecimento secundário”, de forma que a matriz constitui “estabelecimento principal” da mesma pessoa jurídica. A rigor, matriz e filial são a mesma pessoa jurídica, sendo o CNPJ o mesmo, apenas com modificação na terminação (Paulsen, 2009, p.31).

Assim, seja na legislação tributária, seja na legislação empresarial, o que se verifica é a inexistência de norma legal ou infralegal a atribuir à matriz e filial personalidade jurídica diversa daquela que possui a pessoa jurídica (sociedade empresária) que as instituiu. Pelo contrário, vê-se que a todo instante a legislação trata matriz e filial como de fato são: estabelecimentos comerciais ou industriais (objeto de direito) através dos quais a pessoa jurídica realiza a atividade empresarial.

Por outro vértice, não se desconhece o Princípio da Autonomia dos Estabelecimentos, ou o disposto no art. 127, II, do CTN[3], no entanto, nada disso tem o condão de atribuir personalidade jurídica aos estabelecimentos.

Com efeito, a norma referida guarda relação com o domicílio tributário a ser selecionado pela Administração Tributária na ausência de eleição pelo contribuinte e com o nascimento da obrigação tributária relativamente a determinados tributos, como o IPI e o ICMS. De fato, nestes tributos, cada estabelecimento – ou filial – é uma unidade independente no sentido de que, nos termos do art. 127, II, do CTN, qualifica-se como domicílio relativamente aos atos e fatos ali ocorridos dos quais decorrerem o surgimento da obrigação tributária, o que não quer dizer que a pessoa jurídica enquanto tal – incluindo todos os seus estabelecimentos – não seja responsável por todos os débitos de suas filiais e que essas filiais, nesta linha, também não o sejam por aqueles da matriz.

No caso de contribuições previdenciárias, a Administração Tributária previu a centralização do domicílio no estabelecimento matriz, de forma que somente a Delegacia da Receita Federal da jurisdição da matriz é que terá competência para modificar eventual ato coator em matéria previdenciária.

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O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar a questão de fundo da atribuição, ou não, de personalidade jurídica aos estabelecimentos matriz e filial de uma empresa, com a finalidade de verificar a responsabilidade única pelos débitos tributários desta, no RESP nº 939.262/AM[4] reconheceu que filiais e matriz não possuem personalidade jurídica distintas, compondo, na realidade, um único ente capaz de assumir direitos e obrigações, a pessoa jurídica.

Importante citar a decisão no RESP nº 1.355.812-RS{C}[5] em sede de Recurso Repetitivo com força persuasiva especial do Superior Tribunal de Justiça, submetido ao regime do art. 543-C do Código de Processo Civil, na qual se firmou que o estabelecimento empresarial não é sujeito de direitos, mas objeto de direito, e que os CNPJ’s das filiais são irrelevantes para a responsabilização patrimonial da devedora como um todo, para fins de bloqueio de ativos financeiros via BACENJUD, bem como para expedição de Certidão Negativa de Débitos.

Destarte, não há como fugir da conclusão de que a legislação tributária, à semelhança da civil e da empresarial, trata matriz e filial como apenas como estabelecimentos empresariais, respondendo assim pelos tributos que eventualmente são gerados em razão dos fatos geradores praticados através de seus estabelecimentos matriz e filiais.

Em consequência, eventual certidão positiva com efeitos de negativa deverá obediência aos arts. 205 e 206 do CTN, considerando não só o estabelecimento matriz como todas as filiais da parte autora, independente do tipo de atividade que a empresa exerça.

Da mesma forma, para fins de verificação da legitimidade da autoridade coatora em mandado de segurança cujo objeto seja matéria previdenciária, merece ser observado que a pessoa jurídica é única, ainda que haja filiais em outras localidades.

O princípio tributário da autonomia dos estabelecimentos, cujo conteúdo preceitua que estes devem ser considerados, na forma da legislação específica de cada tributo, unidades autônomas e independentes nas relações jurídico tributárias travadas com a Administração Federal, é um instituto de direito material ligado à questão do nascimento da obrigação tributária de cada imposto especificamente considerado como o ICMS e o IPI.

Em relação às contribuições previdenciárias, considerando que a legislação prevê a centralização da administração e fiscalização de empresa com um todo, pela Unidade descentralizada com jurisdição sobre o domicílio da matriz, somente esta pode ser a autoridade coatora em matéria previdenciária.

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Sobre a autora
Maria Lúcia Inouye Shintate

Procuradora da Fazenda Nacional. Graduada pela Faculdade de Direito da USP em 1998. Pós graduada em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera-Uniderp - Rede LFG. Pós graduada em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp - Rede LFG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SHINTATE, Maria Lúcia Inouye. A ilegitimidade do Delegado da Receita Federal da jurisdição fiscal da filial em mandado de segurança sobre matéria previdenciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4863, 24 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35824. Acesso em: 25 abr. 2024.

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