Considerações sobre o respeito aos precedentes no processo civil brasileiro

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28/01/2015 às 11:16
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A valorização da jurisprudência como fonte do Direito, iniciada com reformas ao CPC vigente, consolida-se no NCPC. O presente ensaio traz algumas considerações e ressalvas acerca dos precedentes obrigatórios.

1. A crescente valorização da jurisprudência

               A aproximação entre os sistemas de civil law e common law já é anunciada há algum tempo.[1] Há inclusive quem afirme que essa aproximação é de mão dupla: não seriam apenas os sistemas de civil law que se assemelham cada vez mais aos de common law (como é o caso do Brasil) mas também esses teriam sido visivelmente influenciados por aqueles.[2]

            No Brasil, essa aproximação teria se tornado mais evidente a partir da Reforma do Judiciário e com a crescente valorização da jurisprudência como fonte do Direito. Em regra, nos países de civil law, as decisões judiciais só produzem efeitos entre as partes e os precedentes têm apenas caráter persuasivo, mas algumas modificações no sistema elevaram gradativamente (e consideravelmente) o seu valor.

            Pode-se apontar como uma das primeiras modificações a redação dada ao art. 557 do CPC pela Lei n° 9.756/98 – os já mencionados “poderes do relator”. O caput do artigo dá ao relator o poder de decidir, monocraticamente, pela improcedência de recurso que confronta súmula ou jurisprudência dominante do STF ou outro Tribunal superior. O § 1°-A (acrescentado pela mesma lei), por sua vez, dá o poder para julgar procedente recurso que ataque decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante dos mencionados Tribunais.[3]

A eficácia erga omnes das decisões, incomum nos sistemas de civil law, também foi introduzida no Brasil há alguns anos. A Emenda Constitucional n° 3, de 1993, atribuiu eficácia para todos e efeito vinculante às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de ação declaratória de constitucionalidade. A Lei n° 9.868/99 estendeu esses efeitos à ação direta de inconstitucionalidade, e a Lei n° 9.882/99, à argüição de descumprimento de preceito fundamental. Com a Emenda Constitucional n° 45, o efeito vinculante das decisões nas ações diretas de inconstitucionalidade foi consagrado na Constituição (art. 102, § 2°).

A mesma EC n° 45/2004 inseriu o art. 103-A na Constituição, que criou as súmulas vinculantes, a serem editadas pelo Supremo Tribunal Federal. Tais súmulas divergem das súmulas de jurisprudência dominante por terem expresso poder vinculativo. Vinculam não só os demais órgãos do Poder Judiciário, que deverão adotar o entendimento previsto nas súmulas no julgamento dos casos concretos, como também a Administração Pública, direta e indireta, municipal, estadual e federal. Caso a súmula vinculante não seja respeitada, cabe reclamação ao STF.[4]

A exigência de demonstração da repercussão geral do recurso extraordinário (incluída na Constituição pela EC n° 45) também pode ser vista dessa maneira, já que uma vez decidida a presença ou ausência da repercussão, a todos os recursos versando sobre a mesma questão será dado idêntico tratamento.[5] Por fim, resta mencionar o instituto do recurso especial repetitivo (previsto no art. 543-C do CPC, incluído pela Lei nº 11.672/2008), que prevê que sempre que um recurso especial for tido como tal, todos aqueles idênticos a ele têm seu julgamento suspenso (no Superior Tribunal de Justiça ou tribunais inferiores). Após o julgamento do recurso, a todos será dado o mesmo tratamento.[6]

O Novo Código de Processo Civil possui um capítulo dedicado exclusivamente aos precedentes judiciais (arts. 520 a 522). Estabelece-se que os tribunais devem manter sua jurisprudência uniformizada, “estável, íntegra e coerente”, define a vinculação aos precedentes dos tribunais superiores, determina-se o dever de publicidade dos entendimentos consolidados e disciplina o procedimento de modificação desses entendimentos.

Isso não significa, entretanto, que o sistema brasileiro passa a pertencer à tradição de common law. Mesmo com as modificações do CPC vigente e as alterações do NCPC, a lei ainda é a principal fonte do Direito no Brasil. A adoção de uma cultura de valorização dos precedentes será certamente gradual, pois exigirá uma modificação da cultura arraigada não só no imaginário jurídico, como também no popular. Trata-se, portanto, de valorização da jurisprudência como fonte do Direito e como fator determinante das decisões judiciais dentro de um sistema tipicamente de civil law.

Não há como negar que houve um incremento na importância dos precedentes no país. E esse incremento pode ser justificado por outros fatores, como se verá a seguir.

2. A defesa do respeito aos precedentes

 O crescente valor conferido às decisões judiciais pode ser justificado perante o novo papel conferido ao juiz no Estado Constitucional brasileiro. Como o princípio da legalidade, antes meramente formal, passa a ser substancial, a ideia de supremacia da lei é relativizada: toda lei precisa estar em conformidade com a Constituição e com os direitos fundamentais, e, portanto, está sujeita ao controle de constitucionalidade.[7]

No Brasil, esse controle pode ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal ou por qualquer outro juiz ou tribunal. Assim, adota-se tanto o controle concentrado quanto o difuso. [8] Todos os juízes têm o dever-poder de verificar a constitucionalidade das leis aplicadas ao caso concreto, inclusive de fazê-lo de ofício.[9]

Ressalte-se que a realização desse controle não envolve somente a declaração de inconstitucionalidade de uma lei perante o caso concreto e a recusa em aplicá-la. A tarefa do juiz é muito mais complexa e ele pode valer-se de técnicas como a da interpretação conforme e a da declaração parcial de nulidade sem redução do texto. Além disso, a ausência de normas também pode representar violação dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição e cabe ao magistrado suprir a omissão legislativa (que pode ocorrer tanto nos casos em que a carta constitucional deu ao legislador a tarefa de elaborar uma lei e ele não a cumpriu como quando um direito fundamental não encontra a proteção necessária na lei).[10]

É devido a adoção do sistema difuso de controle de constitucionalidade que Luiz Guilherme Marinoni afirma que o respeito aos precedentes torna-se inevitável. Sem ele, uma lei pode ser considerada inconstitucional por alguns juízes e tribunais e portanto não ser aplicada, enquanto a mesma lei pode ser aplicada por outros juízes e tribunais.[11]

Segundo o autor, um sistema de precedentes constitucionais de natureza obrigatória é a única alternativa para preservar a igualdade perante a lei e a segurança jurídica.[12]

A igualdade perante a lei em abstrato mostrou-se insuficiente a partir do momento em que se admitiu que o texto da lei não possui somente um significado e uma interpretação possível.[13] A sujeição de todos à mesma regra não garante que ela será interpretada da mesma maneira ao ser aplicada a cada caso concreto. A questão, portanto, envolve a igualdade perante a interpretação judicial da lei.[14]

“Para o direito funcionar devidamente, suas regras promulgadas devem ser as regras de fato aplicadas a casos específicos”.[15] Uma aplicação consistente das regras é necessária ao funcionamento do Estado de Direito. Total inconsistência faria com que o direito se tornasse inútil para guiar a conduta dos indivíduos.

Casos iguais devem ser tratados da mesma maneira pelo Judiciário – essa ideia é expressa pela máxima “treat like cases alike”,[16] lugar-comum nos sistemas de common law.  O respeito obrigatório aos precedentes, expresso pela regra do stare decisis,[17] garantiria esse tratamento igualitário. A fórmula também expressa um ideal de justiça formal.

O stare decisis não se confunde com o sistema de common law, embora a associação entre os dois geralmente seja feita de forma automática. A regra de obediência aos precedentes começou a tomar forma no século XIX: antes disso, o sistema inglês funcionava sem ela.[18] Distinguir os dois é um argumento importante para afirmar que a regra do stare decisis pode ser adaptada aos sistemas de civil law e, portanto, para o caso brasileiro.[19]

Outra razão para a adoção de algo similar seria o incremento da segurança jurídica, tida como continuidade e estabilidade da ordem jurídica. Os cidadãos só são capazes de comportar-se de acordo com o ordenamento se ele possui um mínimo de estabilidade.[20] Outra característica associada à segurança jurídica é a da previsibilidade, especialmente no que diz respeito às consequências jurídicas das ações dos indivíduos. Ressalte-se que previsibilidade não é o mesmo que certeza: um resultado pode ser previsível e estar muito longe de ser certo.[21]

As exigências de estabilidade e continuidade não se aplicam somente à lei, mas também à produção judicial.[22] Como no caso da igualdade, de nada adianta a estabilidade da lei em abstrato se a sua interpretação e aplicação aos casos concretos se altera em cada decisão judicial.

Exigir uma previsibilidade absoluta, com a total eliminação das dúvidas interpretativas certamente é impossível, mas o cenário brasileiro é de insegurança insustentável. As Turmas do Superior Tribunal de Justiça, em tese encarregado de uniformizar a interpretação da lei federal, “sentem-se livres para julgar casos iguais de forma desigual”. [23] Os demais órgãos do Judiciário respondem com uma atitude de descaso perante as decisões do mencionado tribunal.

Além disso, o desrespeito aos precedentes revela certa irracionalidade do sistema,[24] que permite que os juízes de primeiro grau ou os tribunais de segundo grau de jurisdição decidam contrariamente aos tribunais superiores só para terem suas decisões reformadas posteriormente, num desperdício de tempo e recursos. No Brasil, o sistema se volta contra si mesmo e viola o direito fundamental à duração razoável do processo estabelecido na Constituição.[25]

A maior observância dos precedentes judiciais, assim, traria mais segurança jurídica, igualdade, racionalidade e celeridade ao sistema e poderia, ainda, fortalecer institucionalmente o Poder Judiciário.[26]

3. Algumas ressalvas

            Muito embora o respeito aos precedentes traga muitas vantagens a um sistema jurídico que o adote, algumas observações devem ser feitas acerca das limitações dessas vantagens.

            A primeira ressalva diz respeito à ideia de “treat like cases alike”, já que dar o mesmo tratamento jurídico a casos iguais pode parecer uma virtude por si só. A objeção mais comum e mais antiga é a de que não há virtude na igualdade no erro.[27] Se um caso for julgado de forma “errada”, não é exatamente virtuoso repetir o mesmo julgamento equivocado a outros casos em nome da igualdade. Na verdade, é possível afirmar que a repetição de um precedente equivocado seria o mesmo que perpetuar injustiças.

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            Defensores da ideia afirmam que o fato de casos iguais serem tratados da mesma injusta maneira não seria uma questão de justiça, mas sim uma questão de equidade. Justiça acarreta equidade, mas equidade não precisa necessariamente acarretar justiça.[28] Ainda assim, o argumento não esclarece porque seria desejável preservar a equidade em detrimento da justiça quando as duas não caminharem juntas.

            O conteúdo das decisões a serem respeitadas é certamente muito importante. As justificativas teóricas[29] para a adoção do stare decisis ou mesmo para a sua explicação[30] são polêmicas e variadas. Mas

tanto o positivismo clássico quanto a teoria clássica de common law afirmam que a autoridade do precedente em último caso reside na aceitação, mas elas diferem enormemente na textura conceitual e no foco dessa aceitação. A diferença mais gritante é que a aceitação, de acordo com a teoria tradicional de common law, reside numa convicção da razoabilidade do direito, e não na razoabilidade de submeter-se ao direito independentemente dos seus méritos. [grifos no original].[31]

            Tradicionalmente, o respeito aos precedentes não foi defendido independentemente de seu conteúdo. Tampouco se defendia que eles correspondiam a um padrão transcendental de justiça. A razoabilidade do direito residia na crença de que as decisões são produto de um processo de racionalização da experiência comum e na conveniência histórica dos precedentes (uma aceitação pelo aspecto histórico e porque as regras seriam produto da razão e da experiência comum).[32]

 Afirmar somente que é correto tratar casos iguais da mesma maneira não faz nenhuma alusão à que maneira esses casos devem ser tratados e em que aspectos esses casos são iguais. Note-se que a fórmula “treat like cases alike” é vazia.

Dois casos jamais serão idênticos – se não fosse assim, eles não seriam casos diferentes (seriam um único e mesmo caso).[33] A aplicação da justiça formal exige que sejam considerados alguns aspectos semelhantes entre os casos que receberão o mesmo tratamento e que suas diferenças sejam desconsideradas. Isso acarreta na definição de quais semelhanças ou diferenças são relevantes para o julgamento.[34]

A determinação dessa relevância é contingente, sempre sujeita a mudanças. Enfim, “treat like cases alike” é uma fórmula tautológica: afirmar que uma regra deve ser aplicada igualmente é o mesmo que dizer que essa regra deve ser aplicada a todos os casos em que deva ser aplicada.[35] Ou seja, não diz absolutamente nada.

Evidentemente, mesmo frente a essas dificuldades, é possível fazer uma opção pela segurança jurídica e decidir que casos iguais devem receber igual tratamento ainda que esse tratamento seja injusto. A justiça formal pode ser, por si só, uma razão para tanto.[36]     

Essa muitas vezes é a opção dos sistemas de common law. Uma das variações do overruling (abolição expressa de um precedente até então estabelecido)[37] é o prospective overruling. As decisões de common law podem ser retroativas,[38] no sentido de que a regra estabelecida para um caso é aplicada a um fato que ocorreu antes de sua formação, e de que essa mesma regra será aplicada a outros casos semelhantes que também envolvem fatos anteriores só que ainda não discutidos judicialmente.[39]

A decisão que decreta o overruling de um precedente geralmente é retroativa e pode ser encarada como um atentado à segurança jurídica: se a parte praticou um ato confiando que suas consequências jurídicas seriam aquelas estabelecidas em um determinado precedente, e ao levar o caso ao judiciário esse precedente é revogado, suas expectativas são frustradas. O novo precedente retroage e disciplina um fato que ocorreu antes de sua elaboração.

O prospective overruling existe para minimizar a insegurança causada pela abolição de um precedente. O novo precedente pode ser aplicado somente ao caso em questão mas não ser aplicado a casos que envolvam fatos anteriores à data da decisão, que continuarão a ser disciplinados pelo precedente anterior. Também pode não ser aplicado nem ao caso em discussão (o chamado pure prospective overruling) e ainda pode ser aplicado somente a partir de uma data futura, estabelecida pelos magistrados (prospective prospective overruling).[40]

A técnica de signaling também é um exemplo dessa preocupação com a preservação da segurança jurídica. Através dela, os magistrados seguem um precedente (aplicam-no ao caso discutido), mas alertam que ele não é mais confiável, pois em breve pode ser alterado.[41]

Nos exemplos mencionados, a segurança jurídica é preservada em detrimento da realização da justiça no caso concreto. Mesmo aqueles que são céticos frente à possibilidade de realização de justiça no caso concreto precisam admitir que nesses casos o judiciário considera o precedente inadequado mas o aplica mesmo assim – em nome da certeza e da previsibilidade.

Essa característica da aplicação da regra de stare decisis pode ser minimizada. Como afirmado, essa é uma das opções possíveis. Também se pode optar por decidir o caso discutido da maneira mais adequada em detrimento da segurança. É possível defender que “casos iguais merecem o mesmo tratamento a não ser quando esse mesmo tratamento representar uma injustiça” (embora isso também seja tautológico) e dar mais flexibilidade à regra de “treat like cases alike”.[42] Afinal, a previsibilidade tem um custo: a rigidez. Quanto mais previsível o sistema, mais rígido, inflexível, ele é. Há de se considerar a necessidade de manutenção de um equilíbrio delicado entre previsibilidade e flexibilidade.[43] Atente que não se está falando aqui da crítica corriqueira e simplista que é comumente feita aos precedentes (desde a criação da súmula vinculante): que as decisões estabilizadas seriam engessadas e permaneceriam imutáveis até o fim dos tempos. Sempre existirá a possibilidade de modificação do precedente ou de realização do distinguishing. Trata-se aqui da constatação de que o sistema, como um todo, se torna mais rígido e mais infenso a novas teses, especialmente se consideramos o intenso grau de burocratização do Judiciário brasileiro.

Mesmo a preservação da igualdade alcançada com a aplicação da fórmula merece ressalvas. Alega-se que a obrigação de tratar casos iguais da mesma forma impede que os juízes se comportem de maneira preconceituosa e parcial. Entretanto, existem formas mais eficazes de evitar esse comportamento, como a exigência de motivação das decisões e a sua publicidade. Se o juiz é de fato preconceituoso e parcial, essa obrigação (de dar o mesmo tratamento) não o impedirá de decidir de forma preconceituosa: ele sempre pode realizar o distinguishing e demonstrar que o precedente não se aplica àquele caso porque as circunstâncias não são as mesmas (argumentar que o caso não é semelhante ao caso do precedente).[44]

Quando os magistrados demonstram diferenças factuais entre um caso e outro, fazem o distinguishing. Essa demonstração também é uma definição dos elementos relevantes do caso (raciocínio contrário ao da aplicação do precedente, pois aqui as diferenças são mais importantes que as semelhanças e justificam tratamento diferenciado). Se dois casos nunca são absolutamente idênticos, conforme mencionado, o distinguishing é sempre uma possibilidade.[45]

Não é preciso radicalizar a afirmação e defender que já que nenhum caso é idêntico ao outro os precedentes nunca poderiam ser aplicados. Entretanto, os casos não precisam ser absolutamente idênticos para receberem o mesmo tratamento – basta que sejam similares em seus aspectos relevantes.[46] Só se deseja ressaltar que é sempre possível fazer o distinguishing, de modo que o juiz nunca estará absolutamente vinculado aos precedentes – da mesma forma em que nunca esteve totalmente vinculado à lei.

Já se afirmou que a absoluta coerência na aplicação dos precedentes pode resultar em rigidez do sistema. Outro efeito pernicioso é a desconsideração do pluralismo e da diversidade. Numa sociedade pluralista, os vários grupos não conseguem eleger uma única teoria ética para guiar sua vida em comum, mas todos tentam conviver. Se uma única concepção de bem é imposta à população através de uma uniformização total de aplicação dos precedentes, o pluralismo é extinto.[47] A concepção de bem da maioria não pode impossibilitar as demais concepções presentes na sociedade – ou estará caracterizada a tirania da maioria. As minorias restariam indefesas frente à homogeneização da sociedade.[48]

O respeito à diversidade também é um argumento contrário à coerência absoluta: “permitir que as cortes façam diferentes escolhas em circunstâncias similares pode ser justificado pela necessidade de atender populações diferentes com divergentes necessidades e preferências”.[49] Num país da extensão territorial do Brasil e que comporta uma diversidade cultural impressionante, talvez a uniformização total da interpretação da lei não seja interessante. A rigidez impediria que as decisões fossem adaptadas às diferentes condições de cada região. Uma flexibilização absoluta também não seria ideal, mas o excesso de rigidez certamente seria um problema.

Ao determinar que um certo precedente tem que ser respeitado obrigatoriamente, o Judiciário está selecionando, previamente, os aspectos que são relevantes na definição dos casos que merecem receber o mesmo tratamento (o tratamento definido no precedente). Essa seleção existe e deve ser considerada sob a ótica aqui discutida. Em alguns casos, a escolha de certos aspectos como relevantes pode ter o efeito de opressão e desconsideração das minorias. A igualdade buscada com a obrigatoriedade dos precedentes pode ter um pernicioso efeito homogeneizador.

A adaptação do Brasil a um sistema de precedentes só se consolidará quando as possibilidades de utilização desse sistema estiverem inscritas na práxis social. Atualmente, existem alguns sinais que apontam no sentido contrário, como a absurda variedade de entendimentos que podem ser encontrados numa mesma corte. Já se mencionou o caso do Superior Tribunal de Justiça, que não observa seus próprios precedentes, mas situação similar (talvez não de tamanha gravidade) pode ser encontrada em diversos tribunais do país. Entendimentos diametralmente opostos são facilmente localizados, de forma que os advogados podem selecionar os precedentes que favorecem as partes a seu bel-prazer. Num diagnóstico da Corte de Cassação italiana, mas que cabe no sistema brasileiro, Sergio Chiarloni compara a jurisprudência a um supermercado e afirma que para algumas questões ela não pode ser caracterizada como fonte do direito, somente como fonte de confusão.[50]

Além disso, os tribunais não costumam atualizar seus precedentes. É o caso das súmulas de jurisprudência vinculante do Supremo Tribunal Federal, que começaram a ser editadas em 1964. Até hoje, somente sete delas foram expressamente revogadas pela corte.[51] A Suprema Corte dos Estados Unidos revogou expressamente 152 precedentes entre 1810 e 1992 (e muitos outros foram revogados de forma não expressa).[52] Ressalte-se que ela julga muito menos casos por ano que o nosso STF. A praxe no nosso tribunal de cúpula é de simplesmente parar de aplicar um precedente quando não é mais adequado, ao invés de revogá-lo.

Se os tribunais superiores não conseguem deixar clara a sua interpretação da lei federal ou da Constituição, fica difícil exigir sua observância nos tribunais inferiores. Existem casos de súmulas contraditórias entre o STF e o STJ.[53] Além do já mencionado descaso do STJ em seguir seus próprios precedentes, o tribunal por vezes não observa o entendimento do STF.[54]

As questões aqui apresentadas são exatamente o que advertia o título da seção: apenas algumas ressalvas. Alertou-se que a fórmula “treat like cases alike” é tautológica, pois é preciso determinar que aspectos levam um caso a ser considerado semelhante e merecedor do mesmo tratamento fornecido a outro, já que nenhum caso é absolutamente idêntico a outro. A opção pela obediência rígida a essa regra privilegia a previsibilidade e a segurança jurídica, mas essa opção pode levar à aplicação de um precedente considerado (pela própria corte que o aplica) como inadequado (casos de prospective overruling). A busca do frágil equilíbrio entre flexibilidade e previsibilidade deve ser buscada, para evitar que os diferentes contextos de aplicação da lei não sejam sempre desconsiderados. Além disso, uma certa temperança na consideração da obrigatoriedade dos precedentes assegura o papel contramajoritário do Judiciário.

Também é preciso relembrar que a atual situação do judiciário brasileiro dificulta a aplicação de regra semelhante à do stare decisis, pela variedade, desatualização e obscuridade dos precedentes. Mesmo assim, todas essas ressalvas não constituem razão suficiente para descartar o respeito aos precedentes como algo vantajoso para o sistema brasileiro; servem apenas para alertar que a sua adoção não será a solução para todos os problemas do Judiciário e para chamar a atenção para alguns aspectos polêmicos da regra comumente adotada por sistemas de common law.

Referências bibliográficas

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Sobre a autora
Juliana Pondé Fonseca

Doutoranda em Direito na Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora Visitante na Yale Law School em 2014 (EUA - Programa Doutorado Sanduíche no Exterior - CAPES). Bolsista da CAPES - PROEX. Possui graduação e mestrado em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professora universitária e professora de cursos de Pós-Graduação em Curitiba.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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