O aspecto punitivo da responsabilidade civil nas relações contratuais

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05/02/2015 às 14:50
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O presente trabalho versa os aspectos polêmicos da indenização punitiva aplicada aos ilícitos contratuais e os seus progressos desde os tempos da vingança pessoal até a situação atual nos tribunais e entre os estudiosos.

Introdução

            No vasto campo da responsabilidade civil, há tema que bem divide os estudiosos. E este tema é o do caráter punitivo de que a indenização, considerada como um todo, pode revestir-se. Mas não só. Se já existe dúvida a respeito da sua aplicabilidade no ordenamento jurídico pátrio e também naqueles estrangeiros, pode-se dizer que existe mais um complicador que será o objeto do estudo doravante realizado, ou seja, em hipótese de responsabilização contratual, é possível atribuir à condenação do lesante tanto o aspecto da compensação do dano causado quanto a punição voltada a dissuadi-lo de praticar novos ilícitos ensejadores de prejuízo a terceiros?

            Para responder a tal indagação, neste trabalho explora-se, de início, a evolução histórica da ideia de responsabilidade, desde o tempo no qual considerada pura e simplesmente uma vingança até os dias de hoje, em que se busca mais prevenir a ocorrência dos danos do que pretender a tutela da situação quando já consumado o prejuízo.

            Na sequência, examinam-se as funções com que a doutrina qualifica a responsabilidade civil, entre as quais a tradicional compensatória e também a polêmica aflitiva ou sancionatória, enfatizando-se, outrossim, no que consistiriam os chamados punitive damages e como são vistos no direito brasileiro e no alienígena.

            E, na parte final, há o enfrentamento do tema aqui em estudo, estabelecendo-se a relação entre a responsabilidade contratual e o propósito sancionador de que pode ser dotada a indenização, assim como a imperiosidade de, atualmente, rechaçar nas relações de consumo as práticas abusivas, prejudiciais não só aos consumidores individualmente considerados, mas igualmente à coletividade de contratantes que se veem submetidos às contratações massificadas e não raro lesivas.

1. Evolução da ideia de responsabilização civil

            Antes de chegar propriamente ao objeto do presente trabalho, é necessário observar como a evolução através dos tempos do tema relativo à responsabilidade civil indicou as premissas e o espírito da sua aplicação nos dias de hoje.

Com esse propósito em vista é que José de Aguiar Dias asseverou que o dever de reparar o dano se inspira, “...antes de tudo, na preocupação de harmonia e equilíbrio que orienta o direito e lhe constitui o elemento animador.”. Logo, ante o dinamismo que é a marca desse instituto, diz o célebre autor que o seu processo evolutivo tem de adaptar-se a processos e técnicas que se aprimoram na sociedade, para que assim se atenda à “...finalidade de restabelecer o equilíbrio desfeito por ocasião do dano, considerado, em cada tempo, em função das condições sociais então vigentes.” [1].

Pois bem. Até que houvesse alguma regra jurídica ordenadora de um determinado comportamento no que toca à responsabilização civil, entre os homens imperou sistema do talião, em que um mal haveria de ser respondido pela causação de outro correspondente. É dizer, inicialmente a vingança apresentava-se como o meio mais natural e espontâneo de coibir injustiças, a forma mais imperfeita e antiga de recompor a harmonia social.

E regra passou a existir no momento em que o costume do emprego da lei do talião recebeu a atenção da Autoridade, que então legislou para estabelecer critérios temporais, procedimentais e de proporcionalidade ao uso da vingança. Foi o caso da Lei Mosaica ou Lei de Moisés, na antiguidade, o Código de Hamurabi (aproximadamente 1.700 a. C.) e o Código de Manu (entre séculos II a. C. e II d. C.)  [2].

Tempos depois, prevaleceu a razão à paixão, o que se verificou a partir da instituição das composições, que seriam penas privadas caracterizadas pela entrega voluntária de uma soma em dinheiro em troca do perdão pelo agravo cometido. Cuidava-se de faculdade da vítima, que ainda poderia vingar-se do ofensor [3].

Não demorou muito para a Autoridade perceber que os danos causados por um particular a outro, além de ferirem os interesses destes, importariam um desassossego no corpo social, de modo que houve por bem institucionalizar as compensações, tornando-as obrigatórias para, assim, gerar a tranquilidade pública.

Disso também adveio a relevante separação dos delitos em privados e públicos, divididos em conformidade com o sujeito atingido, no primeiro caso o particular e no segundo o Poder dominante. Incumbiria a este último, pois, sancionar o ofensor (responsabilidade penal) e fixar a justa composição (responsabilidade civil) [4].

A evolução histórico-jurídica acima relatada mostrou-se claramente delineada em Roma, desde a época da vingança pessoal àquela de Justiniano, em que diferenciadas a responsabilidade penal da civil. Tanto a legislação romana quanto os trabalhos dos jurisconsultos careceram, contudo, de um princípio geral da responsabilização.

A Lei das Dozes Tábuas bem retratou a transição entre a vingança pessoal e a pena privada. A vingança, porém, seguiu como a tônica da legislação romana, que não se liberou dessa ideia para chegar, como deveria, ao conceito de condenação civil, equivalente à indenização.

Na Lei das Doze Tábuas, havia delitos privados que não se encaixavam nos conceitos de injúria e de furto, e para reprimi-los, o tribuno Aquilius propôs um plebiscito que posteriormente resultou na Lei Aquilia, a qual previa ação contra o autor de um dano cujo objeto seria o prejuízo calculado sobre o maior valor da coisa deteriorada ou destruída no mês ou ano precedente ao delito, que seria contabilizado em dobro no caso de desconhecimento ou negativa do autor do dano [5].

Consistiu referida Lei em tentativa de generalização dos avanços conquistados no direito anterior. Ocorre que, nas etapas da evolução da responsabilização civil, enquanto o propósito era o de satisfazer o sentimento de vingança, a culpa do agente não influía em nada. Nem mesmo com a Lei das Doze Tábuas ou a Lei Aquiliana esse quadro alterou-se, nem mesmo como fator para graduar o alcance do dever de responder.

A ideia de culpa inseriu-se no direito romano quando o pretor passou a não admitir a ação decorrente de delito praticado contra menor ou demente, incapazes de compreender os alcances dos seus atos. No final da República é que os jurisconsultos trouxeram o conceito de culpa, até mais leve, como requisito às ações nascidas da Lei Aquiliana.

Foi, no entanto, no Código Civil francês (Code Napoleon), vigente a partir de 1804, que se verificou o primeiro grande trabalho legislativo sobre a responsabilidade civil, vale dizer, o que melhor incorporou o princípio romano do alterum non laedere [6].

Tal sucedeu na formulação de um princípio geral da responsabilidade civil, que deixou de lado a enumeração de casos, passando a abarcar os danos que não se limitavam aos prejuízos visíveis materiais e, outrossim, a não distinguir a gravidade da culpa para a caracterização do dever de indenizar [7]. A sanção passou a ser não uma pena, mas sim uma restituição integral.

Na França dos 1880, aplicava-se tranquilamente a teoria da responsabilidade subjetiva, pois bem atendia aos interesses da vítima, assim como satisfazia os princípios morais relativamente à reprovabilidade das condutas humanas. O desenvolvimento industrial, porém, conduziu os tribunais franceses a dispensar para a vítima a prova da culpa. E, posteriormente, por influência da escola positivista italiana de direito penal, desenvolveu-se a responsabilização sem culpa e a correspondente teoria do risco.

Alguns autores defenderam a teoria do risco integral, para os quais qualquer atividade danosa, culposamente praticada ou não, ensejaria o dever de reparar o dano (tese puramente negativa). Uma linha dessa teoria que expurga a culpa da equação da responsabilidade civil seria a de apenas vislumbrar patrimônios, eliminando a pessoa; outra entende a eliminação da culpa como forma de socialização do Direito.

Críticas à teoria do risco surgiram: não se pode eliminar simplesmente a pessoa, pois o Direito não é tão só materialista (Mazeaud e Tunc), daí porque a supressão do exame da culpa nas relações humanas conduz a situações de injustiça (Planiol) [8].

Com a evolução social, tornou-se cada vez mais difícil sustentar a responsabilidade baseada apenas na culpa, tanto que, em determinado momento, como exigência equitativa, viu-se necessário garantir o ressarcimento do lesado, atribuindo o dano a quem se voltou o proveito econômico [9].

E diz mais o jurista italiano que a responsabilidade objetiva tem, portanto, como função pressionar pela redução do risco. Isso se faz, explica, mediante o controle das condições gerais do risco, muitas vezes mais eficaz do que aquela realizada por meio da culpa nos particulares atos da atividade perigosa [10].

Por fim, a ideia que parece dominar a modernidade no tópico da responsabilização civil é a de que se há de superar o paradigma de olhar-se apenas o passado para responsabilizar alguém, sendo de todo conveniente, em verdade, voltarem-se as preocupações para o futuro, enquanto ainda não materializado o prejuízo.

A atuação preventiva tem como mérito evitar que o dano se instale e produza seus efeitos. Vislumbra-se, com efeito, a insuficiência do paradigma meramente de ressarcimento de que se dotaria a responsabilidade, o mesmo acontecendo com as sanções de caráter penal e administrativo sancionador, cuja força punitiva estaria sob amarras que resultariam na ineficácia de ambos.

E é isso que, em precioso trabalho, propõe Thaís Goveia Pascoaloto Venturi, ou seja, que “...todas as alterações experimentadas pela sociedade dos séculos XX e XXI parecem forçar um redimensionamento do direito da responsabilidade civil, mediante uma refundamentação preventiva...”, de tal sorte que não se haveria de falar em responsabilidade civil, penal ou administrativa, nem em limites temporais e espaciais para a incidência desse dever e, sim, numa “responsabilidade jurídica”, com os olhos voltados ao futuro [11].

Nesse sentido, oportuna, como remate, a conclusão de Rogério Donnini a respeito do preciso emprego do princípio do neminem laedere, no qual se fundamenta a noção de responsabilidade, a atuar como “...verdadeiro limite, real empecilho à livre ação ou omissão que prejudique outrem, que abrange não apenas a noção de reparação do dano, mas, antes de tudo, sua prevenção.” [12].

2. As funções da responsabilidade civil e a indenização punitiva

            Analisada a linha evolutiva de como se formou a ideia de responsabilização civil através do tempo, revela-se imprescindível ao estudo ora realizado examinar as funções que por meio dela são exercidas.

            Já se verificou que a responsabilização do ofensor tem por objetivo a pacificação social. Tal se alcançaria, a princípio, mediante o uso da vingança, ao depois substituída pela compensação, voluntária e em seguida compulsória, que evoluiu para uma concepção puramente indenitária e com traços de regra geral lastreada na culpa, culminando-se, no período da industrialização e exponencial crescimento de riscos, na responsabilização objetiva e, por último, chegando-se à ideia hoje defendida de que se há de prevenir a ocorrência de danos muito mais do que observá-los suceder e apenas atuar a posteriori.

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            O que se observa no relato histórico-evolutivo da responsabilidade civil é uma mescla de funções a que serviria dito instituto, com vistas à harmonização da sociedade.

            A primeira é a demarcatória, referida por alguns autores estrangeiros, a qual estabeleceria a distinção “...entre aquilo que está permitido, é dizer, dentro do livre âmbito de atuação e aquilo que está proibido pela norma, que não necessariamente tem de estar tipificada...” [13].

Cuida-se, com efeito, “...de estabelecer uma delimitação de fronteiras entre os âmbitos de liberdade de atuação e aqueles outros em que se outorga uma certa dose de proteção a determinados bens e interesses, que, por esta mesma razão, colocam limites à liberdade ou autolimitações dela própria na medida em que determinadas atuações livres podem impor um grau de responsabilidade.[14].

            A segunda e mais evidente delas – ao menos como hoje se apresenta – é a compensatória, também conhecida como indenizatória, talvez a mais importante de todas. A questão da diferença terminológica entre ambas, em que a primeira significaria conferir ao lesado o equivalente do que perdeu, enquanto a segunda consistiria em torná-lo indene, influi apenas e tão somente no que toca à determinação da forma de reparação do dano (in natura e in pecunia).

            Tal função compensatória atua sempre com a intervenção posterior à ocorrência do ilícito, com ela objetivando-se “...restabelecer as coisas ao estado anterior...” [15]. Como seu corolário há o princípio da reparação integral do dano (Código Civil Brasileiro de 2002, artigo 944, caput), segundo o qual os prejuízos causados hão de ser reparados por completo.

            Direciona-se, outrossim, muito mais aos danos materiais, que com maior facilidade admitem o restabelecimento ao estado anterior ao da lesão, do que propriamente àqueles morais, que, ferindo a personalidade da vítima, inviabilizam a perfeita recomposição do interesse lesado para que ele volte a ser o que era antes de perpetrada a ofensa.

            Introduzindo uma terceira função à reparação civil, a punitiva, Patrizia Ziviz aduz que, no ressarcimento dos prejuízos extrapatrimoniais, são opostas duas funções da responsabilidade civil, que seriam a função satisfativa, cujo principal escopo seria o de “...fornecer à vítima uma satisfação que possa apagar em relação ao sujeito a repercussão negativa sofrida no seu patrimônio imaterial.”, e a função aflitiva ou punitiva que a entrega de soma em dinheiro à vítima representaria, voltada essencialmente a punir o autor do dano [16].

            Relata a autora, ademais, a existência de uma posição intermediária, em que a indenização dos danos morais teria função aflitivo-satisfativa, servindo o quantum indenizatório tanto para oferecer consolo à vítima quanto para punir o agente causador do dano [17].

            Aliás, pertinente a transcrição de extrato de histórica sentença da Corte Constitucional da Itália (sentença n. 184/1986), consoante a qual “...conceber que a responsabilidade civil tenha caráter exclusiva ou prevalentemente sancionatório seria infundado e, além disso, anti-histórico. Porém, depois de atenta leitura do citado relatório ministerial ao Código Civil é impossível negar ou ter como irracional que a responsabilidade civil por ato ilícito seja capaz de prover não apenas a reintegração do patrimônio do lesado, mas ulterior e notadamente também, e ao menos em parte, prevenir e sancionar o ilícito, como acontece precisamente com a reparação dos danos não patrimoniais decorrentes de crime.” [18].

            Em conformidade com a oportuna lição de Sérgio Severo, “A indenização de caráter exemplar ou punitivo [...] é estabelecida como uma resposta jurídica ao comportamento do ofensor e como mecanismo de defesa de interesses socialmente relevantes.” [19].

            No mesmo rumo e com igual importância as palavras de Humberto Theodoro Júnior de que “Há, nisso [sanção contra o culpado], razão de ordem ética, que, todavia, deve ser acolhida com adequação e moderação no campo da responsabilidade civil, que é geneticamente de direito privado, e não de direito público, como se dá com o direito penal.” [20].

            Não é difícil perceber existirem críticas à orientação de que a reparação dos danos morais teria em si uma carga sancionatória. Sobre o tema, Alfredo Orgaz afirma que o ressarcimento do dano imaterial “Não é uma pena”. Segundo o autor, para todos os efeitos seria o dano moral equivalente ao patrimonial, em ambos se procurando conceder à vítima “...uma satisfação ou compensação dos danos que sofreu, em seu patrimônio e em seus valores morais, a raiz do ato ilícito.” [21].

            E Anderson Schreiber, em uma das mais contundentes glosas, assevera que “...a defesa da reparação punitiva nos ordenamentos de civil law parece mesmo inadequada, não apenas pelos resultados negativos que a experiência tem produzido nos Estados Unidos, ou pela já mencionada incompatibilidade com conceitos basilares da tradição romano-germânica, mas sobretudo por situar-se na contramão da evolução mais recente da responsabilidade civil. Como já se viu, o avanço da responsabilidade objetiva e as alterações na própria noção de culpa têm conduzido a responsabilidade civil a um campo dissociado de preocupações subjetivistas e cada vez menos sensíveis à ideia de culpabilidade. Os punitive damages são a essência da orientação contrária – fundam-se, inteiramente, no grau de culpabilidade do agente e radicam-se fundo na ideia de reprovação moral e castigo exemplar do ofensor. Opõem-se, desta forma, a toda a marcha que a responsabilidade civil vem desenvolvendo nos dois últimos séculos. Por isso mesmo, parecem carecer de lugar no cenário que se anuncia: o da solidarização da reparação dos danos.” [22].

            No direito alienígena, são diversificadas as funções atribuídas à reparação do dano moral. Na Alemanha, por exemplo, admite-se a dupla função da indenização. O Direito Argentino, por sua vez, tem opiniões divididas, havendo quem sustente a possibilidade de considerar o aspecto punitivo na quantificação do valor do ressarcimento. Já na Áustria e na Espanha, a finalidade é meramente compensatória. Finalmente, em Portugal há expressa previsão legal para a adoção de critérios punitivos na fixação do montante da indenização do dano moral (artigos 494 e 496, n. 3, primeira parte do Código Civil) [23].

            A questão no Judiciário Brasileiro merece particular atenção. O Superior Tribunal de Justiça, em mais de um precedente, e neles adotando uma idêntica posição, diz que “A aplicação irrestrita das ‘punitive damages’ encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio que, anteriormente à entrada do Código Civil de 2002, vedava o enriquecimento sem causa como princípio informador do direito e após a novel codificação civilista, passou a prescrevê-la expressamente, mais especificamente, no art. 884 do Código Civil de 2002.” [24].

            No entanto, em reiterados julgados, a mesma Corte Superior estabelece como critério para a justa fixação do valor dos danos morais o caráter punitivo-pedagógico da indenização [25]. É dizer, cria-se uma evidente contradição, na medida em que, de um lado, não se haveria de tomar o caráter sancionador desmedidamente, porém, de outro, é justamente ele que invariavelmente norteia o arbitramento da quantia para o ressarcimento dos danos morais.

            À vista dessa indefinição quanto à aplicabilidade da indenização punitiva no Brasil, que tende muito mais à sua expressa rejeição do que acolhimento, muitas vezes embutido no arbitramento do dano moral, é que há casos, como o recentemente verificado com a multinacional Petrobrás [26], nos quais existe preferência do lesado por ingressa na Justiça de outro país.

            Aliás, os punitive damages, cuja melhor tradução conduz ao termo indenização punitiva, exercem variadas funções que vão além da mera punição do causador do dano, como dito por Pedro Ricardo e Serpa [27]. Seriam elas a função de justiça pública [28], preventiva [29], punitiva [30], educativa [31], vingativa [32] e compensatória [33].

            Partindo das premissas fixadas com as funções atribuíveis à indenização punitiva, destacam-se as mui pertinentes observações de Suzanne Carval [34] de que “A função punitiva da responsabilidade civil é largamente aplicada para assegurar a proteção dos atributos da personalidade. Sob a máscara da reparação de um dano, ela é utilizada para sancionar violações de normas de conduta. Rápida e rigorosa, a condenação civil tornou-se indispensável, concorrendo com aquela penal.”.

            Daí exsurge, ademais, outra função inerente à responsabilidade civil e que possui estreita relação com a anterior, que é a preventiva, característica esta da responsabilização à qual, em clássica obra, André Tunc referiu ser indiscutível [35].

            Ou, como prefere dizer Fernando Noronha [36], “...é paralela à função sancionatória e, como esta, tem finalidades similares às que encontramos na responsabilidade penal, desempenhando, como esta, funções de prevenção geral e especial: obrigando o lesante a reparar o dano causado, contribui-se para coibir a prática de outros atos danosos, não só pela mesma pessoa como sobretudo por quaisquer outras.”

            Tamanha é a sua importância no cenário da responsabilidade civil que se mostra possível extrair a necessidade da tutela preventiva do próprio texto da Constituição da República, no qual regidos o direito de resposta proporcional ao agravo e à indenização (artigo 5o, V), a inviolabilidade dos direitos da personalidade (artigo 5o, X) e a inafastabilidade do Poder Judiciário para apreciar lesões ou ameaças de lesão (artigo 5o, XXXV), ou seja, preveni-las, de todos eles se retirando a tutela constitucional da prevenção do dano.

            É que, “Atualmente, cada vez mais se exige do Estado e da sociedade a prevenção do eventos damni. Não mais se admite apenas a reparação do prejuízo suportado que, muitas vezes se torna despiciendo ou mesmo inócuo, se a lesão é de grande extensão e atinge um número considerável ou indefinido de pessoas (danos coletivos ou difusos), mas sua prevenção.” [37].

            Logo, tão relevante quanto a função de repreender comportamentos antijurídicos já verificados é aquele de prevenir a sua ocorrência para que dano não haja a reparar.

3. A responsabilidade contratual e a função punitiva

            Por último, a análise do presente trabalho cuida da relação contratual, da responsabilidade civil dela decorrente e da sobredita função punitiva da reparação dos danos. Significa dizer, indaga-se se seria possível responsabilizar alguém, com fundamento num contrato, impondo-se-lhe na condenação uma sanção.

            Nas hipóteses em que versada responsabilidade contratual, ou seja, em que tenha havido “...o inadimplemento da obrigação e, portanto, a violação de uma relação de débito e crédito já vinculante às partes [...], qualquer que seja a fonte da qual é retirada aludida relação obrigacional (de contrato ex lege, de ato unilateral ou até mesmo de um pregresso ato ilícito)...” [38], como regra o dano desse fato resultante é majoritariamente patrimonial.

            E isto o Superior Tribunal de Justiça já pacificou, ao reiteradamente decidir que “Não cabe indenização por dano moral em caso de mero aborrecimento decorrente de descumprimento contratual.” [39]. Justifica-se esta posição, visto que “Os aborrecimentos deles decorrentes [inadimplemento, mora ou prejuízo econômico] ficam subsumidos pelo dano material, salvo se os efeitos do inadimplemento contratual, por sua natureza ou gravidade, exorbitarem o aborrecimento normalmente decorrente de uma perda patrimonial e também repercutirem na esfera da dignidade da vítima, quanto, então, configurarão o dano moral.” [40].

            Pois bem. Conquanto pareça não ter a indenização punitiva qualquer aplicação nos casos de responsabilidade contratual, porque em tese a natureza dos prejuízos dela advindos não autorizaria a imposição de sanção, o fato é que há, sim, a possibilidade de isso ocorrer.

            Veja-se, por exemplo, o magistério de Ramón Daniel Pizarro de que, “A princípio, a indenização punitiva não é aplicável a questões vinculadas com o descumprimento do contrato. Sem embargo, doutrina e jurisprudência admitem excepcionalmente sua procedência quando ‘...a conduta da parte que provoca a ruptura contratual é excessiva e vem acompanhada de outro agravo, configurador do tort’” [41].

            Dessa conclusão não se afasta o Direito Inglês que, no breach of contract (ilícito contratual), não admite como regra a incidência da indenização punitiva, o que é excepcionado quando “...o aludido inadimplemento venha acompanhado de uma conduta fraudulenta ou de algum outro ato intencional, abusivo ou grosseiramente negligente que se caracterize, por si só, como ilícito aquiliano...” [42].

            O citado autor defende a fixação de indenização punitiva nos casos de responsabilidade contratual, quando alto o grau de reprovabilidade da conduta ensejadora do rompimento do vínculo negocial, e isto porquanto (I) por seu escopo comum, “...as modalidades de responsabilidade civil se aproximam uma da outra, interpenetrando-se em diversas oportunidades.”; (II) há o fenômeno da expansão dos prejuízos passíveis de reparação, que seriam os interesses e direitos existenciais e metaindividuais, que não poderiam ser equiparados a meros prejuízos patrimoniais; e (III) por vezes a quebra do contrato pode ser motivada pelo ilícito propósito de auferir vantagens econômicas [43].

            Nesses termos há inúmeros exemplos lembrados pela doutrina de casos denotadores da necessidade de responsabilização do agente com a imposição de pena, como aquele noticiado por Caroline Vaz [44], julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, de ação civil pública movida pelo Ministério Público contra um posto de gasolina local que vendia combustível adulterado, conduta esta que prejudicava os consumidores individualmente, mas também toda a coletividade que potencialmente dele se servia.

            Ou mesmo a hipótese, corriqueira na realidade e lembrada por Adriano Stanley Rocha Souza e outros [45], de um filme hollywoodiano (The rainmaker – O homem que fazia chover), no qual uma empresa de venda de planos de saúde insistentemente recusava tratamentos, contando com o baixo número de reclamações dos clientes e com o diminuto valor dos acordos que celebrava em juízo, caso a isto chegassem as partes.

            Muito semelhante o caso envolvendo a multinacional norte-americana Ford, que, na década de 1980, realizou estudo e concluiu ser-lhe economicamente mais interessante produzir carros defeituosos e arcar com as eventuais demandas indenizatórias do que as evitar e montar veículos mais seguros (Ford Corporation vs Grimshaw, 1981) [46].

            Nesse sentido se manifestou Arthur Luis Mendonça Rollo: “As sanções civis também têm o papel de regular o mercado e de prevenir novos litígios. Quem viola os direitos dos consumidores deve ter, antes mesmo da geração do dano, a certeza de que será punido de forma exemplar e que eventuais condenações repercutirão na sua vida financeira, comprometendo o seu lucro.” [47].

            É que, considerando os baixos valores envolvidos, que desestimulam o consumidor de ingressar com ações individuais, “...a tutela da cidadania reclama o acréscimo intimidatório da conduta de modo a tolher o abuso, bem como deve-se verificar se a observância do dever jurídico ensejaria o dispêndio de valor superior ao pagamento da reparação tradicional, o que pode ser o móvel da resistência do empresário.” [48].

            Versando-se, pois, direitos fundamentais como o são os direitos do consumidor e aqueles de personalidade, natural se pense na indenização e na função que ela deva exercer no tocante à prevenção e repressão de ilícitos, mormente aqueles que repercutem em expressivo número de pessoas, e que esta circunstância se reflita nas decisões judiciais a serem proferidas.

            Por isso que, numa sociedade na qual as contratações são cada vez mais padronizadas e massificadas, permanecendo o consumidor a mercê das condições ditadas pelos fornecedores, evidencia-se imperioso desestimular as práticas contratuais abusivas, fazendo valer, então, o preceito legal que estabelece os direitos básicos dos consumidores (Código de Defesa do Consumidor, artigo 6o), notadamente o do inciso VI (“a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”).

Conclusão

            Feitas as considerações acima lançadas, nota-se que, a partir da evolução que o instituto da responsabilização civil teve durante os tempos, é possível verificar claras mudanças de perspectiva, desde a simples vingança até a necessidade de distribuição dos riscos e prevenção dos danos, tudo isto sempre visando à pacificação social.

            Outrossim, constatou-se que das funções da responsabilidade civil contemporânea, aquela que mais polêmica traz e que também melhor atende aos modernos reclamos do instituto (punir e prevenir) é a função sancionatória.

            Conclui-se, finalmente, que, apesar de uma aparente incompatibilidade entre a responsabilidade contratual e a função punitiva, em verdade óbice algum há se confira àquela tal qualidade. Muito ao contrário, trata-se de providência salutar e corroboradora dos fins da responsabilização civil.

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Sobre o autor
David Cury Neto

Advogado e Mestrando em Direito Civil Comparado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP

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