A violação dos direitos e garantias fundamentais pelas manifestações do direito penal do inimigo no ordenamento jurídico brasileiro

06/02/2015 às 09:36
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A violação dos princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito.

1. Introdução

    No Brasil, embora não haja claramente a adoção do Direito Penal do Inimigo, e até mesmo ocorra uma negação da Teoria em comento, inúmeros são os diplomas legais editados sob sua influência, e projetos de leis tramitam ignorando garantias constitucionais, demonstrando que há uma preocupação em se eleger um público alvo de diplomas legais cada vez mais rígidos, voltados à punição daqueles que subvertem a ordem e que, por isso, podem ser considerados inimigos do Estado.
    Isso se deve porque a Teoria do Direito Penal do Inimigo viola princípios como da ultima ratio do Direito Penal, da dignidade da pessoa humana, além de não se coadunar com a própria essência de um Estado Democrático de Direito.
    Não obstante, por pressão da sociedade e dos meios de comunicação, é comum visualizar a eleição de “inimigos”, e a consequente edição de leis mais rígidas, que consagram princípios que vão de encontro aos direitos e garantias fundamentais, e ao próprio fim do Direito Penal.·.
    Assim, busca-se, com esse breve ensaio, uma análise das manifestações do Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico pátrio e, por conseguinte, a violação dos princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito, em especial as garantias e princípios penais e processuais.

2. Desenvolvimento

    Com o passar dos anos o Direito Penal sofre modificações diversas, mormente no que diz respeito às suas funções, pois como salienta Prado (2003, p. 27) a função primordial desse ramo do Direito, nos primórdios da humanidade, era eminentemente teológica ou privada, pois objetivava a proteção apenas dos interesses divinos, o que não encontra amparo na atualidade, já que objetiva a tutela dos bens jurídicos declarados pelo Estado como de relevante valor.
    Importa registrar que ao Estado-legislador não compete à criação desses bens jurídicos por critérios subjetivos, pois a sua identificação deve observar princípios limitadores impostos pelo Direito Penal.
    Ao tratar da função do Direito Penal, Bitencourt (2006, p. 02) pontua que enquanto conjunto de normas e princípios cuja finalidade é criminalizar condutas intoleráveis para a sociedade, visando sua aplicação nos casos concretos, deve o legislador observar os princípios fundamentais, assumindo seu papel valorativo e essencialmente crítico.
    Não é demais ressaltar que nos primórdios da humanidade, quando a função precípua do Direito Penal era de natureza privada, os interesses sociais pouco importava, conduta esta inaceitável na atualidade. 
     Com o surgimento do Estado Democrático de Direito, o Direito Penal assumiu a função de proteção da sociedade, buscando não só aplicar o seu poder punitivo diante das ameaças ou danos aos bens jurídicos protegidos, como também a função de criar limites jurídicos ao poder Estatal, sempre em seu sentido democrático.
    Não obstante essa preocupação, na década de 80 foi cunhada pelo penalista alemão, Günther Jakobs, a figura do “inimigo”, que ganhou força com o desenvolvimento da Teoria do “Direito Penal do Inimigo”, que clama, em apertada síntese, o endurecimento da legislação penal.
    O Direito Penal do Inimigo, formulado por Günther Jakobs, trata de um direito onde se busca o combate aos que representam perigo ao Estado, ou seja, um Direito Penal que não busca a coerção de delitos consumados, mas sim a prevenção de delitos que podem vir a ser praticados no futuro, pois o inimigo passa a representar uma ameaça à soberania Estatal, antecipando-se à prática delitiva.
    Santos (2009, p. 45) pontua que o Direito Penal do Inimigo não é um instituto fácil de ser conceituado, pois a sua compreensão clama o entendimento da figura do “inimigo”, ou seja, do delinquente em potencial, além da análise dos seus fundamentos, que são diversos e complexos, embora a busca pela segurança da sociedade, principalmente pela prevenção de crimes com fulcro na periculosidade do autor, tendo ele praticado ou não o crime, é a mais importante.
    Desta feita, o caráter seletista do Direito Penal do Inimigo é evidente, pois estabelece sanções limitadas aos iguais, ou seja, àqueles que possuem condições de serem ressocializados, considerados de “cidadãos”, ao passo que aos denominados “inimigos” são punidos com sanções mais rígidas, ilimitadas e desproporcionais, bastando, para tanto, que sejam tais indivíduos considerados perigosos à sociedade, e que por isso devem ser eliminados pelo risco que representam ao ordenamento jurídico (SANTOS, 2009, p. 45).
    Não há como negar, portanto, que a principal característica do Direito Penal do Inimigo é o fato de adiantar-se, punindo abstrativamente determinadas condutas, uma vez que, ao estabelecer determinados sujeitos como inimigos, passa a considerar suas condutas, de antemão, como ilícitas.
    Dessa prática decorre outro fato marcante da Teoria em comento, que é a estipulação de penas desproporcionais, com o agravamento do Direito Penal, o que muito se assemelha à política da "tolerância zero", conduzindo, por conseguinte, à supressão de algumas garantias processuais, pois os "inimigos", na visão do Direito Penal do Inimigo, não são detentores de garantias semelhantes às dos cidadãos, garantias estas que podem ser facilmente suprimidas.
    Factualmente, o Direito Penal do Inimigo vai de encontro aos princípios e garantis penais e processuais consagrados no ordenamento jurídico brasileiro, tais como o da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da anterioridade da lei penal, da humanidade da pena, da presunção da inocência, da proporcionalidade e razoabilidade, dentre outros, vários consagrados expressamente no bojo da Constituição da República de 1988.
    Não obstante, o ordenamento jurídico pátrio vivencia, ao longo dos últimos anos, a difusão do medo e a utilização de diplomas legais como mecanismo de controle e neutralização do jurisdicionado, o que, não raras vezes, é reforçado pela atuação dos meios de comunicação, que reforçando a ineficácia do Estado no tocante à punição do agente infrator, influencia o Poder Legislativo a editar normas mais rígidas, no afã de obstar o crescente índice de criminalidade, além de intervir na imparcialidade do julgador, notadamente quando se trata de crimes de grande repercussão social, propagando a ideia de que o delinquente é um verdadeiro “inimigo” do Estado.
    Segundo Rosa e Silveira Filho (2009, p. 7-8), no Brasil há um alarmante crescimento do Direito Penal, que conduz ao maior número de tipos penais, não raras vezes com o aparecimento de normas arbitrárias, sendo o medo elemento que fomenta a atuação, em resposta a pressão social.
    Instaura-se uma falsa impressão de que o combate ao crime e, por conseguinte, ao criminoso, se concretiza com a edição de leis, ignorando que a violência é um problema social grave e complexo, que clama a atuação de diversos segmentos da sociedade e setores do Estado, sob pena de se adotar medidas meramente emergenciais. 
    Não obstante essa constatação, fato é que o sistema penal está cada vez mais presente na sociedade, ou seja, cada vez mais se crê (ou se faz crer) na solução através do Direito Penal, e o senso comum, forjado pelos meios de comunicação, em grande escala, preconiza ser função do Direito Penal o combate à criminalidade. O delinquente passou a ser visto, ainda que não se adote expressamente a Teoria do Direito Penal do Inimigo, como alguém que está em “constante guerra” com o Estado, e que por isso precisa ser combatido.
    Segundo Rosa e Silveira Filho (2009, p. 08), propaga-se a ideologia de que o combate ao crime e à violência somente será eficaz se as leis forem cada vez mais rígidas, seja na forma de cumprimento, seja no quantum da pena, pois senão o fim proposto jamais será alcançado, instaurando-se o medo e a insegurança.
    Some-se, a esse triste quadro, o fato de que o Estado acaba por eleger os principais delinquentes que serão enfrentados diuturnamente, ou seja, aqueles que maior ameaça causam ao sistema, e que precisam, por isso, ser neutralizado. É o traficante, o sequestrador, o contrabandista. Em cada momento histórico um determinado estereotipo é eleito, e os instrumentos de combate se voltam a estes sujeitos.
    O Estado não se preocupa em adotar medidas que efetivamente proporcione o enfrentamento da criminalidade, e ignora que a violência é um problema social complexo, e acaba atuando emergencialmente, mas sempre em desfavor de “inimigos” determinados, não raras vezes "construídos" pela mídia, como se deu, por exemplo, com a criação da Lei dos Crimes Hediondos, que contou com o apoio da mídia televisiva após um crime que chocou o país não apenas por sua crueldade, o que é inquestionável, mas por envolver uma "jovem celebridade global".
    Também se visualiza tal equívoco quando da edição da Lei nº 10.792/2003, que instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado, quando o Estado elegeu como “inimigos” alguns presos de alta periculosidade, que desafiavam as autoridades e, mesmo recolhidos à prisão, continuavam a comandar o crime, direcionar seus comparsas e a demonstrar o “poder” exercido pelas facções criminosas. 
    Machado (2009, p. 112) ressalta que no afã de dar respostas à sociedade, utiliza-se de medidas que resultam no endurecimento do sistema penal, na maior criminalização das condutas e, ainda, no aumento das penas, sem prejuízo da mitigação das garantias processuais, medidas que se identificam claramente com o Direito Penal do Inimigo, e que se justificam com o medo imprimido na sociedade.
    Não há como negar que a Teoria do Direito Penal do Inimigo, nos moldes propostos por Günther Jakobs, não chegou a ser efetivamente implementada no ordenamento jurídico brasileiro. Não obstante, reflexos são facilmente identificados, e o endurecimento do Direito Penal vai de encontro a garantias do acusado/apenado, violando, por conseguinte, Convenções de Direitos Humanos, já que a Declaração dos Direitos do Homem, bem como o Pacto de São José da Costa Rica, dentre outros, expressamente preconizam a necessidade de que sejam as penas cumpridas de forma a observar a dignidade e a humanidade, ou que a presunção da inocência impere até o trânsito em julgado.
    Porém, quando se visualiza no delinquente um indivíduo que, por suas características clama a intervenção prévia do Estado, seja por merecer tratamento mais gravoso quanto ao processamento dos delitos por ele cometidos, seja pelo tratamento dispensado quando do cumprimento da pena, ignora-se todas as garantias penais e processuais, retirando-se do indivíduo a sua condição de cidadão, claro retrocesso na evolução do Direito Penal.
    Resta claro, portanto, que se deve invocar, sempre que visualizadas, situações em que as garantias do indivíduo forem mitigadas por medidas que importem em tratamento desumano, degradante, cruel, que retire do indivíduo a sua condição de cidadão, aproximando-lhe da condição de “inimigo”, as garantias penais e processuais consagradas na Constituição de 1988, em especial a dignidade da pessoa humana. 

3. Conclusão

    Com a Teoria desenvolvida por Günther Jakobs, nasce de uma divisão do Direito Penal entre as normas destinadas aos cidadãos, punindo apenas aqueles que se desviaram da conduta social, ou seja, do que prescreve as leis, ao passo que o Direito Penal do Inimigo preconiza que àqueles indivíduos considerados perigosos a sociedade deve ser empregado tratamento diferenciado, ou seja, devem perder direitos inerentes ao processo e, ainda, direitos humanos, retirando-lhe as características de cidadão do agente, pois a eles apenas resta à exclusão.
    Em que pesem as críticas ao funcionalismo radical de Jakobs, por mitigar garantias processuais e penas, conquistadas ao longo da evolução do Direito Penal, o Brasil convive com manifestações da Teoria do Direito Penal do Inimigo, embora seja esta totalmente incompatível com um Estado Democrático de Direito.
    Ocorre, ainda, que a mídia exerce um papel fundamental na propagação do medo, contribuindo para que a sociedade "cobre" do Estado medidas emergenciais, tornando o problema cíclico, pois se editam leis mais rígidas, elegem-se inimigos, aumenta-se a criminalidade, novas leis também rígidas são editadas, os índices de reincidência demonstram a ineficácia do Estado e a sociedade torna-se refém do medo.
     Conclui-se que tais medidas são emergenciais, e não raras vezes vem atender ao clamor popular, motivo pelo qual se mostram ineficazes, pois não são capazes de por fim à criminalidade, embora mitigue direitos e garantias fundamentais, além de contribuir para o endurecimento do Direito Penal, comprometendo a evolução pela qual passou a pena, clamando uma revisão a luz dos direitos e garantias fundamentais. 

4. Referências 


BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 1.


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%E7ao_Compilado.htm. Acesso em: 22 jan. 2015.


MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Direito e Política na Emergência Penal: Uma Análise Crítica à Flexibilização de Direitos Fundamentais no Discurso do Direito Penal do Inimigo. Revista de estudos criminais, Porto Alegre, v. 9, n. 33, p.111-134, Abr/Jun. 2009.


ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php>. Acesso em: 26 jan. 2015.
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

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ROSA, Alexandre de Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. 2ª Tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.


SANTOS, Admaldo Cesário dos. Direito penal do inimigo e a culpa jurídico penal: o problema da responsabilidade pelo livre-arbítrio. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009.

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Sobre o autor
Joao Ricardo Papotto Rosa

Estudante de Direito - FIG (UNIMESP)

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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