O tema da prisão civil vem se mostrado bastante controverso nas instâncias judiciárias, especialmente na jurisdição dos Tribunais Superiores (STJ e STF), e também na doutrina. Trata-se de uma questão de extrema relevância, já que envolve o cerceamento da liberdade do ser humano. O assunto extrapola a questão creditícia alcançando, portanto, um direito fundamental.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso LXVII, determina que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. O Código Civil de 2002 prevê, no artigo 652, seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e a ressarcir os prejuízos, e o Código de Processo Civil prescreve também, no artigo 904, parágrafo único, a prisão do depositário infiel, qualificado pela doutrina como aquele que recebe a incumbência judicial ou contratual de zelar por um bem, mas não cumpre sua obrigação e deixa de entregá-lo em juízo, de devolvê-lo ao proprietário quando requisitado, ou não apresenta o seu equivalente em dinheiro na impossibilidade de cumprir as referidas determinações.
No entanto, o Brasil, em 1992, ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que, em seu art. 11, dispõe que “ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”, e a Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamada Pacto de São José da Costa Rica, cujo art. 7.7 estabelece que ninguém deve ser detido por dívidas e que este princípio não limita os mandados judiciais expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Pelo fato de o Brasil ter ratificado esses instrumentos sem qualquer reserva no que tange à matéria, doutrina e jurisprudência questionam a possibilidade jurídica da prisão civil do depositário infiel.
Flávia PIOVESAN explica que os tratados internacionais de direitos humanos inovam significativamente o universo dos direitos nacionalmente consagrados, ora reforçando sua imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo preceitos que sejam menos favoráveis à proteção dos direitos humanos, destacando que em todas estas três hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados de direito humanos apenas vêm aprimorar e fortalecer, nunca restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo interno.
A polêmica relativa à possibilidade de prisão do depositário infiel envolve um conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno, e vincula-se à repercussão ou alcance, no direito brasileiro, da adoção do Pacto de São José da Costa Rica, como fato jurídico superveniente à Constituição atual.
Vale lembrar, ainda, que a Emenda Constitucional 45/2004, por ter inserido um “iter de aprovação” diverso para que os tratados de direitos humanos tivessem status de emenda constitucional, também gerou discussões, já que o Pacto de São José da Costa Rica foi ratificado anteriormente a essa estipulação. Essa emenda determina que tais temas, para serem aprovados, precisam passar por meio de quorum diferenciado.
Destaca-se, ainda, a questão da adesão aos compromissos internacionais firmados pelo Brasil, já que, ratificando os tratados internacionais, o país passa a se responsabilizar perante a comunidade internacional. Assim, o ato de infringir as regras dos tratados internacionais, além de conferir um perfil negativo ao país desrespeitador do estabelecido, pode acarretar a responsabilidade civil e a reparação do dano causado.
Cabe, por fim, ressaltar a relevância do tema tendo em vista que o universo normativo nacional e internacional envolvido nessa polêmica tem fulcro no direito fundamental à liberdade de locomoção do cidadão, cláusula pétrea de nossa Constituição Federal e caracterizada por José Afonso da Silva como o “cerne da liberdade da pessoa física no sistema jurídico, abolida a escravidão”, e como “a primeira de todas as liberdades, condição de quase todas as demais”, segundo Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO.
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