Pacto São José da Costa Rica e a questão da prisão

11/02/2015 às 11:48
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Pontos gerais acerca da discussão da constitucionalidade da prisão civil diante da ratificação brasileira ao Pacto de São José da Costa Rica.

O tema da prisão civil vem se mostrado bastante controverso nas instâncias judiciárias, especialmente na jurisdição dos Tribunais Superiores (STJ e STF), e também na doutrina. Trata-se de uma questão de extrema relevância, já que envolve o cerceamento da liberdade do ser humano. O assunto extrapola a questão creditícia alcançando, portanto, um direito fundamental.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso LXVII, determina que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. O Código Civil de 2002 prevê, no artigo 652, seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e a ressarcir os prejuízos, e o Código de Processo Civil prescreve também, no artigo 904, parágrafo único, a prisão do depositário infiel, qualificado pela doutrina como aquele que recebe a incumbência judicial ou contratual de zelar por um bem, mas não cumpre sua obrigação e deixa de entregá-lo em juízo, de devolvê-lo ao proprietário quando requisitado, ou não apresenta o seu equivalente em dinheiro na impossibilidade de cumprir as referidas determinações.

No entanto, o Brasil, em 1992, ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que, em seu art. 11, dispõe que “ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”, e a Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamada Pacto de São José da Costa Rica, cujo art. 7.7 estabelece que ninguém deve ser detido por dívidas e que este princípio não limita os mandados judiciais expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Pelo fato de o Brasil ter ratificado esses instrumentos sem qualquer reserva no que tange à matéria, doutrina e jurisprudência questionam a possibilidade jurídica da prisão civil do  depositário infiel.

Flávia PIOVESAN explica que os tratados internacionais de direitos humanos inovam significativamente o universo dos direitos nacionalmente consagrados, ora reforçando sua imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo preceitos que sejam menos favoráveis à proteção dos direitos humanos, destacando que em todas estas três hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados de direito humanos apenas vêm aprimorar e fortalecer, nunca restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo interno.

A polêmica relativa à possibilidade de prisão do depositário infiel envolve um conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno, e vincula-se à repercussão ou alcance, no direito brasileiro, da adoção do Pacto de São José da Costa Rica, como fato jurídico superveniente à Constituição atual.

Vale lembrar, ainda, que a Emenda Constitucional 45/2004, por ter inserido um “iter de aprovação” diverso para que os tratados de direitos humanos tivessem status de emenda constitucional, também gerou discussões, já que o Pacto de São José da Costa Rica foi ratificado anteriormente a essa estipulação. Essa emenda determina que tais temas, para serem aprovados, precisam passar por meio de quorum diferenciado. 

Destaca-se, ainda, a questão da adesão aos compromissos internacionais firmados pelo Brasil, já que, ratificando os tratados internacionais, o país passa a se responsabilizar perante a comunidade internacional. Assim, o ato de infringir as regras dos tratados internacionais, além de conferir um perfil negativo ao país desrespeitador do estabelecido, pode acarretar a responsabilidade civil e a reparação do dano causado.

Cabe, por fim, ressaltar a relevância do tema tendo em vista que o universo normativo nacional e internacional envolvido nessa polêmica tem fulcro no direito fundamental à liberdade de locomoção do cidadão, cláusula pétrea de nossa Constituição Federal e caracterizada por José Afonso da Silva como o “cerne da liberdade da pessoa física no sistema jurídico, abolida a escravidão”, e como “a primeira de todas as liberdades, condição de quase todas as demais”, segundo Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO.

Pesquisa Bibliográfica

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ALBUQUERQUE MELLO, Celso de, Curso de Direito Internacional Público, 11ª ed., vol. II, Rio de Janeiro, Renovar, 1997.

 AMARAL JÚNIOR, Alberto do, Introdução ao Direito Internacional Público, 1 ed., São Paulo, Atlas, 2008.

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GOMES, Luiz Flávio, A Questão da Obrigatoriedade dos Tratados e Convenções no Brasil – Particular Enfoque da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, RT 710, ano 83, dez., 1994

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MORAES, Alexandre de, Direitos Humanos Fundamentais – Teoria Geral, 7 ed., São Paulo, Atlas, 2006

MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional, São Paulo, Atlas, 2013.

PIOVESAN, Flávia, Temas de Direitos Humanos, 2 ed., São Paulo, editora Max Limonad, 2002

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Sobre a autora
Michele Pavão

Advogada formada pela Universidade Mackenzie, com especialização em Direito Digital. Atuação de mais de 10 anos no mercado publicitário. Interesses: Direito do autor, do Entretenimento e Digital.

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