Análise de acórdão do Supremo Tribunal Federal : Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2163-0

23/02/2015 às 23:21
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Análise acerca do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal, o qual analisou a declaração de inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 3.364 de janeiro de 2000.

Breve relato do acórdão:

Trata-se de um Acórdão do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, datado de 29 de junho de 2000, sobre um pedido de liminar em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, sob o nº 2163-0, cujo Requerente é a Confederação Nacional de Comércio – CNC e o Requerido o Governador do Estado do Rio de Janeiro, com a relatoria do Ministro Nelson Jobim.

A Requerente propôs a ADIn supracitada, com pedido de liminar, requerendo a declaração de inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 3.364 de 07 de janeiro de 2000, que assegura aos jovens menores de 21 (vinte e um) anos, menores ou não, o pagamento de 50% do valor efetivamente cobrado para entrada em casas de diversão, praças desportivas e similares, alegando, principalmente, que o Estado ultrapassou os limites fixados pela Constituição Federal Brasileira de 1988 em sua atuação na ordem econômica e intervenção no setor privado da economia, não havendo nenhum amparo legal na mesma para a cobrança de preços diferenciados para determinada categoria da população, requerendo ainda a imediata suspensão cautelar do artigo 1º da Lei acima, pois sua aplicação traria danos graves e irreparáveis às empresas de diversão e similares.

A Requerente, em sua peça inicial, alega que a Lei Estadual nº 3.364/2000 deve ser considerada inconstitucional por se tratar de uma intervenção indevida do Estado na economia, agredindo aos artigos 170 e 174 da Constituição Federal do Brasil de 1988.

Além disso, diz que os limites para a intervenção do Estado na atividade econômica foram delimitados pelo artigo 173, §4º da CF/88.

Vejamos os artigos citados:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional;

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

VII - redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII - busca do pleno emprego;

IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

§ 1º - A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.

§ 2º - A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

§ 3º - O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.

§ 4º - As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei.

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

Análise crítica acerca do acórdão:

Nota-se, claramente, da leitura dos artigos citados no tópico anterior que a referida lei não agride aos dispositivos constitucionais, pelo contrário, esta vai de acordo com o que nestes são determinados, conforme será demonstrado a seguir.

O artigo nº 170 da CF/88, apesar de fundar a ordem econômica na livre iniciativa e de proteger o instituto da propriedade privada, visa oferecer a todos uma existência digna, protegendo, entre outros, os princípios da função social da propriedade e da redução das desigualdades sociais.

Pois bem, o princípio da função social da propriedade visa que o proprietário faça uso de seus bens de modo a cumprir sua função social, qual seja a proteção dos interessas coletivos. Do mesmo modo, a redução das desigualdades sociais visa oferecer aos menos favorecidos as mesmas oportunidades colocadas à disposição dos mais economicamente favorecidos. Aplicando esses princípios ao caso concreto, ou seja, a obrigatoriedade de cobrança de 50% do valor cobrado para entrada nas casas de entretenimentos e semelhantes aos menores de 21 (vinte e um) anos de idade, o Estado visa dar a oportunidade aos menores de 21 (vinte e um) anos, classe econômica menos favorecida por ainda não ter, em sua grande maioria, uma renda fixa estável que lhes forneçam condições econômicas para frequentar eventos culturais, principalmente pelo alto valor que nestes são cobrados, eventos estes que possuem grande importância nessa fase de nossas vidas, auxiliando em nossa formação pessoal e cidadã.

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Cabe assim, ao proprietário, aplicando o seu dever de proteger a função social da propriedade, auxiliar o Estado na consecução dos objetivos supracitados, deixando de lado seus interesses individuais, meramente financeiros, em prol do interesse coletivo.

Já o artigo nº 174 da CF/88, dá ao Estado a função normativa e reguladora da ordem econômica, devendo este exercer as funções de fiscalização, planejamento e incentivo deste, de forma indicativa quando para o setor privado. Isso não quer dizer que as determinações do Estado para o setor possam ser simplesmente ignoradas pelo setor privado quando não for interessante para este, porém deve ser de grande importância para o restante da coletividade. O Estado, com seu papel de proteger o interesse social, o qual predomina ao interesse individual, pode e deve determinar que suas regras sejam obrigatoriamente cumpridas pelo setor privado da economia, tendo em vista a relevância do assunto e os benefícios que tais determinações trarão para a sociedade como um todo.

Por fim, o artigo 173 da CF/88 trata da exploração direta de atividade econômica, a qual apenas será permitida em caso de grande relevância para o interesse coletivo ou para garantir a segurança nacional, e não da intervenção que o Estado poderá realizar sobre a atividade econômica, em seu papel fiscalizador, incentivador e de planejamento, muito menos em sua missão de proteger o interesse social em detrimento do interesse individual. A atuação do Estado, ao contrário do que a Requerente alega, não está limitada aos itens citados no §4º do referido artigo, qual seja dominação de mercado, aumento abusivo dos lucros e eliminação da concorrência, sendo estendida a toda ação que vise à proteção dos interesses difusos e coletivos, sua maior e mais importante missão.

Gilberto Bercovici, ao analisar a denominada Constituição Econômica, diz que as Constituições do século XX visam alterar a estrutura econômica existente, determinando políticas e tarefas a serem realizadas no domínio econômico e social buscando a concretização de certos objetivos, nestas pré-determinados. São as chamadas Constituições Dirigentes, da qual faz parte a nossa Constituição Federal de 1988. Tal Constituição, segundo o autor, “torna mais clara a ligação da Constituição com a política e com as estruturas sociais e econômicas”[1].

No entanto, ainda segundo o autor, encontramos nessa Constituição Dirigente as “normas programáticas”, definidas por José Afonso da Silva como “normas constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado”[2]. Tais normas programáticas sofrem severas críticas por serem consideradas normas sem valor concreto. Isso porque, possuem eficácia mediata, dependendo de uma nova norma infraconstitucional que as regulamentem.

Para rebater tais críticas, Gilberto Bercovici destaca que se criou uma ilusão de que a Constituição é autossuficiente, de modo que sozinha pode transformar a realidade social, deixando de lado o Estado e a política, fatores essenciais para efetiva concretização dos dispositivos constitucionais. Dessa forma, é preciso intensificar as reflexões sobre o papel do Estado e os obstáculos que este enfrenta na promoção do desenvolvimento, respaldado pela Constituição.

Fazendo um paralelo com o caso concreto analisado pelo Acórdão, é exatamente sobre o papel do Estado no desenvolvimento social, por meio da aplicação efetiva da intenção do legislador constitucional e das normas programáticas constante na Constituição Federal de 1988, principalmente no capítulo referente à ordem econômica, que devemos nos pautar, de modo que a proteção ao princípio da redução das desigualdades sociais, garantido pelo artigo 170, VII de nossa CF, e a garantia constitucional de acesso à cultura, quando da regulação da ordem econômica sejam efetivamente resguardados. 

Com relação ao pedido de liminar, resta claro que não há a presença dos danos graves e irreparáveis para as empresas de diversão e similares alegados pela Requerente, pois estas, como bem mencionado pelo Relator do Acórdão, tem outras formas de ressarcir os lucros que deixarem de ser auferidos pela imposição da Lei, ao contrário dos menores de 21 (vinte e um) anos que, se desprovidos da proteção da Lei, não terão modos de repararem seus prejuízos quando da decisão definitiva, preferindo, desse modo, nem frequentar tais eventos durante o pedido de concessão da liminar, o que traria irreparável prejuízo aos espetáculos, à cultura e, principalmente, à formação pessoal e intelectual dessa parcela da população, de modo que a decisão de negar o pedido liminar pelo Relator, acompanhado dos demais ministros presentes, não poderia ter sido mais acertada.

Portanto, o entendimento é de concordar plenamente com a decisão proferida no Acórdão em análise, com a negativa da concessão da liminar requerida, pelo entendimento de que não há razão à Requerente, tanto em pedido liminar, quanto no pedido principal, sendo a Lei Estadual nº 3.364/2000 revestida da mais plena constitucionalidade.

[1] BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. [S.I.]: Malheiros, 2005, p. 11-43.

[2] SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. [S.I.: s.n., 2000?], p. 138.

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Sobre o autor
Thiago Marini

Estudante de direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie e estagiário em contencioso administrativo tributário.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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