RESUMO
Uma nova ótica do desvio social sobre a perspectiva da homossexualidade, diz respeito aos estudos que tratam desse tema abordando outro conceito que vai além de questões arcaicas e fundamentadas em valores imutáveis. Este trabalho procura esclarecer que o desvio anteriormente se dava a partir de padrões socialmente estabelecidos, e o problema sempre estava com o desviante, ou seja, nele é que sempre havia algo de errado, que o fazia colocar-se fora do regramento imposto. Partia-se, então, do pressuposto de que o catálogo de regras e valores sociais estava certo, verdadeira corporificação do bem, imune às críticas. Assim, as indagações norteadoras das pesquisas destinavam-se tão somente aos desviantes, tais como: Por que as pessoas desviam das regras impostas? O que há de errado nelas, que as fazem desviar? Nesse estudo objetivo tratar o desvio com um novo olhar que busca questionar a estrutura social e suas incongruências e reações. Chegando a conclusão de que tudo que nos é imposto como desvio não pode ser considerado universal, os valores que são base para a criação de uma regra é um fator variável e que possui inúmeras interpretações de acordo com os preceitos de cada grupo de indivíduos.
Palavras-chave: Desvio; Normalidade; Rotulação.
1 INTRODUÇÃO
Em meados da década de 1950, os estudos de sobre a criminalidade não eram mais tão relevantes, e o interesse maior permeava as áreas que abordavam sobre profissões e os modos de convívio social.
É nesse contexto que surgem pesquisas inovadoras em relação ao desvio social e que tratam dele a partir de uma nova visão que busca superar seus conceitos obsoletos e colocar em debate questões antes não tratadas. Nesse período duas obras marcam terminantemente os estudos sobre normalidade e desvio, de Erving Goffman em sua obra intitulada Estigma (1963), Outsiders de Howard Saul Becker (1960) sem esquecer a obra de grande expressividade do filósofo francês Michel Foucault, Vigiar e Punir (1975) que trata da intolerância crescente contra qualquer desvio das normas de comportamento no período histórico em que foi escrita.
Estudos anteriores onde o foco da investigação abordava apenas o comportamento dos rotulados como desviantes se tornaram rasos e superficiais, era preciso ir além, e colocar em pauta outras concepções como, por exemplo, a discussão sobre o meio pelo qual certos grupos sociais detêm o poder de rotular outros como desviantes, e a abstração do conceito de valor e de como ele pode variar de acordo com o tempo, circunstâncias e a ótica de quem reage ao ato.
2 A HISTÓRIA DA HOMOSSEXUALIDADE INSERIDA COMO DESVIO
Podemos tomar como base para exemplificação a história da homossexualidade, e como as visões a cerca do tema se alteraram no decorrer dos anos. Voltando para os tempos antigos poderíamos nos deparar com uma visão bastante peculiar ao notarmos que afeto e prática sexual não se distinguiam naquele período.
Os filósofos gregos colocavam o envolvimento sexual com seus aprendizes como um importante instrumento pelo qual se estreitavam as afinidades afetivas e intelectuais de ambos. Com a assimilação do valor estritamente procriador do sexo, disseminado pela cultura judaica, a concepção sobre o ato homossexual foi ganhando novas feições. A popularização do cristianismo trouxe consigo a idéia de que o sexo entre iguais seria pecado. Dessa forma, desde o final do Império Romano, várias ações de reis e clérigos tentaram suprimir o homossexualismo.
No contexto da Idade moderna a homossexualidade foi caracterizada como desvio e desse período em diante todos os indivíduos relacionados a esse comportamento foram rotulados como desviantes. No entanto na atual conjuntura existe uma necessidade da revisão desses conceitos e um estudo que o aborde a partir de um novo aspecto e sem considerá-lo sobre um olhar preponderantemente estigmatizado.
Para quem a homossexualidade se caracteriza como um desvio? Essa regra que rotula o homossexual como um desviante é provida de uma verdade absoluta? Os padrões e os valores existentes são os mesmos para todos? Todos esses questionamentos trazem em sua essência, uma critica ao que antes era considerado imutável, aos valores que por serem próprios de um determinado grupo por motivos particulares eram impostos a todos e preponderantemente, uma critica a atuação das instâncias de poder ao reagirem ao fenômeno desviante.
No século XIX, com a efervescência das teorias biológicas e o auge da razão como verdade absoluta, teorias queriam dar uma explicação científica para o homossexualismo. No século XX, a lobotomia cerebral foi declarada como uma solução cirúrgica para quem quisesse se “livrar” do hábito e foi inclusive usado nos campos de concentração nazistas durante a II Guerra Mundial com o objetivo de ‘’curar’’ os que eram acometidos pela ‘’doença’’. Já no fim do século 19 na Europa, surgiram hipóteses relacionadas ao aspecto biogenético onde a homossexualidade se explicaria como sendo uma possível doença em que o indivíduo, mulher ou homem, tornam-se homossexuais durante o desenvolvimento intra-uterino, onde a quantidade de hormônio masculino (testosterona) recebido pelo feto poderia determinar se o indivíduo em uma fase mais madura de sua vida teria uma inclinação para o sexo oposto ou semelhante ao seu.
Com o avanço da medicina e de pesquisas na área, essa corrente foi perdendo cada vez mais sua força, a homossexualidade antes considerada doença perdia seu fundamento se explicando como algo genético, deixando de ser inerente ao aspecto biológico e entrando por sua vez na ótica que o abordava como próprio do mundo social.
Considerado a partir dessa nova visão, a homossexualidade tomava para si novas referências e fugindo das teorias que a caracterizavam como doença foi designada como sendo um desvio social, próprio da fuga a determinados valores que prevaleciam no contexto que estava inserido.
3 A ANÁLISE DA SOCIOLOGIA DO DESVIO
Erving Goffman, em Estigma (1963), propôs explicitamente modificar a perspectiva hegemônica sobre o desvio e passar a focar os normais e as regras de normalidade socialmente prescritas. Além de expor que o desvio na verdade se tratava de diferença com relação às normas sociais, ele definiu as características daquele que era considerado perfeitamente normal: “um homem jovem, casado, pai de família, branco, urbano, do Norte, heterossexual, protestante, de educação universitária, bem empregado, de bom aspecto, bom peso, boa altura e com um sucesso recente nos esportes.” (Goffman, 1988:139) Qualquer desvirtuamento desse modelo resultaria em diferenças que seriam socialmente avaliadas, julgadas e rotuladas como desvios.
Taxado como um desencaminhamento, a homossexualidade se tornara uma aberração aos olhos daqueles que só tinham em mente os seus valores e os seus padrões como corretos, não conseguiam considerar válido nada que fugisse daquilo que era tido como absoluto e imutável, era incompreensível para aquele grupo que via a normalidade através do homem heterossexual admitir que alguém poderia ser normal fugindo daquele padrão.
A reação coletiva era automática e irrefutável, a rotulação daquele individuo que transgredia a regra se fazia inflexível e a sua estigmatização era necessária por cumprir uma função social para o fortalecimento lógico da sociedade, do controle social e da diminuição da competitividade. Era necessário apresentar aos demais que a fuga dos padrões pré-estabelecidos gerava uma aversão absoluta e que quem se dispusesse a impor novos valores ou alterar aqueles já existentes sofreria da mesma repressão.
Howard Saul Becker, em Outsiders (1960) retoma esse questionamento da regra que surge a partir de um valor e que por seu turno define o que é desviante ou não como sendo um conceito absoluto e incontestável e traz pra debate uma nova visão que desconsidera essa imutabilidade, uma vez que o mesmo valor pode originar as mais diversas regras dependendo da maneira como é interpretado e essa regra está sujeita a todo tipo de mudança, a todo o momento. Sendo assim surge uma necessidade de se observar o desvio por outro ângulo e ver como ele se torna relativo à medida que alteramos as circunstâncias.
Alem de reconhecer que o desvio é criado pelas reações de pessoas a tipos particulares de comportamento, pela rotulação desse comportamento como desviante, devemos também ter em mente que as regras criadas e mantidas por essa rotulação não são universalmente aceitas. Ao contrario, constitui objeto de conflito e divergência, parte do processo político da sociedade. (BECKER, 1960, pág.30)
A repressão sofrida por quem foge daquilo que é preestabelecido como correto, e a etiquetação desses como desviantes tem por objetivo fazer com que se, por acaso alguém pensar na hipótese de agir de maneira tortuosa, ter em mente as conseqüências que sofrerá visto que a intolerância ao desvio existe para disciplinar o individuo a agir de acordo com o que foi padronizado por aquele determinado grupo.
Podemos encontrar em Foucault na obra Vigiar e Punir (1975) claras referências as intransigência crescente com relação ao desvio. Essa intransigência se dá através do poder disciplinar ou normalizador, um poder que se assenta num contínuo exame e correção dos indivíduos segundo a norma ou regra vigente. A vinculação do que é certo ou não a determinados padrões de aceitabilidade e rejeição trazem á luz as estruturas de poder e dominação, onde as identidades (estigmatizadas) nada mais são do que construções de diferenças a partir de comportamentos e estilos de vida.
4 CONCLUSÃO
Assim, os estudos anteriores sobre o desvio, que prestavam reverência à normalidade, assumem contornos diferenciados, possibilitando uma visão crítica da atuação das instâncias de poder ao reagirem ao fenômeno desviante. Essa nova visão dá espaço à diferença, conceito que visa à aceitação do outro e na oposição a qualquer tentativa de avaliá-lo sob perspectiva do olhar hegemônico e inserido nessa lógica uma existência dos mais diversos olhares a cerca do que se considera ‘’normal’’, colocando em debate até que ponto o que nos é imposto como desvio, é válido.
Não se encontra coerência em taxar algo como anormal exclusivamente porque não se encaixa em determinados valores e princípios, a visão precisa ir além, a regra que faz do ato correto ou não, possui inúmeras nuances e definitivamente não existe uma universalidade sobre ela.
O valor que fundamenta a regra é mutável de acordo com os mais diversos fatores próprios de cada grupo. Torna-se incongruente colocarmos nossos valores e o que acreditamos como certo ou errado como sendo algo aplicável a todos, sem levar em conta as peculiaridades existentes. É necessário uma relativização e um novo olhar sobre os princípios de outros grupos que não sejam os nossos, e uma ótica menos discriminatória com relação às diferenças.
‘’ [...] Ver as coisas do mundo como a relação entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença. ’’ (Rocha, Everaldo.)
5 REFERÊNCIAS
GOFFMAN, Erving. Estigma – Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar,1980.
BECKER, Howard S. Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2009