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Darwin, Smith e o Direito

01/02/2003 às 00:00
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"Na maior parte dos ofícios mecânicos, o êxito é quase certo; mas é muito incerto nas profissões liberais. Fazei o vosso filho aprendiz de sapateiro, e praticamente não tereis dúvidas de que ele aprenderá a fazer um par de sapatos; mas mandai-o estudar leis e haverá pelo menos vinte probabilidades para uma de ele não conseguir a proficiência necessária para poder ganhar a vida nesta atividade".

(Adam Smith, Riqueza das Nações, 1776)

Um dos momentos nos quais eu mais observo meus alunos é o da realização de provas. E isso há pelo menos dez anos. Falo do momento mesmo da realização, e não da correção das provas.

Ao caminhar pela sala de aula, ou mesmo ao ficar estático à mesa, fico imaginando o que se passa pela cabeça daqueles futuros "operadores do direito" (pelo menos em sua maioria).

É um processo totalmente involuntário. Quando me dou conta, já estou pensando: "Esse aí tem jeito para a coisa"; "Esse é esforçado"; "Essa aí vai longe"; "Esse é relapso nas aulas mas é inteligente"; "Essa vai precisar de muita sorte para se dar bem na carreira"; "Esse está, definitivamente, no lugar errado"; e assim por diante. ..

Dia destes, durante a viagem de volta de um congresso internacional, da área jurídica, ocorreu-me de revisitar alguns clássicos do pensamento humano. Na verdade, eu pensava no futuro do ensino jurídico e no exercício das profissões a ele relacionadas ou dele derivadas.

Foi em decorrência desse pensamento que resolvi, ao chegar, fazer uma rápida incursão ao banco de dados do MEC. Interessava-me, a princípio, saber quantos cursos de Direito existem, atualmente, no Brasil. Mas, como uma pesquisa leva a outra, acabei por me concentrar no ensino de Direito em Minas Gerais. Percebi que o estado mineiro conta hoje com 71 cursos autorizados (incluindo universidades, centros universitários, faculdades, etc - públicos e privados).

Somente à guisa de informação, e para melhor sistematização do nosso enfoque, precisamos traçar algumas linhas gerais. No Brasil existem 643 cursos autorizados, sendo que só no estado de São Paulo são 155 - apenas na capital existem 51 (isso mesmo, cinqüenta e um cursos de Direito autorizados a funcionar, só na cidade de São Paulo).

Mas voltando a Minas Gerais, despertou-me especial atenção o volume de autorizações de funcionamento de cursos considerando o período em que ocorreram. Percebi que até o ano de 1960, só tínhamos 3 cursos autorizados; de 1961 a 1980, foram autorizados mais 11; na década que vai de 1981 a 1990, somente uma autorização foi concedida; já no período compreendido entre 1991 a 2001, foram autorizados 33 cursos e apenas no ano de 2002 (até novembro) já haviam sido autorizados 20 novos cursos!!!

Graficamente teremos:

Período

Quantidade de Autorizações

1890 a 1950

3

1951 a 1960

3

1961 a 1970

8

1971 a 1980

3

1981 a 1990

1

1991 a 2001

33

2002

20

Total

71

Apenas por hipótese, se todos os cursos realizassem apenas um ingresso por ano (vestibular), e considerando o número de vagas que são autorizados a fornecer, chegaríamos à bagatela de 10.000 novos ingressantes por ano. Entretanto, e ainda segundo informações fornecidas pelo MEC, mais de 60% dos cursos adota regime letivo semestral, o que significa que não andaríamos muito longe da verdade se estimássemos algo em torno de 15.000 novos acadêmicos de Direito por ano, só em Minas Gerais!!!

Foi ao ver estes números que me lembrei de Charles Darwin, o naturalista inglês que a partir de observações feitas numa viagem ao redor do mundo no veleiro Beagle, desenvolveu uma teoria a respeito da evolução da vida na terra, na qual defendia a tese de que a própria natureza se encarrega de fazer uma seleção natural, concedendo o "direito" à sobrevivência apenas àqueles indivíduos que melhor se adaptassem às mutações climáticas ou geológicas que ocorrem na evolução do planeta. Fazendo uma transferência de foco da pesquisa de Darwin e, mutatis mutandi, poderíamos pensar numa espécie de seleção natural para os novos bacharéis? Entendo que sim. Na verdade, penso que esta seleção sempre existiu, o que mudou nos últimos anos foi a sua intensidade. Repare: em dez anos o número de cursos autorizados pulou de 18 para 71(lembrando: só em Minas Gerais).

Numa outra linha de raciocínio, porém corolário da primeira, seria correto pensarmos na atuação da célebre "mão invisível" do mercado, de que nos fala Adam Smith no seu "Riqueza das Nações"? Entendo que é possível. Deixar que o próprio mercado equilibre a relação oferta e procura, com todas as variáveis daí decorrentes, v.g.: a) quanto maior a oferta menor o preço. .. menor preço (talvez) menor qualidade?; b) maior oferta implica em maior concorrência, o que significa a eliminação dos menos competentes; c) quanto maior a oferta de mão de obra, maior o poder de barganha do poder público para estabelecer salários e vantagens para postulantes a cargos públicos?; d) quanto maior a concorrência entre os cursos de direito para arrebanhar alunos, maior será a tentativa de redução de custos, o que envolve, entre outras coisas, a redução dos salários de professores, o que implica em contratação de professores dispostos a trabalhar por menor salário, o que nos leva, inexoravelmente, à redução da qualidade de ensino que, por sua vez, nos remete ao exposto na alínea "a". Isto se não ocorrer a hipótese de o aumento da concorrência implicar em depuração da oferta É um círculo nada virtuoso. Nesta ordem de coisas, é fácil entender porque a "Tabela de honorários da OAB" há muito tempo já foi para o espaço. Não é difícil encontrar, num mesmo prédio, vários escritórios com diferenças abissais de valor de honorários.

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A questão posta é a seguinte: Até que ponto é pedagogicamente interessante, socialmente justo e cientificamente necessário, no mundo do Direito, que se deixe unicamente a cargo da natureza ou do mercado a definição de quem é competente e de quem deve ser excluído? Aliás, e nunca é demais lembrar, no universo das leis, nem sempre vale a máxima de que "quem não tem competência não se estabelece", posto que não é raro encontrarmos - nesta área - profissionais bem sucedidos financeiramente, mas que não atingiram este patamar pelo seu conhecimento jurídico.

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Sobre o autor
Aguinaldo Allemar

Professor na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, Mestre em Direito (PUC-SP) e doutorando em Análise e Planejamento Ambiental (UFU-MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALLEMAR, Aguinaldo. Darwin, Smith e o Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3712. Acesso em: 2 nov. 2024.

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