RESUMO
Este trabalho tem como objetivo abordar os critérios objetivos (especificamente a lei) e subjetivos (valores do juiz) disponibilizados ao intérprete responsável por aplicar a lei no caso concreto. Buscamos analisar os papéis desempenhados por tais critérios no processo de aplicação ou criação do direito pelo juiz. Desse modo, com base na metodologia da revisão literária através de livros, artigos e jurisprudências pátrias, desenvolvemos três capítulos: o primeiro, abordando de forma breve a influência da ciência no direito (a qual traz rigor e técnica aos procedimentos jurídicos), para desenvolver o critério objetivo; o segundo, trazendo posicionamentos acerca da teoria da moldura de Hans Kelsen e da textura aberta da linguagem em conformidade com Herbert Hart, para desenvolver os critérios subjetivos (valorativos) como forma de indicar que esses critérios se encontram presentes no momento em que o intérprete juiz escolhe o texto legal para fundamentar a norma do caso concreto; o terceiro traz um estudo de caso com base na Lei Maria da Penha, discutindo a legitimação do gênero feminino ou masculino para esse amparo legal. Com isso, pretendemos demonstrar a incidência da aplicação e da criação do direito pelo juiz. Ao final, concluímos que ao intérprete é cabível não apenas aplicar como criar o direito, dependendo das normas disponíveis e das medidas a serem tomadas.
Palavras-chave: Direito Objetivo. Aplicação do Direito. Criação do Direito.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO: a distinção entre aplicar e criar o direito como um fator conflitante no âmbito das ideias jurídicas
2 O DIREITO OBJETIVO COMO VIA INDISPENSÁVEL NA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL
2.1 Considerações iniciais sobre o discurso científico e a norma posta (válida e vigente) como fator objetivo para a formação da sentença
2.1.1 A técnica científica no direito como tentativa de avaloração ao procedimento jurídico desempenhado pelo magistrado
2.1.2 A redução da força religiosa no pensamento jurídico em face do discurso científico
2.1.3 A norma validada no ordenamento jurídico para a fundamentação da sentença
2.2 A imparcialidade do juiz como dever na prestação jurisdicional
3 OS VALORES SUBJETIVOS DO INTÉRPRETE COMO FATORES DE INFLUÊNCIA NA INTERPRETAÇÃO NORMATIVA PARA A FORMAÇÃO DA SENTENÇA
3.1 Comentários acerca dos valores éticos, morais, ideológicos e da interdisciplinaridade do direito com a psicologia como fatores que podem influenciar o magistrado ao escolher o texto normativo a ser aplicado numa demanda judicial
3.1.1 Relações e diferenças entre ética e moral
3.1.2 O conceito de ideologia e sua relação com a atuação do magistrado na esfera jurídica
3.1.3 A ideia de interdisciplinaridade entre direito e psicologia no que diz respeito à consciência do magistrado
3.2 A interpretação na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen: a teoria da moldura como reconhecimento do ato de vontade do magistrado no emprego da norma
3.2.1 A teoria da moldura de Hans Kelsen
3.2.2 Considerações introdutórias sobre a ideia de interpretação jurídica
3.3 A ideia de textura aberta da linguagem no pensamento de Herbert Hart
4 ESTUDO DE CASO: A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA EM FACE DO GÊNERO – LEGITIMIDADE FEMININA X (I)LEGITIMIDADE MASCULINA
4.1 A perspectiva histórica de elaboração da lei como fundamento legítimo de aplicação exclusiva à mulher face ao princípio constitucional da igualdade
4.2 A interpretação extensiva da lei como instrumento de criação do direito: a inclusão do gênero masculino na aplicação da Lei Maria da Penha
5 CONCLUSÃO: aspectos valorativos do intérprete como fatores de influência na criação do direito
REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO: a distinção entre aplicar e criar o direito como um fator conflitante no âmbito das ideias jurídicas
O presente trabalho objetiva desenvolver um estudo com cerne na atividade de intérprete do magistrado[1], que, ao conceder o direito a outrem (terceiro que provoca a jurisdição para ter seu direito resguardado) através das disposições normativas vigentes, utiliza-se da técnica da interpretação para aplicar ou criar o direito.
Essa questão interpretativa causa impasse entre a teoria e a prática no âmbito jurídico. Nesse sentido, veremos que a abordagem realizada no capítulo primeiro traz a ideia de que os juízes podem “apenas” aplicar o direito conforme as normas previamente estabelecidas, vigentes do ordenamento jurídico (vistas como aspectos extrínsecos, considerados externos à quaisquer valores e ideias inerentes ou absorvidas pelo intérprete no transcorrer dos anos – como suas concepções morais, por exemplo). Assim, eles estão vinculados aos preceitos objetivos do direito que devem ser desempenhados através do papel do intérprete, como a aplicação da lei. Todavia, autores como Hans Kelsen, Herbert Hart e Carlos Maximiliano acreditam que os juízes, no ato de aplicar a lei, podem criar o direito. Dessa maneira, admite-se que a atividade interpretativa é permeada por fatores subjetivos (que denominamos de aspectos intrínsecos, são os valores e pensamentos imbuídos aos intérpretes, ou seja, são suas concepções ideológicas, éticas, morais, de vontade de escolha da norma mais adequada).
A abordagem da temática é de suma importância para a sociedade, haja vista que o Estado concede ao magistrado a competência para conhecer e conceder o direito a milhares de pessoas. É através desse seu papel de intérprete que pode ser aferida a justiça ou injustiça de determinada decisão.
Desse modo, a partir do momento em que o juiz é habilitado a interpretar a lei, considerando cada caso, há a possibilidade de ele apenas aplicar um texto (que pode estar desajustado ante a nova realidade social) ou criar uma nova norma dando significado àquele texto, ou ainda, essa criação estaria justificada em decorrência da ausência de dispositivo legal. Essas são questões de grande valia não apenas às partes que se socorrerão nas vias judiciais a fim de ter seu bem jurídico tutelado, como também dizem respeito à previsibilidade de qual medida será adotada pelos magistrados responsáveis pela jurisdição de um país.
Portanto, nos propomos a perguntar: os magistrados, além de aplicar o direito, podem criá-lo ao observarem uma melhor solução conforme suas perspectivas valorativas?
Urge ressaltar que o sentido de criação do direito utilizado nessa pesquisa não é aquele empregado pelo processo legislativo de elaboração do texto de lei, que segue um rito de validade e é realizado por uma autoridade competente (vide, por exemplo, o art. 59 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988). Assim, a criação do direito é por sua vez a criação da norma que advém de um texto legal previamente validado e vigente no ordenamento jurídico ou em decorrência de sua ausência.
Pretendemos demonstrar que, apesar do direito objetivo impregnar seu dogma na práxis jurídica (no sentido de que o aplicador do direito deve observar os enunciados normativos jurídicos previamente estabelecidos), o juiz pode criar normas jurídicas se valendo das concepções trazidas pelos seus valores subjetivos, adequando fatores externos (como a lei, ou sua ausência) para fundamentar a “moldura” da decisão aos casos jurídicos que lhe são propostos.
Assim, através do método de pesquisa da revisão literária, e de um estudo de caso baseado na jurisprudência brasileira, estruturamos três capítulos.
O primeiro capítulo retrata os aspectos objetivos (que não dizem respeito às concepções valorativas do intérprete). Inicialmente, concentramo-nos em traçar parâmetros básicos do conhecimento científico, o qual trouxe um maior rigor técnico ao direito. Consideramos, para tanto, algumas circunstâncias históricas como a passagem e vinculação da ciência com a religião e a moral. Nesse sentido, podem ser verificadas influências subjetivas, intrínsecas (tidas aqui como a religião e a moral por serem de caráter intersubjetivo) do magistrado e do próprio sistema social que refletiam diretamente na aplicação do direito.
Após essas considerações, a ciência no direito faz com que haja uma separação dessas influências, demonstrando um caráter avalorativo ao direcionar o intérprete para que siga o que foi designado pela norma, em um caráter formal, impregnado de técnica e objetividade. Assim, a norma positivada e validada no ordenamento jurídico é utilizada por ele de forma “técnica” e “objetiva” como fonte de sua fundamentação ao prolatar a sentença.
Em seguida, tratar-se-á do dever de imparcialidade dos magistrados como forma de demonstrar aquele caráter formal e objetivo no desempenhar de suas atividades judiciárias.
O segundo capítulo aborda os aspectos subjetivos, inerentes ao intérprete. Referimo-nos às questões éticas, morais, ideológicas imbuídas em sua personalidade, trazendo ainda de forma complementar às pesquisas um olhar interdisciplinar entre direito e psicologia, comentando que a consciência ou consciente do juiz faz parte desse processo subjetivo de conhecimento e emprego da norma. Em sucessivo, demonstrar-se-á como esses valores podem influenciar diretamente na vontade de escolha do texto legal a ser usado. Assim, abordaremos a teoria da moldura de Hans Kelsen, constante no capítulo VIII de sua obra intitulada “Teoria Pura do Direito”.
A parte final do capítulo segundo complementa a ideia desenvolvida acima, trazendo a noção de textura aberta da linguagem (desenvolvida por Herbert Hart no capítulo VII de sua obra “O Conceito de Direito”), que auxilia o magistrado na construção da norma, a partir dos sentidos diversos que podem ser expressados por uma palavra contida no texto legal, o que pode levar a um ou outro modo de interpretar.
O terceiro capítulo se contextualiza em um estudo de caso prático disponibilizado por nossa jurisprudência, comentando a problemática da legitimidade da parte[2] ante a Lei Maria da Penha. Pretendendo analisar a distinção entre a aplicação e a criação do direito, questionamos se tal lei pode ser aplicada para mulheres e homens.
2 O DIREITO OBJETIVO COMO VIA INDISPENSÁVEL NA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL
2.1 Considerações iniciais sobre o discurso científico e a norma posta (válida e vigente) como fator objetivo para a formação da sentença
2.1.1 A técnica científica no direito como tentativa de avaloração ao procedimento jurídico desempenhado pelo magistrado
Falar sobre a cientificidade é arriscado, pois dá uma visão de amplitude se for compará-la a uma “evolução histórica”, o que pode levar a escritas insuficientes, inadequadas ou vagas. Não queremos correr o risco de simplificações epistemológicas acerca dos momentos científicos que acompanham a história no decorrer dos séculos. Por isso, falamos em “considerações iniciais sobre o discurso científico” no item desse capítulo como forma de demonstrar que o nosso objetivo não é fazer um levantamento sobre o progresso das ciências, mas tão somente indicar que a passagem da ciência, de seu discurso, principalmente no que diz respeito à ciência moderna, é um marco importante para a obtenção do caráter técnico no direito positivo, e que isso influencia diretamente na norma jurídica e na postura do magistrado que vai desenvolver o procedimento jurídico e aplicar a lei.
A princípio, as formas de viver a vida com todas as interações que delas decorrem trazem uma carga histórica repleta de circunstâncias, como a forma de comunicação e os valores empregados à uma sociedade no decorrer do tempo. Isso faz com que se torne inviável que o indivíduo se isole, e que busque, por sua vez, uma “objetividade do conhecimento e dos valores” (PACHECO, 2012, p. 14).
A esse respeito, veremos, portanto, algumas nuances trazidas pela ideia do discurso científico que pretende trazer uma objetividade às maneiras de os conhecimentos teórico-jurídicos serem empregados.
Pacheco (2012, p. 15) traz um posicionamento direcionado à temática abordada, na medida em que descreve dois fatores que influenciavam fortemente as teorias juspositivistas, quais sejam, o discurso científico (que tentou ajustar a ideia de objetividade empregada ao conhecimento científico através da teoria jurídica para se chegar à “verdade” por ele almejada) e a separação entre criação e aplicação do direito. Hoje, essas questões não são tomadas pela mesma representação de destaque, como antes, nas ideias do positivismo jurídico.
Esse caráter científico visualiza a ideia da separação entre aplicação e criação do direito, atribuindo tais competências aos Poderes Judiciário e Legislativo, respectivamente, trazendo a ideia da segurança jurídica aos procedimentos (PACHECO, 2012, p. 15, 48). Por outro lado, veremos no capítulo seguinte os posicionamentos modernos através das concepções de Hans Kelsen e Herber Hart, em que o intérprete, no ato de aplicar a norma jurídica, dá-lhe sentido, e por isso, cria direito.
Inicialmente, considerando a cultura desenvolvida na antiguidade grega, é de se observar que os filósofos costumavam questionar sobre o mundo e a vida em torno de si. Para se ter apenas uma ideia dessa época, o modelo de ciência desenvolvido por Aristóteles observava e acreditava nas “evidências” da “experiência imediata”. O que era visto, experimentado como um fato, considerar-se-ia como tal uma forma de conhecimento (SANTOS, 1995, p. 12).
Veremos adiante que, com o passar dos anos, ocorrendo a implantação do método científico, a sociedade vai se modificando, e com ela novas demandas vão surgindo. O status científico que fraciona todo um conhecimento, conforme Morin (2004), envolve não apenas as ciências da natureza, as exatas, tendo necessidade de se expandir aos outros conhecimentos direcionados à humanidade, como o jurídico, em decorrência das exigências empregadas pelo discurso científico, tornando-o uma ciência, o direito como ciência humana ou social.
A busca por tornar o conhecimento em científico se dá de forma mais rigorosa na ciência moderna. O que a marca é uma postura que a classifica como um modelo de racionalidade geral, no sentido de que seu fundamento se objetiva em respaldar a existência de apenas um “conhecimento verdadeiro”, ele próprio (o científico). Desse modo, o que não é científico é considerado ilegítimo, irracional, “irrelevante”, tornando-se, a nosso ver, o ápice da “confiança epistemológica” por objetivar uma espécie de fundamento último, o argumento que fundamenta o conhecimento científico como o único verdadeiro e relevante (SANTOS, 1995, p. 11).
Com isso não há mais que se falar em “evidências” da “experiência imediata”. Elas passam a ser descartadas, consideradas como forma de “conhecimento vulgar”, portanto, taxadas de “ilusórias”. Passa-se, então, a desenvolver um conceito de ciência moderna através das ciências naturais e, posteriormente, sociais (SANTOS, 1995, p. 12).
A ciência moderna, portanto, começa a ser desenvolvida no século XVI, ao passar pela revolução científica. Nesse período é dado destaque apenas às ciências da natureza, até o momento em que seja dado o enfoque para as ciências sociais. Estas, por sua vez, começam a florescer tardiamente, recebendo pouca atenção a partir do século XVIII e ganhando força no século XIX (SANTOS, 1995, p. 10).
Outra importante passagem da ciência moderna é a inclusão da matemática como via da comprovação científica. Ela traz à ciência um caráter “quantificável”, ou seja, se não pode ser estimado matematicamente, é “irrelevante”. Nesse sentido, Santos (1995, p. 14-15) indica que Descartes desenvolve essa ideia do conhecimento quantificado, atribuindo à matemática dois resultados justificados resumidamente pelo “rigor científico” e pela divisão dos conhecimentos (para serem “classificados” e assim melhor compreendidos ante a sua complexidade sistemática). Assim, Santos destaca nos seguintes termos que:
[...] Descartes, por seu turno, vai inequivocadamente das ideias para as coisas e não das coisas para as ideias e estabelece a prioridade da metafísica enquanto fundamento último da ciência.
As ideias que presidem à observação e à experimentação são as ideias claras e simples a partir das quais se pode ascender a um conhecimento mais profundo e rigoroso da natureza. Essas ideias são as ideias matemáticas. A matemática fornece à ciência moderna, não só o instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da investigação, como ainda o modelo de representação da própria estrutura da matéria [...] Deste lugar central da matemática na ciência moderna derivam duas consequências principais. Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições [...] O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, o método científico assenta da redução da complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente. Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou [...] (SANTOS, 1995, p. 14-15).
Isso acaba influenciando diretamente no campo da ciência jurídica, mais detidamente ao nos depararmos com o silogismo ou subsunção dos fatos à norma. É o que veremos noutro momento.
Para complementar o raciocínio apresentado por Santos (1995, p. 16-19) acerca da ciência, nos deparamos com a ideia de “mecanicismo” ou “mundo máquina” representada pelo “progresso” no conhecimento científico como forma de “prever” os “fenômenos” futuros. Assim, temos que a “[...] formulação de leis tem como pressuposto metateórico a ideia de ordem e de estabilidade do mundo, a ideia de que o passado se repete no futuro [...]”. Ocorre que a ciência moderna vai passando por uma repaginação de ideias, transacionando da ciência da natureza no século XVIII, para a ciência social no século XIX.
Como é de se esperar, esses pressupostos de previsibilidade podem dar certo na ciência da natureza, já que a ideia do envolvimento matemático trazido por Descartes pode ser mensurável. Todavia, não há como prever leis que viabilizem a permanência do estado jurídico de uma sociedade. A sociedade é dinâmica, por isso se modifica. As novas demandas sociais necessitam de constantes atualizações de medidas que rejam a ordem social, daí os requisitos matemáticos e previsíveis só podem ser adotados limitadamente nesta ciência (social), pois são insuficientes para responder a todos os requisitos técnico-científicos.
A par desses preceitos matemáticos aferidos através da ciência moderna, adentramos na tocante seara da divisão e separação das novas formas de apreender e repassar o conhecimento à comunidade de uma forma geral, seja ela científica, universitária, estudantil, social. Desse modo, vincula-se perfeitamente essa ideia trazida por Santos acerca da ciência moderna, com a ideia levantada por Morin (2004, p. 14-15), que demonstra na realidade o que de positivo e negativo essas subdivisões de conhecimentos ocasionados pela ciência acarretam no seio social:
Efetivamente, a inteligência que só sabe separar fragmenta o complexo do mundo em pedaços separados, fraciona os problemas, unidimencionaliza o multidimencional. Atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo. Sua insuficiência para tratar nossos problemas mais graves constitui um dos mais graves problemas que enfrentamos. De modo que, quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, maior a incapacidade de pensar sua multidimensionalidade; quanto mais a crise progride, mais progride a incapacidade de pensar a crise; quanto mais planetários tornam-se os problemas, mais impensáveis eles se tornam. Uma inteligência incapaz de perceber o contexto e o complexo planetário fica cega, inconsciente e irresponsável.
Assim, os desenvolvimentos disciplinares das ciências não só trouxeram as vantagens da divisão do trabalho, mas também os inconvenientes da superespecialização, do confinamento e do despedaçamento do saber. Não só produziram o conhecimento e a elucidação, mas também a ignorância e a cegueira (MORIN, 2004, p. 14-15).
Em razão dessa temática ser de tamanha significância ao desenvolvimento do saber dos últimos séculos, conscientizamo-nos de que as etapas pelas quais a ciência vai se fortalecendo levam a ganhos e perdas para a sociedade. De um lado, na medida em que os conhecimentos vão sendo subdivididos podem ser mais facilmente compreendidos. Por outro lado, retirando o caráter sistemático esses conhecimentos levam a uma desestrutura do consciente de cada pessoa, pois fica cada vez mais difícil reorganizá-los e reunificá-los num mesmo plano epistemológico (MORIN, 2004).
Esse autor desenvolve sua obra intitulada “A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento”, traduzida por Eloá Jacobina, para desenvolver, basicamente, o sistema complexo que envolve os termos “educação” e “ensino”.
Em uma visão sucinta acerca do advento da ciência, Morin (2004, p. 13, grifo original) critica o resultado que a ciência traz para a condição pensante da população mundial, ressaltando que:
Há INADEQUAÇÃO cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e, por outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários.
Com isso, quer dizer que, a partir do momento em que a ciência é empregada como procedimento viabilizador da aprendizagem, há uma cisão do conhecimento como um todo para ser “fragmentado” em especialidades, o que leva a uma consequência negativa cada vez mais incontrolável: quanto mais houver problemas a serem resolvidos, menos eles serão compreendidos para que se possa chegar a uma solução, por que “[...] os problemas essenciais nunca são parceláveis, e os problemas globais são cada vez mais essenciais [...]” (MORIN, 2004, p. 14). Assim, tanto os problemas essenciais como os globais não podem ser compreendidos em parcelas para serem solucionados, mas analisados de forma sistemática, geral ou “global”.
Mencionamos, ainda, uma questão interessante no que diz respeito ao título dessa obra de Morin. Quando ele se refere a “cabeça bem-feita”, desenvolvendo-a em seu capítulo segundo, inspirado em Montaigne, quer dizer que o conhecimento que se possui deve ser aproveitado de forma útil, pensada, articulada, e é mais importante do que possuir apenas uma “cabeça bem cheia” de informações e não aproveitá-las como se deve, dando-as utilidade, aproveitabilidade.
Nos valemos aqui da ideia desse conceito por estar diretamente ligado ao “objeto” desse estudo, qual seja, o intérprete juiz. É sabido que, para alcançar a carreira da magistratura, há um longo e intenso caminho de preparação e memorização de conteúdo, nos quais, inevitavelmente os candidatos tendem a obter muitos conhecimentos que ficam acumulados. O que nos interessa saber e ao que propõe Morin é que todo o conhecimento deve ser direcionado, pensado, organizado para que suas ideias possam ser aproveitadas de forma máxima perante as demandas. Ou seja, referindo-nos particularmente ao juiz não basta que ele seja detentor de um grande conhecimento se não o utiliza para dar uma melhor solução à demanda jurídica.
Portanto (e aqui já escapamos, preliminarmente, da objetividade procedimental para adentrar na esfera valorativa do intérprete), nada obsta que, a par de seus conhecimentos, o juiz fundamente uma decisão de forma razoável, valendo-se de suas concepções valorativas para encontrar um equilíbrio que se ajuste à necessidade das partes.
Apenas complementando o raciocínio empregado nessa obra, Morin (2004, p. 32-33 e 41-43), tendo em mente a ideia de uma “cabeça bem-feita”, acredita que o “novo espírito científico” viabilizado pela interdisciplinaridade das disciplinas ou (re)unificação “dos conhecimentos” científicos deve ser implementado através de uma “reforma do pensamento”, o que contribui para a “inteligência geral”.
Tal reforma quer se viabilizar basicamente por uma nova metodologia do ensino, que tende a dar um novo olhar às ciências, visualizando-as de uma forma conjunta para o aproveitamento integrativo do conhecimento.
Por fim, fazendo um apanhado geral no que diz respeito à passagem da ciência pelo pensamento jurídico, é importante mencionar que há uma dificuldade em tornar o conhecimento científico em jurídico, pois não há um único modelo de ciência. Dentre várias ideias atribuídas à ciência, devemos buscar uma que sirva de forma padrão ao saber científico direcionado ao campo jurídico. Assim, pode-se admitir um modelo de ciência segundo o qual o conhecimento jurídico científico deve se dar de forma descritiva para dizer “o que é” e “como é” o direito (KELSEN, 2006, p. 1). Portanto, segundo esse modelo, cabe ao cientista descrever de forma (pretensamente) avalorativa para que traga uma visão de compreensão exata, objetiva, pois, caso ele descreva o dever ser do conhecimento, atribuir-lhe-á valor. (PACHECO, 2012, 2014).
2.1.2 A redução da força religiosa no pensamento jurídico em face do discurso científico
Vimos acima que o discurso científico trouxe uma postura mais técnica e objetiva direcionada ao campo jurídico, tanto teórico como prático, em que o juiz, através dessa nova postura de rigor técnico trazido à norma, recebe a tentativa de suprimir a influência dos valores que lhe são inerentes quando for aplicá-la ao solucionar uma demanda judicial.
Nos baseamos em Adeodato (2009, p. 50) para fundamentar que isso também ocorre porque, no procedimento jurídico, "o fundamento do direito é a vontade da divindade, vontade que é revelada à autoridade competente para que interprete e traduza para os fiéis". Ante a exposição do autor, evidencia-se a credibilidade empregada na religião, de modo que atribui ao papel do intérprete repassar a vontade divina para a população. E em disseminando essa vontade, há, inevitavelmente, uma questão valorativa do juiz ao aplicar a lei com base na “vontade da divindade.
Como é de se esperar, a religião e sua forma abstrata de demonstrar a vontade da divindade através dos juízes não pôde influenciar continuamente essa sociedade dinâmica que busca cada vez mais critérios objetivos e palpáveis em suas referidas especialidades, através de procedimentos técnicos que possam ser controlados pelo homem. Desse modo, Adeodato (2009, p. 2, grifo original) acrescenta que:
O grande desafio da pós-modernidade, porém, diante da maior complexidade social, é que desaparecem aquelas bases morais comuns que permitiram a predominância absoluta da retórica jusnaturalista durante tanto tempo. Em que pese a força da tradição, o pensador contemporâneo vê com preocupação que o direito natural não consegue mais responder as grandes questões que se colocam desde a filosofia do direito até a decisão jurídica concreta. Aquelas normas, pretensamente válidas por si mesmas, deixam de ser “evidentes”, pois as bases axiológicas comuns das sociedades mais simples se dissolvem na complexificação social, em grupos sociais nos quais torna-se difícil encontrar consenso sobre problemas dos mais pueris do cotidiano. O direito sofre uma sobrecarga de demandas com as quais a dogmática jurídica moderna não consegue lidar plenamente [...].
Assim, constata-se a tendência de modernização dos ritos judiciais com a transição da fé e dos valores para a razão e a técnica que se concretizam na adoção da ciência com a pretensão de estabelecer a “objetividade” e “neutralidade” (BARROSO, 2009; PACHECO, 2012) como procedimento indispensável na instrumentalidade do direito.
Tem-se, complementarmente, que parte da comunidade jurídica pretendeu deixar de funcionar sobre a influência do aspecto abstrato (valorativo) para adotar a influência do aspecto concreto (objetivo, científico), ao passo que vai obtendo, no transcorrer dos anos, a credibilidade antes empregada na fé para a credibilidade na ciência. Tal posicionamento pode ser visualizado:
[...] em uma cultura na qual predominam as ligações religiosas com o mundo, a explicação divina promove o conhecimento da dinâmica da existência, permite um entendimento do que é controlável ou não, e o domínio de formas de controle do mundo [...] Por outro lado, em culturas nas quais há uma projeção da ciência, observa-se que sobre tal tipo de saber são lançadas expectativas de conhecimento e domínio da realidade. A fé nas divindades cede espaço para a fé na ciência, e as crenças em torno de rituais religiosos para atingir o objetivo de controlar o mundo dão lugar às expectativas sobre as técnicas baseadas nos saberes científicos [...] (PACHECO, 2012, p. 49).
E, assim, uma vez passando o ideal de objetividade científica a integrar os conceitos jurídicos, consequentemente há uma tentativa de ruptura dos aspectos valorativos mencionados anteriormente.
Essa pretensão de objetividade científica é um dos marcos importantes que configuram uma conduta mais técnica e rígida que se dá por volta do século XVIII. Um outro marco se dá no início do século XIX, com a passagem dos primeiros positivistas exegéticos (ADEODATO, 2009), para quem a estrita aplicação da lei é crucial ao desenvolvimento adequado da prestação jurisdicional. Portanto, desvinculando, assim, qualquer circunstância de influência intrínseca do magistrado naquele procedimento que não seja a científica, consubstanciando-se na aplicação do texto da lei com a requerida técnica e imparcialidade.
Em contrapartida, trazemos uma visão interessante, de forma sucinta, desenvolvida por Maia (2009, p. 7) acerca da subjetividade, no sentido de que a adequação de legitimidade do conhecimento científico, impregna este de um caráter subjetivo, e que a transcendentalidade deste estaria na forma de que o objetivo é criado pelo subjetivo, adequando métodos racionais sem que as influências intrínsecas ao sujeito interfiram na finalidade almejada. Senão, vejamos:
Desde o Séc. XVII que o dogma epistemológico afirma que o conhecimento legítimo seria aquele dotado de cientificidade. Essa forma de justificação seria mais adequada e qualquer forma metodologicamente controlada de domar e domesticar o conhecimento por meio do aparato cognitivo e pretensamente racional dos seres humanos. E tal conhecimento racional seria construído por um modelo de subjetividade transcendental e racional que utilizaria um método seguro para que se pudesse ter certeza de que esta ou aquela maneira de produção do conhecimento seria segura. Eis uma nova forma de se referir à subjetividade: não o sujeito como aquele que está submetido, sujeito a algo, mas o sujeito como ator capaz de produzir o conhecimento por meio das regras que esse mesmo sujeito pleno estabeleceu para que se possa conhecer. Ou seja, o sujeito não é apenas capaz de conhecer, mas também de produzir as regras sobre como conhecer.
Dentro dessas circunstâncias, afastadas gradativamente as influências religiosas, é conferido aos magistrados o dever de tão somente aplicar a lei tal como estabelecida pelo texto através da determinação criteriosa da subsunção, ou seja, obedecer a uma premissa maior (lei), que em conformidade com a premissa menor (expressa em elementos fáticos do caso), será dada a conclusão (solução do caso) – o conhecido silogismo supracitado.
Ademais, corroborando ao papel do juiz mencionado acima, podemos nos servir aqui de um brocardo direcionado à prática da magistratura, o qual é mencionado nas aulas de hermenêutica e argumentação jurídica ministradas por Adeodato (2010): da mihi factum dabo tibi jus, que significa, literalmente, “dá-me os fatos que te darei o direito”. Isso quer dizer que o juiz é o conhecedor do direito, e que, por esse motivo, lhe basta entregar a causa judicial para que determine o direito equivalente e cabível às partes.
2.1.3 A norma validada no ordenamento jurídico para a fundamentação da sentença
A par da tecnicidade científica, os textos normativos passam por um rito de elaboração que lhes confere a validade e, tendo esta sido obtida, então, à sua vigência. Só assim é que há possibilidade de sua aplicação por meio da adequação do fato à norma que servirá de fundamentação ao magistrado prolator da sentença.
A validade das normas pode ser tomada por dois aspectos, o zetético – por ser de caráter aberto – e o dogmático – representando seu caráter fechado. O que nos interessa é tratarmos da validade do ponto de vista dogmático, senão vejamos. Quando se fala da validade neste sentido, podemos identificar o ordenamento jurídico ao qual a norma foi inserida, devido a sua forma procedimental, ou seja, rito de elaboração ao qual validou a norma naquele ordenamento (FERRAZ JUNIOR, 2003). Para tanto, é necessário ainda que essa validação seja realizada por autoridade competente (PACHECO, 2012).
Desse modo, tendo a norma seguido o procedimento adequado e formal de sua elaboração, acompanhada por autoridade competente, cumpre os requisitos formais para que seja identificada como pertencente a um dado ordenamento jurídico. Assim é que ela poderá e deverá ser usada pelo magistrado como fonte de sua fundamentação jurídica, solucionando, por sua vez, o caso (litígio ou não) que lhe foi proposto.
No que diz respeito à vigência, ela é conferida após a “publicação” da norma que recebeu a validade pelo ordenamento jurídico (FERRAZ JUNIOR, 2003). Assim, de acordo com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), ela entrará em vigor 45 dias depois de publicada, salvo se no corpo da própria lei houver regulamentação contrária a esse prazo (BRASIL, 1942, art. 1º), como, por exemplo: “a lei entrará em vigor na data de sua publicação”.
Assim sendo, o juiz deve observar os aspectos extrínsecos à sua vontade e consciência – a certo momento histórico tido pelas influências morais e religiosas –, ou seja, deve obedecer aos requisitos formais do direito positivado para fundamentar a aplicação da norma usada para a decisão judicial.
2.2 A imparcialidade do juiz como dever na prestação jurisdicional
Como vimos no item anterior, o magistrado deve obedecer às regulamentações dispostas no ordenamento jurídico para que possa fundamentar o decisum. Embora, até que o juiz chegue a esse ponto, é necessário seguir um procedimento para dar andamento ao processo. Na decorrência desse procedimento é imposto ao cargo da magistratura (dentre os outros membros do judiciário) o dever de ser imparcial.
A esse respeito, Nalini vai mais adiante, esclarecendo que a imparcialidade é indispensável para a obtenção da justiça por buscar um fator de equilíbrio entre as partes, conforme o princípio da igualdade, o que seria impossível se o juiz tomasse partido de uma delas, tornando-se parcial. Assim:
A imparcialidade deflui do senso comum. Seria inconcebível uma justiça parcial, tendenciosa e desequilibrada, com reforço de um dos pratos da balança em detrimento do outro. Ao menos sem existir um poderoso argumento que imponha ao juiz reduzir o descompasso entre os litigantes. Aqui, já se estaria a contemplar o princípio da isonomia, que propõe exatamente distinguir entre as desigualdades e reequilibrar equações judiciais díspares (NALINI, 2010, p. 86, grifo original).
O juiz atua no processo como um terceiro convocado pela jurisdição, em decorrência desta ter sido provocada pelas partes – as quais atuarão em polos distintos: autor e réu – para solucionar sua demanda judicial (BRASIL, 1973). Então, aquele (juiz) será a parte imparcial dessa relação processual, que não poderá tomar partido entre uma dessas partes, de forma que envolva qualquer interesse pessoal. Nesse sentido, tem-se que:
Para ser legítimo o exercício da jurisdição, é imprescindível que o Estado-juízo – ou melhor, aqueles agentes que, em nome do Estado, exercerão a jurisdição (juiz, escrivão, oficial de justiça, contador) – atue com imparcialidade. Não se pode conceber que o Estado chame para si o dever de solucionar os conflitos e o exerça por meio de agentes movidos por interesses próprios. A imparcialidade do juízo, aliás, é pressuposto de validade da relação jurídico-processual, constituindo direito das partes e, ao mesmo tempo, dever do Estado (DONIZETTI, 2012, p. 88).
Por outro lado, essas partes atuarão de forma parcial, ou seja, em busca de suas pretensões.
Para Nalini (2010), quando o juiz recebe a exagórgica (peça inaugural, petição inicial) vai se cientificar da coerência das razões apresentadas pelo autor do processo. Ocorre que, após a apresentação da contestação pelo réu (parte contrária à demanda judicial), aquela coerência dos fatos apresentados pelo autor pode tomar um novo rumo tendo em vista os novos fatos apresentados pelo réu, o que implica ao magistrado analisar gradativamente as provas dos autos para formar sua convicção e conceder, ao final, o direito.
Veja-se que é um longo caminho até se chegar à conclusão da demanda judicial. E que para isso o magistrado deve se servir de todo o procedimento técnico, formal e objetivo das normas positivadas.
É importante ressaltar que o dever de imparcialidade do magistrado não lhe priva de se sujeitar passivamente ao andamento processual, uma vez que próximo às partes lhe é atribuído analisar a relação entre elas. Inclusive, seu papel conexo é de se colocar no lugar dessas partes para que o trâmite processual seja de todo proveitoso, de modo que visualizará e solicitará as provas necessárias em cada caso. Observadas essas circunstâncias e o conjunto probatório, então poderá dispor de uma noção de equilíbrio para prestar a tutela jurisdicional pleiteada. Nesse sentido, Nalini (2010, p. 85, grifo original) diz que:
A equidistância do juiz em relação às partes, graficamente celebrizada no clássico triângulo chiovendiano, gera o dever de imparcialidade como elemento essencial à jurisdição. Mas a imparcialidade não significa distanciamento das partes. Ao contrário, sua relação com elas, a vivência profunda do caso, a assimilação interior de cada drama judicial, é fator valioso na conduta do juiz que tem seu fundamento no princípio da imediação.
Imparcialidade é virtude intelectual e moral imprescindível a quem, no processo, atuará como terceiro [...].
Por outro lado, se depois de analisadas as provas, a lei aplicada à demanda judicial não conferir justiça ao autor ou ao réu, o juiz pode e deve buscar uma melhor solução dentro do ordenamento jurídico que o respalde. Com isso temos que:
Se a lei não funciona como meio de aperfeiçoamento da igualdade, mediante eliminação das desigualdades fáticas, o juiz não está impedido de fazê-lo no caso concreto, ao exercer a jurisdição. Ao contrário, é obrigado a tanto. É ele, assim como os demais Poderes do Estado, encarregado de fazer cumprir as promessas do constituinte. Não é um organismo supraestatal ou extraestatal. Integra o Estado e é destinatário das normas fundantes que preveem, no futuro, uma pátria justa, fraterna e solidária (NALINI, 2010, p. 92, grifo original).
Ainda, tem-se a questão pretensa da neutralidade do juiz que, por vezes, é confundida com aquela imparcialidade. Entenda-se, neutralidade e imparcialidade são termos distintos, senão, vejamos. A esse respeito, Donizetti (2012, p. 88) entende que:
É importante dizer que imparcialidade não se confunde com neutralidade ou passividade. O juiz, no processo contemporâneo, é sujeito ativo do processo, e tem o dever de zelar pela justa composição do litígio. Ao magistrado cabe esclarecer pontos obscuros, advertir as partes de suas condutas, requisitar provas e diligências, e interpretar as normas e as especificidades de cada caso concreto, tudo com o objetivo de prestar adequadamente a tutela jurisdicional.
Portanto, temos que a imparcialidade é o dever de postura do magistrado que, ao atuar na jurisdição, não pode levar em consideração apenas a pretensão de uma das partes em detrimento da outra, de modo que simpatize pela matéria da causa, tenha apreço ou amizade por uma delas, por exemplo.
Por outro lado, a neutralidade traz um caráter mais abrangente, que engloba a imparcialidade. Falar em uma conduta neutra significa dizer que a todo procedimento será conduzido de forma fria, “burocratizada”, “indiferente” por parte do juiz. Ocorre que este membro da magistratura não pode agir de forma neutra em qualquer demanda, daí é que Barroso (2009) chama essa neutralidade como forma “impossível” de ser plenamente garantida.
Para uma melhor compreensão do que vem a ser a neutralidade, Barroso (2009, p. 292, grifo original) traz uma abordagem que consideramos adequada, diferenciando-a da imparcialidade, ainda que esta esteja contida naquela. Nessa perspectiva, esse autor entende que a neutralidade é “impossível” de ser alcançada tendo em vista que cada juiz tem seus valores e sua maneira peculiar de pensar. Desse modo acrescenta que:
[...] A neutralidade se dilui em muitos aspectos diferentes. Alguns deles não são de difícil implementação, como a imparcialidade – ausência de interesse imediato na questão [...] Basta seriedade e vontade de fazer bem feito para atender a tais imperativos. Mas a neutralidade pressupõe algo impossível: que o intérprete seja indiferente ao produto do seu trabalho. É claro que há uma infindável quantidade de casos decididos pelo Judiciário que não mobilizam o juiz em nenhum sentido que não o de burocraticamente cumprir seu dever. Outros tantos casos, porém, envolvem a escolha de valores e alternativas possíveis. E aí, mesmo quando não atue em nome dos interesses de classe ou estamentais, ainda quando não milite em favor do próprio interesse, o intérprete estará sempre promovendo as suas próprias crenças, a sua visão de mundo, o seu senso de justiça.
Assim sendo, a imparcialidade a nosso ver evidencia uma dupla interpretação ao sentido do termo. Que está ligado à dimensão objetiva, literal, conceitual, ou seja, vinculado à ideia de que o magistrado deve se portar de forma despretensiosa perante as partes; que está ligado à dimensão subjetiva do próprio juiz, ou seja, que para buscar uma solução justa e adequada é necessário que ele se permita conhecer as particularidades de cada demanda como um todo, valendo-se, inclusive, de suas concepções valorativas para dosá-las. Nesse sentido:
[...] Salienta-se uma dupla dimensão na imparcialidade. A subjetiva provém do foro íntimo do juiz. A objetiva é a exteriorização da equidistância neutral do julgador, diante do caso concreto. A comunidade tem de estar convencida de que o juiz é imparcial. Além de praticar o justo, o juiz deve transparecer a imagem perfeita de um homem justo (NALINI, 2010, p. 77).
Isso significa dizer que a imparcialidade é aquela apartidária, sem a qual não haveria possibilidade de se buscar igualdade entre as partes para a obtenção da justiça. Além disso, por ela estar contida na “impossível” neutralidade abre margem ao juiz que buscará a justiça entre as partes, em decorrência da prestação jurisdicional.
3 OS VALORES SUBJETIVOS DO INTÉRPRETE COMO FATORES DE INFLUÊNCIA NA INTERPRETAÇÃO NORMATIVA PARA A FORMAÇÃO DA SENTENÇA
3.1 Comentários acerca dos valores éticos, morais, ideológicos e da interdisciplinaridade do direito com a psicologia como fatores que podem influenciar o magistrado ao escolher o texto normativo a ser aplicado numa demanda judicial
3.1.1 Relações e diferenças entre ética e moral
Recapitulando a menção dita sobre Morin (2004) no capítulo anterior, no sentido de que direcionamos a condição de uma “cabeça bem-feita” ao juiz que não basta ser detentor de um grande conhecimento se não o utiliza para dar uma melhor solução quanto à pretensão das partes de um processo, aproveitamos para expandir a ideia dessa condição e vinculá-la em conjunto com as concepções valorativas arraigadas ao intérprete. Assim, tanto o seu conhecimento adquirido como os seus valores serão utilizados no decorrer de cada caso para direcioná-lo a balancear qual texto normativo (significante) que servirá para a concretização da norma (significado).
Pretendemos tão somente observar as nuances do emprego conceitual das terminologias contidas neste item como a moral, a ética, a ideologia e o sentido dado à interdisciplinaridade do direito com a psicologia. Neste último caso, remetendo-se à consciência do magistrado. Pois, de outro modo, um maior aprofundamento daria por si só a cada temática a necessidade de serem trabalhadas separadamente, em decorrência de sua importância e vasta abordagem teórica contida no meio acadêmico (com exceção do reduzido referencial produzido acerca da psicologia e de seu enfoque interdisciplinar). O que restaria inoportuno para a dimensão de um trabalho monográfico devido à presente abordagem e, desviador do objetivo imediato de indicar a reunião desses valores contidos na consciência, personalidade de cada intérprete juiz, que, em decorrência da impossibilidade de tomar uma postura neutra, necessita de suas concepções valorativas ao sentenciar. É o que veremos a seguir.
A princípio, apontaremos os sentidos em que as expressões “ética” e “moral” serão utilizadas nos limites deste trabalho, para só então começarmos uma abordagem sobre relações e diferenças entre tais conceitos. Deve-se ressaltar, todavia, que esses conceitos apresentam muitos significados. Contudo, não é um propósito deste texto realizar uma análise sobre os múltiplos significados dessas expressões, mas apenas considerar os sentidos aqui indicados para elucidar aspectos da decisão judicial.
Assim, pode-se entender que “a ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específica de comportamento humano” (VÁZQUEZ, p. 23, grifo original).
No que diz respeito à conceituação da terminologia moral, temos que:
“A moral é um sistema de normas, princípios e valores, segundo o qual são regulamentadas as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas de um caráter histórico e social, sejam acatadas livre e conscientemente, por uma convicção íntima, e não de uma maneira mecânica, externa ou impessoal” (VÁZQUEZ, 2005, p. 84).
Vázquez (2005, p. 9-10), já em sua introdução, parte da “ideia de que a ética deve ter suas raízes no fato da moral, como sistema de regulamentação das relações entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade [...]”. Todavia, a ética não está diretamente ligada à moral, pois, ainda que uma acabe influenciando na aplicação da outra, elas possuem campos distintos.
O indivíduo que “reconhece e aceita intimamente” (VÁZQUEZ, 2005, p. 17) uma norma moral pretende agir em consonância com ela, de uma forma adequada, bem intencionada, ou seja, boa. Efetuar essa norma através de uma conduta é moralmente previsível. Mas, o que é uma conduta ética, adequada, boa para ser identificada no comportamento humano?
A ética possui um caráter de generalidade, é constituída através de teoria para analisar o conteúdo de algo. Ela pode dizer “[...] o que é um comportamento pautado por normas, ou em que consiste o fim – o bom – visado pelo comportamento moral, do qual faz parte o procedimento do indivíduo concreto ou o de todos [...]”. Por outro lado, a definição do que vem a ser o bom designado pela ética pode influenciar na aplicação de uma norma moral, orientando o que vem a ser uma conduta boa. Ocorre que a aplicação desse conceito trazido à moral não é uma questão ética, mas moral. Ou seja, o que se torna concreto é moral. “[...] Ao contrário, definir o que é o bom não é um problema moral cuja solução caiba ao indivíduo em cada caso particular, mas um problema geral de caráter teórico, de competência do investigador da moral, ou seja, do ético [...] (VÁZQUEZ, 2005, p. 17-18).
A esse respeito, Vázquez (2005, p. 18) comenta que, na Grécia antiga, Aristóteles busca a definição do que vem a ser o bem (investigação da condição ética), ressaltando que o papel do investigador ético serve para definir o conteúdo que vai ser adotado numa conduta moral. Perceba-se que o papel é de indicar a definição de algo, “[...] e não determinar o que cada indivíduo deve fazer em cada caso concreto para que o seu ato possa ser considerado bom [...]”. Acrescentado, ainda, alguns sentidos empregados por algumas teorias éticas acerca da terminologia “bom”, nas quais, “[...] para uns, o bom é a felicidade ou o prazer; para outros, o útil, o poder, a autocriação do ser humano, etc”.
[...] O ético transforma-se assim numa espécie de legislador do comportamento moral dos indivíduos ou da comunidade. Mas a função fundamental da ética é a mesma de toda teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos correspondentes. Por outro lado, a realidade moral varia historicamente e, com ela, variam os seus princípios e as suas normas [...] (VÁZQUEZ, 2005, p. 20).
Assim, a ética propõe estudar de forma coerente as condutas morais, passadas ou presentes, com suas normas, princípios e valores, pretendendo “investigar” o porquê desses comportamentos para “explicar” suas “diferenças”, permitindo “compreendê-las” (VÁZQUEZ, 2005, p. 21-22).
Por outro lado, a moral cumpre uma função social que é guiada por normas norteadoras das condutas humanas, caracterizando-se quando pessoas interagem em sociedade, de modo que elas imprimem o que acreditam estar adequado diante das situações cotidianas que lhes aparecem.
A moral se efetiva quando a norma passa para o concreto, e incide sobre “atos” que são avaliados como “positivos” (quando a norma moral é cumprida) ou “negativos” (quando a norma moral não é cumprida) (VÁZQUEZ, 2005, p. 16 e 63-64).
“A este comportamento prático-moral, que já se encontra nas formas mais primitivas de comunidade, sucede posteriormente – muitos milênios depois – a reflexão sobre ele. Os homens não só agem moralmente (isto é, enfrentam determinados problemas nas suas relações mútuas, tomam decisões e realizam certos atos para resolvê-los e, ao mesmo tempo, julgam ou avaliam de uma ou de outra maneira estas decisões e estes atos), mas também refletem sobre esse comportamento prático e o tomam como objeto da sua reflexão e de seu pensamento. Dá-se assim a passagem do plano da prática moral para o da teoria moral; ou, em outras palavras, da moral efetiva, vivida, para a moral reflexa [...] (VÁZQUEZ, 2005, p. 17).
Portanto, a ética é teoria, que explica e define o conteúdo de algo. Diferentemente, a moral normatiza, recomenda uma direção de conduta a ser inserida na prática.
Ademais, como estamos falando da moral como uma das formas de condição valorativa, intrínseca, pertencente ao consciente do intérprete juiz (o qual pode ser influenciado por essa concepção ao escolher um enunciado normativo jurídico para fundamentar a decisão judicial), é relevante mencionar algo, ainda que de forma sucinta, sobre o vínculo existente entre o direito e a moral.
De início, percebemos que tanto o direito quanto a moral apresentam enunciados normativos de caráter imperativo que servem para nortear e regulamentar as condutas dos indivíduos dentro de uma sociedade. O direito e a moral se modificam ao longo dos anos em decorrência das mudanças dos contextos históricos, adequando-se às novas necessidades (VÁZQUEZ, 2005, p. 97).
Por outro lado, diferenciam-se no sentido de que o cumprimento da norma moral se dá através da íntima convicção, a pessoa escolhe segui-la ou não; já o cumprimento da norma jurídica deve ser seguida como obrigação, independentemente de sua íntima convicção. Outra questão diz respeito a “coação” exercida por ambos os tipos de normas. No caso da moral, ocorre, a princípio, pela aceitação do indivíduo para cumpri-la, depois, através da sociedade que vai fazer um juízo de valor aprovando ou desaprovando a conduta; ao contrário, o direito exerce um comando exterior que deve ser seguido independentemente da aceitação (VÁZQUEZ, 2005, p. 98-100).
Mencionamos, a seguir, de forma sucinta – por não estar enquadrada na delimitação conceitual –, duas ideias interessantes trazidas por Nalini e Pacheco a contento dos posicionamentos ético e moral vinculados ao pensamento jurídico.
Nalini (2010, p. 53-54) acrescenta que a influência da consciência como forma de “independência ética” do magistrado pode levantar questionamentos, vez que, a par da sua “motivação não jurídica”, a concepção emocional imbuída no crédito de fazer justiça pode gerar injustiça perante outras opiniões, ainda que o juiz pense estar fazendo justiça. Sobre um apanhado realizado acerca da condição ética impregnada no papel do juiz na atualidade brasileira, com base ao apontado por Jellinek, diz que o direito é detentor de um “mínimo ético”, de modo que os direitos e deveres assegurados pelo ordenamento jurídico “[...] só podem adquirir sentido no mundo real se houver fundamentos morais para afirmar sua existência [...]. Complementando que “[...] a codificação ética passa a ser um reforço na conscientização do juiz brasileiro de que dele se espera uma conduta compatível com a relevância das funções cometidas ao julgador [...].
De outro modo, uma questão é a levantada por Pacheco (2012, p. 45) ao retratar a influência do conteúdo moral às normas, nas teorias jurídicas. Dessa feita, há uma abordagem de correntes juspositivistas que são denominadas de “positivismo jurídico exclusivo” (não admitindo que a validade da norma esteja vinculada a conteúdos morais) e “positivismo jurídico inclusivo” (acreditando que não há vínculo necessário entre a moral e a validade das normas, mas que essa é admitida em algumas formas normativas). A esse respeito, o autor diz que:
[...] Para as versões do positivismo jurídico exclusivo (o qual encontra expressões em obras de autores como Andrei Marmor e Joseph Raz), a validade das normas jurídicas não pode ser condicionada à adequação a conteúdos morais, mas sim à existência de aspectos formais como a proveniência de autoridade competente e o cumprimento de normas procedimentais para sua elaboração. De outro modo, o positivismo jurídico inclusivo (o qual tem Hart e Jules Coleman entre os seus representantes) reconhece que não há conexão necessária entre o direito e a moral, mas admite que a conformidade com determinados conteúdos morais pode ser adotada, ao lado de requisitos formais, como uma condição de validade em ordens jurídicas [...].
Quando se fala que não há vínculo necessário entre a moral e o direito, isso não quer dizer que a moral esteja afastada das posturas positivistas.
Vejamos como essas questões podem ser empregadas na prática jurídica, por exemplo. O juiz está diante de duas ações de guarda judicial (direito de família), cujas partes litigantes são compostas por mãe e pai, com a pretensão de obter a guarda do filho menor de idade. Ambas as ações possuem o mesmo fundamento legal e, todos os pais e mães envolvidos têm condições financeiras de dar uma vida economicamente confortável aos filhos.
A partir dessas informações o magistrado poderia seguir um posicionamento moral, no sentido de que os filhos devem ficar com as mães. Desse modo, o magistrado vai analisar se há condições adequadas para esses menores ficarem com suas respectivas genitoras. Todavia, suponhamos que uma das mães não tem, ante a perspectiva do juiz, uma conduta exemplar diante do filho, o que prejudicaria sua formação e educação. Nesse caso, havendo um descumprimento de conduta moral positiva em decorrência da ausência de bom exemplo, o juiz pode conceder a guarda ao pai.
3.1.2 O conceito de ideologia e sua relação com a atuação do magistrado na esfera jurídica
Não pretendemos trazer uma abordagem ampla acerca do conceito de ideologia, pois restaria inviável nos limites deste trabalho. A palavra “ideologia”, a qual é dotada de um alto grau de vagueza e ambiguidade, e é utilizada em diferentes sentidos, foi utilizada pela primeira vez pelo filósofo francês Desttut de Tracy (Freitas, 2009, p. 28), mas foi através de Francis Bacon que começou a receber uma investigação geral. Além disso, foi por meio de Karl Marx que recebeu um sentido mais específico, voltando-se para a sociologia (FREITAS, 2009, p. 34).
Nosso objetivo, agora, é indicar o sentido que é dado à palavra “ideologia” neste texto, comentando, posteriormente, aspectos da sua relação com o campo jurídico, mais especificamente como esse conteúdo ideológico pode influenciar na postura do intérprete juiz ao desempenhar seu papel.
A palavra ideologia pode ser usada para indicar “ciência das ideias”, “conjunto de ideias, crenças, tradições, princípios e mitos, sustentados por um indivíduo ou grupo social, de uma época, de uma sociedade” (HOUAISS, 2004, p. 396).
A partir desse conceito podemos identificar o caráter ideológico, portanto, através de uma, algumas ou várias pessoas inseridas na sociedade, que constituem uma, algumas ou várias ideias, acreditando ou desacreditando algo. É o pensamento a respeito de algo. Ela pode ser a defesa ou credibilidade a uma ideia consolidada no âmago de uma tradição ou modificação de conduta, por exemplo, em caráter social, cultural, político, religioso, enfim.
Desse modo, podemos nos limitar a indicar que essas definições apontam circunstâncias de generalidade e vagueza atribuídas ao termo. Por se referir à esfera das ideias, dá uma margem de amplitude, no sentido de que o ideológico pode estar contido em toda a condição pensante, ou seja, no imaginário de todos os seres humanos.
Nesse momento, não mais nos referiremos à questão conceitual propriamente dita. Entraremos na seara da relação da ideologia com o posicionamento adotado pelo juiz.
Freitas (2009) desenvolveu uma dissertação a respeito da relação entre direito e ideologia, na obra intitulada “Além da Toga: Uma Pesquisa Empírica Sobre Ideologia e Direito”. O estudo faz um apanhado teórico ao discorrer sobre a temática, e uma abordagem prática ao fazer uma pesquisa empírica delimitando um grupo de magistrados (quais sejam, os que compõem a Associação Juízes Para a Democracia (ADJ) no estado de Pernambuco) com o intuito de demonstrar a inafastabilidade do caráter ideológico da atuação do juiz na esfera jurisdicional.
Com isso, é identificada uma postura valorativa no campo da magistratura. O operador do direito não consegue se livrar de suas concepções, ou, de outro modo, como já dissemos, não pode ter uma conduta neutra. Isso faz com que, ao optar pela aplicação de uma norma jurídica, dar-lhe-á sentido para fundamentá-la de forma adequada e condizente com suas expectativas, referentes a uma melhor resolução da demanda judicial.
A esse respeito Freitas (2009, p. 44-45) diz que:
Ao mencionarmos a presença da ideologia na magistratura, referimo-nos, pois, às suas manifestações, às várias maneiras como ela pode se expressar (e se disfarçar).
Assim, lançamos a hipótese de enfrentar a ideologia da magistratura discutindo sua fundamentação num idealismo – em oposição ao realismo como expressões filosóficas. É idealista a concepção de mundo dos juízes, aplicadores do direito por excelência, porque se constrói em cima de ilusões referenciais – por esta expressão nos remetemos às inversões, i é, crenças, preconceitos, valores, que fazem com que o operador tenha ilusões acerca do direito, daí o direito, data vênia a repetição, adquire um entorno significativo fruto das ideias desses juízes, por isso idealismo.
Assim as fundamentações de decisões, os votos dos juízes colegiados e ministros, enfim, a justificação do direito se revela como uma tentativa de legitimação do poder de setores da sociedade sobre outro.
Para a autora (2009, p. 50), no momento em que o magistrado vai interpretar o texto normativo, adequando-o à demanda judicial, surge um “[...] drama maior, tem-se um plexo ideológico que se manifesta nas leis, nos discursos, nas visões de mundo destes operadores jurídicos e eis sua tarefa: aplicar de forma supostamente imparcial a lei ao caso concreto”.
A título de exemplo, Freitas (2009, p. 90) utiliza referenciais teóricos importantes como Benjamin Cardozo e Oliver Wendell Holmes Junior, para falar da questão ideológica atribuída ao campo jurídico. Acrescentamos que, em decorrência do propósito deste estudo, não é nosso objetivo fazer um apanhado acerca das concepções desses teóricos, mas não nos escusamos de mencionar sua efetiva importância na questão tratada em tela.
Com base em Morris, Freitas (2009, p. 91) retrata o ensinamento de Holmes, que consta o direito mais como “experiência” e “não como lógica pura”. Assim, o saber empírico aferido ao juiz vai influenciar diretamente na interpretação do texto normativo, para que os interesses ali dispostos sejam alcançados.
Por fim, baseando-se em Cardozo (FREITAS, 2009, p. 96), chega à conclusão de que a ideologia se encontra entre os magistrados. Acrescentando o centro (“núcleo”) das bases ideológicas em “heranças” constantes do seio da sociedade, que servem aos juízes como parâmetros de “interesses” a serem seguidos por sua categoria.
Noutro direcionamento, questão interessante é a levantada por Warat (1994, p. 102) acerca da existência de tipos de teorias ideológicas e científicas, pois, ao elaborar o trabalho intitulado “o senso comum teórico dos juristas”, entende que sem esse “senso” não haveria a prática jurídica. Assim, observando as teorias jurídicas majoritárias, descreve dois tipos de teorias que influenciam aquela prática, quais sejam, teorias ideológicas (“senso comum teórico”) e teorias científicas. Por um lado, aquelas ideológicas atuam por concepções de valores e moral. Por outro lado, as científicas atuam observando os dados, inclusive ideológicos, para produzir o objeto de conhecimento. Nesse sentido, diz que:
Precisando a distinção entre teorias ideológicas e científicas diríamos que o senso comum teórico (teoria ideológica) baseia-se em valores, seus critérios para a compreensão dos dados são morais. Os critérios do saber científico, afastando-se de um juízo ético sobre os dados, tenta compreendê-los no complexo das relações em que se inserem, nos diferentes momentos de sua realização, o que inclui as relações ideológicas. Vê-se, então, que o senso comum teórico não tem a pretensão de construir um objeto de conhecimento sobre a realidade social, senão normatizá-la e justifica-la por meio de um conhecimento padronizado [...] Por outro lado, a teoria científica, em seu esforço para explicar a realidade, deve intervir sobre o ideológico acumulado desmascarando-o. É que só desideologizando os dados ideologicamente compreendidos pode-se alcançar o significado histórico dos mesmos. Em regra, a ciência é a compreensão do significado histórico dos dados (Warat, 1994, p. 102).
Nesse sentido, as teorias ideológicas (que retratam a questão dos valores e moral – como já desenvolvemos acima) e científicas têm papel preponderante na construção da sistemática jurídica como um todo. Aqui, há uma junção dos preceitos conceituais e técnicos com os preceitos axiológicos e morais. Um não pode ser aplicado sem o outro. Senão, verifica-se, de imediato, rigidez nos procedimentos, medidas atemporais aos propósitos de ajustamento dos textos legais aos fatos, leis desajustadas às necessidades da sociedade ocasionando seu descumprimento, dentre outras possibilidades. O técnico e o humano devem ser ponderados em conjunto para que a prática forense não seja inviabilizada.
3.1.3 A ideia de interdisciplinaridade entre direito e psicologia no que diz respeito à consciência do magistrado
Passamos a aferir um olhar interdisciplinar entre direito e psicologia, vez que a consciência ou consciente do juiz vai lhe direcionar na escolha das possibilidades interpretativas dentro de um texto a ser aplicado pelo intérprete.
Podemos ainda pegar a noção de Morin (2004) desenvolvida no capítulo anterior para entender a importância da interdisciplinaridade. Visto que há necessidade da reunificação, interligação das disciplinas, dos conhecimentos.
Nesse caso, nos valemos do vínculo indispensável entre o direito (que regulamenta as condutas de uma sociedade) e a psicologia (que estuda as formas de comportamento humano). Assim, podemos atribuir um ponto de intersecção entre essas disciplinas, ligando-as ao objeto central da pesquisa, ou seja, à atuação do magistrado ao interpretar o enunciado normativo.
Em decorrência dessa atuação, surgem questionamentos relacionados a essa atividade interpretativa: a consciência, personalidade do juiz influencia na tomada de decisão? Há limites na adoção do consciente para a aplicação da norma? De que maneira se concretiza o emprego dessa personalidade na prestação jurisdicional?
Os valores influenciam a conduta do magistrado, e, consequentemente, as suas concepções valorativas influenciam a decisão judicial.
Estando esses valores consubstanciados na consciência, esta acaba, portanto, interferindo, influenciando o magistrado na escolha dos dispositivos normativos que são usados para fundamentar, concretizar a sua decisão.
Quanto à questão faltante, não há como mensurar os limites que o consciente deposita em maior ou menor grau na postura do juiz. Possivelmente, nem o próprio intérprete que compreende (ou não) sua condição pensante poderia fazer essa aferição.
Ressaltamos que tal olhar interdisciplinar não tem a pretensão de ser aprofundado, haja vista a complexidade do tema envolto da psicologia do inconsciente, da psicologia analítica de Carl Gustav Jung, por exemplo. O que demandaria uma abordagem exclusiva, mais direcionada, fugindo da proposta de estudo retratada nesse momento.
Assim, dá para se ter noção do grau de profundidade mínimo ao que é citado por Prado, em sua obra intitulada “O Juiz e a Emoção: Aspectos da Lógica da Decisão Judicial” (2013, p. 17, grifo original) ao estabelecer que da “atividade jurisdicional” não se objetiva o “conhecimento abstrato do juiz”, mas “sua personalidade como um todo. E essa personalidade engloba, além de outras, características como o intelecto, sentimento, sensação e intuição, possibilitando ao magistrado colocar-se no lugar das partes do processo”.
A título de exemplo, Prado (2013, p. 37-39) menciona referenciais teóricos como Luís Recaséns Siches, Theodor Viehweg, Michel Villey, Chaim Perelman, dentre outros, que acreditam que há atividade criadora do intérprete ao passo que dá significado à norma. Ademais, a autora ressalta a inadequabilidade do já questionado uso do silogismo como parte integrante das possíveis interpretações que não estejam consubstanciadas naquelas premissas. Por outro lado, cita autores como Karl Llewellyn, Siches, Joaquim Dualde e Jerome Frank, além dos brasileiros Miguel Reale e Renato Nalini, que entendem haver influência dos “atributos psicológicos” dos juízes impregnados na decisão judicial.
A respeito de um desses atributos, Prado (2013, p. 39, grifo original), com base em Siches, refere-se ao sentimento do intérprete incluso na norma, assentando que “[...] na produção do julgado, destaca-se o papel do sentimento do juiz, cuja importância fica evidenciada até pela etimologia da palavra sentença, que vem de sentire, isto é, experimentar uma emoção, uma intuição emocional”.
Diante do exposto, temos que as concepções da consciência do magistrado que se perfazem em sua personalidade, arraigam-se aos conceitos éticos, morais, ideológicos que lhe são inerentes. E, como será abordado adiante, influenciam diretamente na vontade de escolha da lei pelo intérprete, que aplica ou cria a norma na decisão judicial.
3.2 A interpretação na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen: a teoria da moldura como reconhecimento do ato de vontade do magistrado no emprego da norma
3.2.1 A teoria da moldura de Hans Kelsen
Neste subitem abordaremos a teoria da moldura de Hans Kelsen, constante no capítulo VIII de sua obra intitulada “Teoria Pura do Direito”, a qual pode servir de fundamento para os intérpretes juízes na escolha de um texto normativo para a criação da norma. Para tanto, faremos um apanhado teórico acerca da interpretação, vinculando a relação desenvolvida no item anterior do intérprete juiz com os valores que podem lhe direcionar a optar pela escolha de um texto legal, dentre outros possíveis, para fundamentar a decisão judicial.
Por enquanto, no que diz respeito a Kelsen, temos em mente que a norma pode ser simbolizada por um quadro através da teoria da moldura, no qual são disponibilizados ao juiz as nuances de um caso e, com elas, uma, algumas ou várias opções de resolução, ao passo que cabe a esse intérprete indicar o posicionamento que será tomado para dar fim à prestação jurisdicional.
É importante destacar que comparamos ao longo dos trabalhos, com base em Adeodato (2009, p. 159-160), que o texto de norma é o significante, positivado, passível de fundamentação jurídica, e a norma é o significado, é o sentido que é dado ao texto quando de sua aplicação na decisão judicial. Assim sendo, texto e norma não podem ser usados como sinônimos.
Contudo, ressaltamos que a divisão supramencionada não pode ser inserida no posicionamento de Kelsen, pois ele não faz uma distinção desses termos.
Como estamos nos referirmos à interpretação jurídica, ela possui instrumentos classificatórios que veremos mais adiante, responsáveis por direcionar no papel principal do intérprete, o de se desbravar nos textos jurídicos para buscar seu sentido e alcance na concessão do direito ao qual se socorrem as partes, na busca da tutela jurisdicional. Do ponto de vista dogmático, a doutrina desenvolve classificações que servem como instrumento norteador às possibilidades em que o intérprete possa vincular seus argumentos na fundamentação da sentença.
Para Kelsen (2006, p. 387-388), a interpretação pode se dar de duas maneiras: através do aplicador do direito, que dá sentido ao texto normativo, acompanhando uma “operação mental” do intérprete, e através dos não aplicadores do direito, ou seja, da própria ciência jurídica e de pessoas alheias a essa atividade, que apenas cumprem suas regulamentações ou refletem sobre a aplicação da lei. Em todo caso, o autor apenas faz menção a este último modo, tomando como objeto de estudo o desenvolvimento da interpretação adotada por quem vai, propriamente, aplicar o direito.
Para tanto, até que o intérprete coloque as mãos na lei, o autor (2006, p. 388) desenvolve uma relação de “determinação” que há entre uma constituição e uma lei, entre uma lei e uma sentença, por exemplo. Esses dispositivos não podem ditar completamente todas as circunstâncias de como um texto hierarquicamente superior deve ser seguido pelo outro de hierarquia inferior, abrindo espaço, portanto, para a “livre apreciação” do intérprete quando for aplicar a norma caso a caso. Assim, a “norma do escalão superior” (seguindo o exemplo, tem-se constituição, lei) serve como uma “moldura” (um parâmetro) para auxiliar na execução da “norma do escalão inferior” (na mesma linha, lei, sentença).
Kelsen (2006, p. 388-389) entende que, no ato de interpretação autêntica (realizada pelos aplicadores do direito), há uma “criação jurídica” ou uma “execução” (através das autoridades administrativas). Ele admite que a aplicação do direito é relativamente indeterminada, e essa indeterminação ser “intencional” ou “não-intencional”. A indeterminação intencional ocorre quando a norma disponibiliza alternativas possíveis de aplicação, nesse caso o intérprete é quem vai determiná-la. No que diz respeito à indeterminação “não-intencional”, pode-se dar face à pluralidade de significados de uma ou várias palavras impressas no enunciado normativo; ainda, que o operador do direito pode constatar uma discrepância entre os sentidos verbais dessas palavras e o sentidos a ela empregados, tanto o quisto pelo legislador, como pelas partes contratantes de um negócio jurídico, podendo deixar de lado esse suposto motivo determinado de sentido.
Exemplificando a indeterminação Kelsen (2006, p. 390) diz:
Que a chamada vontade do legislador ou a intenção das partes que estipulam um negócio jurídico possam não corresponder às palavras que são expressas na lei ou no negócio jurídico, é uma possibilidade reconhecida, de modo inteiramente geral, pela jurisprudência tradicional. A discrepância entre vontade e expressão pode ser completa, mas também pode ser apenas parcial. Este último caso apresenta-se quando a vontade do legislador ou a intenção das partes correspondem pelo menos a uma das várias significações que a expressão verbal da norma veicula.
Ademais, a indeterminação enfocada por Kelsen não se coloca propriamente no plano das antinomias, mas sim na percepção de que um mesmo enunciado normativo pode ser aplicado de diferentes maneiras, pode dar lugar a diferentes normas individuais. Nesse sentido, Adeodato (2009, p. 159, grifo original) diz que “[...] um conflito concreto teria algumas possíveis decisões diferentes, todas igualmente adequadas, desde que dentro do sentido e do alcance dos textos aplicáveis e correspondentes procedimentos [...]”.
É justamente essa indeterminação, seja ela intencional ou não, que vai justificar a teoria da moldura. Como já dito, essa teoria disponibiliza possibilidades de aplicação do texto normativo ao intérprete (apenas na interpretação autêntica) dentro de um mesmo caso. Para Kelsen, o juiz aqui vai criar a norma a ser estampada na sentença judicial.
Urge ressaltar que não há uma única decisão correta dentre essas possibilidades de aplicação do enunciado normativo, em decorrência dos sentidos que lhe são empregados. Assim, ainda que as fundamentações de uma e outra norma sejam antagônicas, aplicar uma ou outra é plenamente possível, pois pertencem a um “mesmo plano”, ou seja, de normas do mesmo escalão validadas no ordenamento jurídico. Nesse sentido, Kelsen (1988, p. 248) diz que:
Apesar de todos os esforços da jurisprudência tradicional, não se conseguiu até hoje decidir o conflito entre vontade e expressão a favor de uma ou da outra, por uma forma objetivamente válida. Todos os métodos de interpretação até ao presente elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto. Fixar-se na vontade presumida do legislador desprezando o teor verbal ou observar estritamente o teor verbal sem se importar com a vontade – quase sempre problemática - do legislador tem - do ponto de vista do Direito positivo - valor absolutamente igual. Se é o caso de duas normas da mesma lei se contradizerem, então as possibilidades lógicas de aplicação jurídica já referidas encontram-se, do ponto de vista do Direito positivo, sobre um e o mesmo plano. É um esforço inútil querer fundamentar “juridicamente” uma, com exclusão da outra.
Uma última questão a ser levantada é de que o autor bem se posiciona quando se refere a esse “processo de criação jurídica”, pois o intérprete, ao escolher o texto que será usado como “moldura” na aplicação da norma, pode ser influenciado por “[...] normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar por expressões correntes como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc [...]”, circunstâncias essas que envolvem sua “livre apreciação” na produção da norma (KELSEN, 2006, p. 393).
A título de exemplo, Dimoulis (2006, p. 72), ao retratar esse procedimento criativo, concorda com Kelsen, dizendo que este “sustenta que o aplicador sempre cria uma nova norma, ainda que a norma aplicada tenha definido taxativamente a conduta e a sanção”.
Ainda, Barroso (2009, p. 292), com base em Kelsen, faz uma abordagem dos aspectos objetivos e subjetivos que envolvem o papel do magistrado ao considerar o texto (significante) e a norma (significado) a ser aplicada à demanda judicial. Nesse sentido, o emprego do caráter objetivo estaria assim ligado aos textos, aos enunciados normativos jurídicos que limitam as possibilidades interpretativas. Por outro lado, o aspecto subjetivo é condizente com as concepções do intérprete que deve se “sensibilizar” para “humanizar” a direção daquele texto, possibilitando-lhe buscar a justeza da relação jurídica.
3.2.2 Considerações introdutórias sobre a ideia de interpretação jurídica
Demos início ao subitem acima desenvolvendo a ideia trazida pela teoria da moldura de Kelsen ao reconhecer o ato de vontade do magistrado em escolher a norma a ser aplicada numa demanda jurídica. Pretendemos, complementarmente, retratar outros aspectos acerca da interpretação.
Demonstra-se que a atividade da interpretação dos enunciados normativos é indispensável para conceder uma norma ajustada às partes. Além disso, há constantes modificações sociais tornando inviável que o direito fique engessado na vontade do legislador, devendo o intérprete não apenas adequar as novas demandas aos textos, como também visualizar possibilidades de textos distintos conferidos a um mesmo caso, podendo, ademais, observar o sistema como um todo – e aqui se adapta o método de interpretação sistemática.
É comum visualizar na doutrina a classificação da interpretação. De forma geral, ela pode se dar em três modos ou métodos, recebendo, inclusive, subclassificações.
Assim, a título de exemplo, Pinto (2011, p. 15-16) classifica o primeiro modo “quanto à sua origem”, que pode ser subclassificada em “autêntica”, “doutrinária” e “jurisprudencial”. Segundo, “quanto ao método” pode ser “gramatical”, “lógica”, “histórica”, “sistemática” e “teleológica ou social”. Terceiro, “quanto ao resultado”, pode ser “declaratória”, “restritiva” e “ampliativa” – para alguns autores esta última é tida como método de interpretação “extensiva”, como, por exemplo, Machado (1997), Reale (1988), dentre outros.
Pois bem, dando continuidade à ideia de interpretação, eis que surge um questionamento levantado por parte da doutrina, como em Reale (1988), Nunes (2005) e Maximiliano (2008), por exemplo, relacionado à forma de interpretação de um texto legal: ao se interpretar um texto devem ser buscadas a vontade do legislador (voluntas legislatoris) ou a vontade da lei (voluntas legis)?
Reale (1988) diz que para se buscar a vontade do legislador há de fazer um estudo histórico, trazer os pensamentos e fundamentos utilizados pelo legislador em um dado momento. O que não é plenamente possível. Assim, deve-se aplicar a vontade da lei, no sentido de que ela deve se adaptar às novas demandas sociais.
Ao responder a essa indagação, Nunes (2005, p. 254-260) entende que uma terminologia não exclui a outra. Todavia, como há tendências na dogmática jurídica para a distinção desses termos, justifica seu posicionamento precedendo um questionamento que lhe serve de base para responder qual vontade deve prevalecer, se a do legislador ou a da lei. Quem acredita no mens legislatoris entende que as leis são “genéricas” e não preveem todas as hipóteses de incidência, daí a busca pela vontade do legislador para direcionar a medida a ser tomada. Por outro lado, quem acredita no mens legis concorda com o posicionamento de que é justamente pela “generalidade” da lei (que pode se adequar às demandas) que é possível atingir a imparcialidade. Assim, referindo-se à questão que diz respeito ao “melhor governo” se os da lei (imparcial) ou dos homens (movidos por paixões), opta-se ao condizente às leis, evitando “decisões arbitrárias” e vontades díspares, obnubiladas. Devendo a interpretação se valer, portanto, aos preceitos estabelecidos pela lei.
Assim sendo, deve-se levar em consideração o sentido aplicado à lei, e não o pretendido pelo legislador – até porque, neste caso, não há possibilidade de saber ao certo o que se passa na percepção de cada legislador. Além do mais pode ser procedida uma decisão anacrônica, inadequada aos novos casos.
Como demonstrado, Reale (1988, p. 286) diz que a interpretação deve se dar de maneira a buscar a finalidade do enunciado normativo (interpretação teleológica). Isso dá margem ao magistrado para que, antes de aplicá-la verifique seu valor, depois de constatadas as singularidades do caso: as partes e os fatos que lhe são condizentes. Nesse sentido, o autor diz que:
Fim da lei é sempre um valor, cuja preservação ou atualização o legislador teve em vista garantir, armando-o de sanções, assim como também pode ser fim da lei um pedir que ocorra um desvalor. Ora, os valores não se explicam segundo nexos de causalidade, mas só podem ser objeto de um processo compreensivo que se realiza através do confronto das partes com o todo e vice-versa, iluminando-se e esclarecendo-se reciprocamente, como é próprio do estudo de qualquer estrutura social.
Tal posicionamento está em consonância com o preceito regulamentado pelo art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB – (BRASIL, 1942), que diz ao intérprete para buscar a finalidade da lei quando de sua aplicação.
Buscar a finalidade da lei é adequar o texto pretérito às novas demandas jurídicas, face às modificações sociais. Ora, o direito é usado como um instrumento de controle social, e para que tal controle seja de todo cabível deve se adaptar aos novos fatos sociais.
Para Machado (1997, p. 72), a “interpretação tem vários significados. Pode significar a atividade do intérprete, ou o resultado desta. Não diz respeito apenas às normas jurídicas, mas a tudo quanto possa ser objeto do conhecimento humano”.
Na visão do autor (1997, p. 72-73), de acordo com a doutrina tradicional, o intérprete não tem uma função criadora da norma, limitando-se a aplicar a lei. Embora, caso ele entenda não haver uma norma específica para solucionar a demanda jurídica, constatando a lacuna, pode-se valer da “integração” (que é um instrumento hermenêutico disponibilizado ao intérprete, nesses casos), exercendo, assim, uma “atividade criadora”, desde que a agregue a “normas preexistentes”.
Todavia, ressalta a questão divergente acerca das possibilidades de criação e aplicação do direito, dizendo que “há quem sustente que tanto na integração, como na interpretação, há atividade criadora. Por outro lado, há quem sustente que não há atividade criadora nem na interpretação, nem na integração” (MACHADO, 1997, p. 73).
Observa-se que a possibilidade de integração se manifesta ante as lacunas existentes nos textos normativos. Assim, o magistrado deve complementá-los. Percebemos que a própria legislação brasileira indica a concretização dessa ação. Desse modo, por exemplo, verificamos sua incidência quando da leitura do art. 4ª da LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), do art. 126 do CPC (Código de Processo Civil) e do art. 108 do CTN (Código Tributário Nacional), senão, vejamos:
Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (BRASIL, 1942).
Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito (BRASIL, 1973).
Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:
I - a analogia;
II - os princípios gerais de direito tributário;
III - os princípios gerais de direito público;
IV - a equidade [...] (BRASIL, 1966).
Maximiliano (2008, p. 227, grifo original) argumenta que, hoje em dia, os hermeneutas tendem a não buscar o sentido que o legislador pretendeu atribuir ao texto pretendido pelo legislador, mas buscam apropriar aquele texto à demanda presente face às referidas modificações sociais. Com isso não quer o intérprete fugir da aplicação da lei, embora, quando a aplique acaba mudando seu sentido fazendo com que essa medida exerça uma “função criadora”.
Nesse sentido, é interessante abordar o posicionamento de Junior (2009, p. 152), que indaga sobre como ser fiel à lei, sendo tal fidelidade tomada como “crença jurídica”, nos seguintes moldes:
Fidelidade à lei, como objetivo de trato da retórica jurídica, não pressupõe senão crenças, crenças jurídicas. Não se trata de objeto mensurável. Uma contradição pretendida entre decisão e lei, por exemplo, não pode ser tomada como fato, mas como opinião, que se origina de crenças.
Nesse diapasão, Reale (1988, p. 287-288, grifo original) ressalta ainda que a adaptação de um texto à norma recebe caráter axiológico do juiz (como vimos no item anterior ao falar sobre os valores éticos, morais e ideológicos presentes na personalidade do intérprete, que podem influenciar o rumo pelo qual adere a um texto para proferir a norma na sentença), que diante dessas novas demandas cria esta disposição através de sua vontade de escolha, ou seja, dando-lhe rumo, resolução do caso ao optar por uma norma dentre outras possíveis, inclusive, pelo possível fato de inexistir previsão legal acerca da demanda. Por oportuno, o autor assenta que:
[...] o trabalho do intérprete, longe de reduzir-se a uma passiva adaptação a um texto, representa um trabalho construtivo de natureza axiológica, não só por se ter de captar o significado do preceito, correlacionando-o com outros da lei, mas também porque se deve ter presentes os da mesma espécie existentes em outras leis: a sistemática jurídica, além de ser lógico-formal, como se sustenta antes, é também axiológica ou valorativa.
Não pode absolutamente ser contestado o caráter criador da Hermenêutica Jurídica nesse árduo e paciente trabalho de cotejo de enunciados lógicos e axiológicos para atingir a real significação da lei, tanto mais que esse cotejo não se opera no vazio, mas só é possível mediante contínuas aferições no plano dos fatos, em função dos quais as valorações se enunciam [...] o intérprete pode avançar mais, dando à lei uma significação imprevista, completamente diversa da esperada ou querida pelo legislador, em virtude de sua correlação com outros dispositivos, ou então pela sua compreensão à luz de novas valorações emergentes no processo histórico.
Nessa mesma linha de raciocínio acerca da interpretação aferida pelo magistrado que é influenciado por seus valores, podemos observar que há um leque de possibilidades à escolha daquele, e não há uma plena previsibilidade sobre como será a decisão judicial. Desse modo, não há execução procedimental possível para a obtenção de posicionamentos unívocos, o que pode gerar insegurança e controvérsia (MACHADO, 1997).
Noutro quesito, apenas para reforçar a ideia já mencionada no capítulo anterior, falar nas premissas de um caso jurídico para se chegar a uma solução traz a ideia do silogismo. Para não cair em descuido ao falar em interpretação, é importante mencionar a questão silogística, que é fundamental para o campo jurídico. Ora, vimos que, no século XVIII, a ciência moderna tinha como fundamento que o único conhecimento aceitável era o científico e, para tanto, esse conhecimento era influenciado pelas ciências exatas de modo que sua evidência teria de ser demonstrada quantificadamente. Nesse cenário, o silogismo pode ser adequado às ciências naturais, mas não é plenamente adequado às ciências humanas (como a “ciência” do direito), em que a correspondência dos textos a serem aplicados não comporta todas as hipóteses previstas, devendo ser ajustado de forma consciente pelo intérprete em cada caso.
Nesse sentido, Adeodato (2009, p. 159-160) esclarece que a solução para um caso ainda deve se dar de forma “dedutiva” através dessas premissas. Todavia, há uma alteração do sentido empregado ao silogismo, ele não recebe mais o caráter “apofântico”. Ou seja, a forma de premissas traduzidas em quantificações lógico-matemáticas são inadequadas e podem levar a erros jurídicos. De outro modo, o silogismo, recebe, sim, o caráter “dialético”. Ou seja, as peculiaridades de cada caso podem ser demonstradas através de argumentos coerentes, de modo que se debata sobre o melhor significante a ser empregado:
A metodologia continua dedutiva, mas não é mais silogística apofântica e sim dialética: esse dedutivismo vê no direito uma ciência, cujo ato de conhecimento provém da compreensão dialética que se dá entre a “norma” e o fato: a norma, entendida como o texto positivado (a “fonte” do direito), forma uma moldura em relação às decisões adequadas. A moldura recorta as decisões corretas dentre as decisões possíveis, isto é, exclui as incorretas, mas não pode decidir entre as decisões corretas qual a única melhor. Aí entra o poder discricionário do decididor: aplicadas as regras formais, não se chega a um só resultado, mas qualquer resultado é justo.
E aqui, entra mais uma vez a teoria da moldura, na qual o magistrado vai se valer dos significantes que lhe são disponibilizados pelo ordenamento jurídico para dar significado em cada caso, em conformidade com cada especialidade e particularidade.
3.3 A ideia de textura aberta da linguagem no pensamento de Herbert Hart
Herbert Lionel Adolphus Hart, em sua obra intitulada “O Conceito de Direito”, aborda em seu capítulo VII críticas ao formalismo e ceticismo sobre as regras. Abordaremos alguns de seus posicionamentos acerca da discordância de um e de outro sistema. No entanto, não é nosso objeto de estudo destrinchar o referido capítulo, mas apenas analisar a ideia de que o direito tem uma textura aberta.
Ao tratar da noção de textura aberta do direito, faz-se necessário tecer uma breve consideração sobre a importância da linguagem para o direito e os problemas causados pelo seu uso.
A linguagem tem um papel fundamental em todos os ciclos sociais, estabelecendo compreensão de relações diversas de indivíduos entre si e com o mundo, de uma forma geral. Seja pela comunicação escrita, verbal ou corpórea. Ela clarifica os conteúdos, dá-lhes sentido propulsiona as ideias que estruturam o objeto que se quer comunicar. Mais especificamente à linguagem jurídica, temos que:
No Direito, a linguagem tem merecido cada vez mais atenção dos estudiosos, dada sua importância para o conhecimento jurídico. A linguagem, na realidade, impõe-se de maneira necessária para o investigador do Direito, uma vez que, olhados de perto, Direito e linguagem se confundem: é pela linguagem escrita e falada que os advogados, os procuradores, os promotores defendem e debatem causas e os juízes as decidem; é pela linguagem escrita e falada que os professores ensinam o Direito e os estudantes o aprendem. Acima de tudo, é pela linguagem que se conhecem as normas jurídicas (NUNES, 2005, p. 248).
Por esse motivo, autores como Nunes (2005) e Kozicki (19--?) se debruçam em estudos para constatar o fenômeno linguístico. Aquele, descrevendo o “problema da linguagem”; esta, descrevendo a “vagueza e ambiguidade” inclusas no texto, em referência à “textura aberta da linguagem e do direito”. Para eles, há uma “linguagem natural” advinda da própria sociedade, o que ocasiona os problemas de vagueza, ambiguidade, indeterminação, dentre outros, dessa comunicação.
Kozicki (19--?, p. 1), por sua vez, entende que não há um único significado que determine o sentido contextual, o que abre margem à vagueza e ambiguidade. Para que haja compreensão na mensagem que se quer passar, é necessário observar o ambiente em que os significantes estão inseridos, para que, desse modo, possam-lhes dar significados e, ainda assim, nem sempre ele é plenamente alcançado. Ditando, pois, nos seguintes termos que:
[...] as expressões linguísticas não possuem por si só um significado unívoco. Existe sempre uma indeterminação de sentido, uma vez que o significado é obtido a partir do uso e do contexto em que ele é referido. Independentemente desse fato, mesmo contextualizando as expressões, por vezes elas continuarão com um sentido vago ou indeterminado [...].
Com a pretensão de abstenção dessas falhas linguísticas, Nunes (2005, p. 249) afirma que “os cientistas buscam construir para suas ciências uma linguagem artificial, técnica, mantida em forte rigor conceitual”. E que “é por intermédio da linguagem precisa que a ciência constrói suas leis, verifica suas hipóteses, elabora seus sistemas”.
Em decorrência disso, o autor continua suas observações assegurando que a norma não deve ser aplicada apenas aos cientistas, mas a “todos” os grupos sociais. E tem verdade em suas alegações, pois a norma é feita da sociedade para a sociedade. Portanto, seu conteúdo não deve ser “inacessível” aos seus destinatários.
Assim, ele conclui que mesmo com a preservação da técnica científica, a sociedade detém certo conhecimento das normas que lhe são aplicadas, observado, inclusive, o decurso do tempo de sua vigência para tal ciência. Além disso, constata direcionamento dos legisladores para a elaboração de normas mais “acessíveis”.
Já para Reale (1988, p. 8), quando fala que a “cada ciência exprime-se uma linguagem”, assenta que pensadores contemporâneos têm a ciência como sua própria linguagem. Em outras palavras “[...] a ciência é a linguagem mesma, porque na linguagem se expressam os dados e valores comunicáveis [...]”.
Em outra perspectiva, o que acaba influenciando diretamente na percepção do texto é sua clareza. Quando não há clareza suficiente na transmissão das informações, ela dá espaço aos problemas da linguagem como a vagueza, ambiguidade, indeterminação de sentido. Por outro lado é importante ressaltar que, mesmo havendo a referida nitidez, ela ainda pode causar impasses, seja porque há dois ou mais dispositivos para solucionar a demanda, seja porque as modificações ocorridas após a vigência do texto necessitem de uma nova adequabilidade.
O próprio Hart (2001, p. 140) comentando acerca da “crise na comunicação” atesta que a linguagem disposta na regra pode gerar incertezas, haja vista que a autoridade delimita “casos simples”. O autor também critica a insuficiência do silogismo, pois já não há como demonstrar o caminho central – da regra – adequado a ser percorrido. Complementarmente, retrata o aspecto do poder discricionário concedido aos intérpretes, em decorrência da linguagem, vez que há uma escolha realizada por esse, em meio a várias disposições disponibilizadas à resolução da demanda.
Visualizamos um exemplo interessante citado pelo autor (2001, p. 139) para constatar até que ponto podem ser verificados os limites da linguagem, de modo que seja observada a textura aberta do direito. Assim, tem-se que, em meio aos diversos fatos, uma determinada legislação dita regra que tem por objeto a nomenclatura “veículo”, e aqui fica claro que esse veículo pode ser um “automóvel”. Ocorre que novas demandas questionam se esse “veículo” também pode se referir a “bicicletas, aviões e patins”. Desse modo, temos que a regra do caso simples já não é tão evidente, devendo ser levado em consideração o novo contexto social para ajustar o texto legal aos novos fatos.
Veremos adiante que, para o autor, não importa o meio utilizado para implementar as regras que servem de instrumento para o controle social ou as condutas humanas, sejam elas estabelecidas através de precedentes ou da própria legislação. Ambos os modos se demonstrarão indeterminados (e, aqui, podemos observar semelhanças com as ideias trazidas por Kelsen acerca da indeterminação do direito), pois não há como elaborar uma regra que supra todas as hipóteses previsíveis ou imprevisíveis. Por um lado, isso acontece porque há “ignorância” em relação aos fatos que irão ocorrer. Por outro lado, há uma "relativa indeterminação de finalidade”, circunstância que ocasiona, portanto, a textura aberta:
Seja qual for o processo escolhido, precedente ou legislação, para a comunicação de padrões de comportamento, estes, não obstante a facilidade com que actuam sobre a grande massa de casos correntes, revelar-se-ão como indeterminados em certo ponto em que a sua aplicação esteja em questão; possuirão aquilo que foi designado como textura aberta [...] É, contudo, importante apreciar por que razão, posta de parte esta dependência da linguagem tal como efectivamente ocorre, com suas características de textura aberta, não devemos acarinhar, mesmo como um ideal, a concepção de uma regra tão detalhada, que a questão sobre se se aplicaria ou não a um caso particular estivesse sempre resolvida antecipadamente e nunca envolvesse, no ponto de aplicação efectiva, uma escolha entre alternativas abertas. Dito de forma breve, a razão reside em que a necessidade de tal escolha é lançada sobre nós porque somos homens, não deuses. É um aspecto da condição humana (e, por isso, da legislativa) que trabalhemos sob a influência de duas desvantagens ligadas, sempre que procuramos regular, de forma não ambígua e antecipadamente, alguma esfera da conduta por meio de padrões gerais a ser usados, sem directiva oficial ulterior, em ocasiões particulares. A primeira desvantagem é a nossa relativa ignorância de facto; a segunda a nossa relativa indeterminação de finalidade [...] (HART, 2001, p. 140-141, grifo original).
Tendo em vista essas variações linguísticas, significados múltiplos, vaguezas e ambiguidades dos textos jurídicos, cabe ao intérprete dar sentido aos enunciados normativos analisando as nuances de cada caso. Aqui conseguimos observar a importância que a ideia da teoria da moldura de Hans Kelsen traz para a prática jurídica. Ela dá reconhecimento ao ato de vontade de escolha do magistrado, que, em meio a possibilidades de interpretação, atribui um sentido ao enunciado normativo.
Por outro lado, na sua crítica ao formalismo e ao ceticismo sobre as regras, Hart (2001, p. 137) entende que “as regras gerais, os padrões e os princípios devem ser o principal instrumento de controle social”, esclarecendo, para tanto, duas vertentes paralelas responsáveis por veiculá-los à práxis, quais sejam, a “legislação” e o “precedente”. Nesse sentido, observa Hart (2001, p. 150-154) que o formalismo e o ceticismo sobre as regras representam posturas exageradas acerca do direito. Assim, de um lado, o formalismo tem arraigado às suas concepções o entendimento de que a regra estabelecida não deixa escolhas para o intérprete, e deve ser aplicada em todos os casos que lhe são direcionados, sem a consideração quaisquer fatos que estejam em posição de maior ou menor necessidade de ajustamento. De outro lado, o ceticismo consiste em descreditar a rigidez do formalismo ao passo de que há uma inversão de fatores. Aqui a resolução do caso primeiro é pensada pelo intérprete, que, após escolhido o posicionamento que quer tomar, procura o texto do enunciado normativo que se adeque a ele, para que possa usar como fundamentação jurídica.
Entretanto, Hart entende que a harmonização do procedimento está entre essas duas posturas teóricas, ao passo de que a regra deve, sim, ser considerada. E, havendo uma textura aberta da linguagem consubstanciada numa vagueza ou ambiguidade, por exemplo, abre margem ao intérprete para o caminho de sua “função criadora”, posto que deva decidir qual o posicionamento a ser tomado, delimitando, extinguindo ou elastecendo o sentido e o alcance dos textos.
4 ESTUDO DE CASO: A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA EM FACE DO GÊNERO – LEGITIMIDADE FEMININA X (I)LEGITIMIDADE MASCULINA
4.1 A perspectiva histórica de elaboração da lei como fundamento legítimo de aplicação exclusiva à mulher face ao princípio constitucional da igualdade
Neste capítulo, será abordado um estudo de caso com base na Lei nº 11.340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, objetivando analisar sua aplicação face ao gênero. Eis que a referida lei foi elaborada para ser aplicada apenas às mulheres vítimas de violência no âmbito doméstico e familiar. No entanto, homens também são agredidos no âmbito doméstico e familiar, e alguns magistrados aplicam aquela lei também a esses homens.
Contudo, a lei em questão veda expressamente sua aplicação ao gênero masculino. É disposto no seu artigo 5º que: “Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial [...]”. Desse modo, far-se-á uma abordagem da prática forense – e não tão mais detidamente teórica como nos capítulos anteriores –, observando, portanto, dois casos encontrados na jurisprudência que representam o impasse enfrentado pelo Judiciário ao procedimentalizarem tais tipos de violência.
Em linhas gerais, como não é objeto de estudo explicar o conteúdo da lei, mas tão somente sua aplicação ao gênero feminino e masculino, limitamo-nos a esclarecer que ela busca, a princípio, ser executada para as mulheres, vez que, a par do contexto histórico de alto índice de agressão a estas, surge a necessidade de criar mecanismos legais para coibir a violência doméstica e familiar (BRASIL, 2006; DIAS, 2010).
Desse modo, a legitimação e exclusividade da lei à mulher demonstra que tal medida é proporcional, tendo em vista que busca uma ponderação nas relações condizentes aos âmbitos doméstico e familiar, havendo ou não coabitação e grau de parentesco. Circunstâncias essas em que só é possível alcançar um equilíbrio entre as partes (homem e mulher) na medida em que, para se obter a igualdade nessas relações, devem-se tratar os iguais como iguais e os desiguais na medida de sua desigualdade, ou seja, que haja distinção na aplicação da lei ao gênero (BRASIL, 1988).
Por um lado, é bem verdade que a regulamentação dessa lei levou a sérios debates de inconstitucionalidade pelos juristas, justamente pelo argumento de que essa distinção de aplicação face ao gênero estivesse ferindo o princípio constitucional da igualdade, além de afastar o procedimento da Lei nº 9.099 de 1995 (Lei dos Juizados Especiais). Por outro lado, essas questões foram superadas com os adventos da ADI nº 4424 (Ação Direta de Inconstitucionalidade) e da ADC nº 19 (Ação Declaratória de Constitucionalidade) que votaram pela constitucionalidade da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2010; BRASIL, 2007).
Por oportuno, colaciona-se ementa do acórdão da ADC votada pelo Supremo Tribunal Federal, declarando a constitucionalidade da Lei Maria da Penha por estar em consonância com a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2014):
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LEI Nº 11.340/06 – GÊNEROS MASCULINO E FEMININO – TRATAMENTO DIFERENCIADO. O artigo 1º da Lei nº 11.340/06 surge, sob o ângulo do tratamento diferenciado entre os gêneros – mulher e homem –, harmônica com a Constituição Federal, no que necessária a proteção ante as peculiaridades física e moral da mulher e a cultura brasileira. COMPETÊNCIA – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LEI Nº 11.340/06 – JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. O artigo 33 da Lei nº 11.340/06, no que revela a conveniência de criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, não implica usurpação da competência normativa dos estados quanto à própria organização judiciária. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER – REGÊNCIA – LEI Nº 9.099/95 – AFASTAMENTO. O artigo 41 da Lei nº 11.340/06, a afastar, nos crimes de violência doméstica contra a mulher, a Lei nº 9.099/95, mostra-se em consonância com o disposto no § 8º do artigo 226 da Carta da República, a prever a obrigatoriedade de o Estado adotar mecanismos que coíbam a violência no âmbito das relações familiares (STF, ADC nº 19, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 29.04.2014).
Assim, pressupõe-se que a lei foi elaborada para ser aplicada considerando o método de interpretação teleológica, vez que o bem jurídico a ser resguardado é a integridade física, moral, psicológica, sexual e patrimonial da mulher, em detrimento do homem, face aos precedentes históricos de desigualdade. Sobre esse tipo de interpretação, Machado (1997, p. 75) esclarece que:
[...] o intérprete empresta maior relevância ao elemento finalístico. Busca o sentido da regra jurídica tendo em vista o fim para o qual foi ela elaborada. Fundamenta-se em que todo o Direito tende a um fim, tem uma finalidade, e esta finalidade deve ser considerada na interpretação, de sorte que o intérprete não extraia do texto um significado incompatível com o fim visado pelo legislador.
Em outra linha, Pinto (2011, p. 15) fala de forma mais sucinta acerca desse método, classificando-o em teleológico ou “social” nos seguintes termos: “são examinados os fins para os quais foi a lei editada”. Ao que consta, inclusive, no art. 4º do referido diploma legal que diz: “na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar” (BRASIL, 2006).
E por falar em “social”, entramos numa questão sociológica e verificamos que a importância da sociologia não está apenas inclusa na detecção dos fatos sociais que são utilizados como uma das bases para a criação da lei, também a aplicação desta necessita de um olhar sociológico, pois, quando o intérprete aplica a lei às partes de um dado processo, deve ter consciência das circunstâncias em que elas estão envolvidas. Ou seja, para que se tenha uma solução mais justa, é necessário que sejam conhecidas as interferências sociais inclusas ao caso. Nessa linha de pensamento, temos que:
A interpretação sociológica atende cada vez mais às consequências prováveis de um modo de entender e aplicar determinado texto; quanto possível busca uma conclusão benéfica e compatível com o bem geral e as ideias modernas de proteção aos fracos, de solidariedade humana. Faça-se justiça, porém de tal sorte que o mundo prossiga a rumo dos seus altos destinos” (MAXIMILIANO, 2008, p. 137).
Salienta-se, ademais, que não é o objetivo no nosso trabalho discorrer sobre a exceção da lei que concede majorante contra quem pratica violência doméstica e familiar a pessoa deficiente, independente do sexo (art. 129, §11, do Código Penal).
Além disso, também não nos propomos tratar das nomenclaturas ou subdivisões do gênero feminino que consistem em lésbica, transexual, travesti e transgênero, no sentido de esclarecer a aplicação ou não da Lei Maria da Penha nos casos de violência doméstica e familiar praticada contra elas. Embora não custe ressaltar que parcelas da doutrina e jurisprudência conferem aplicabilidade da lei nesses casos, desde que observadas as circunstâncias que lhe confiram a classificação em gênero feminino – analisados os casos concretos, como, por exemplo, cirurgia corretiva em pessoa hermafrodita, a qual lhe atribua o sexo feminino (DIAS, 2010).
Interessante ressaltar, por derradeiro, que em entrevista concedida ao portal G1 (OLIVEIRA, 2011), disponível em: <http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/03/aplicar-maria-da-penha-para-proteger-homem-nao-e-adequado-diz-ministra.html>. Acesso em: 5 abr. 2014, a relatora da lei na Câmara dos Deputados, Iriny Lopes, com propriedade da causa, defende que tais dispositivos normativos só abarcam proteção à mulher vítima de violência no âmbito doméstico e familiar.
Por oportuno, selecionam-se dois questionamentos dessa entrevista que demonstram a adequabilidade da lei nesses casos, tornando a mulher como exclusiva parte legítima da regra da lei.
[...] G1 – E sobre a aplicação da Lei Maria da Penha para homens, que tem ocorrido em alguns casos? Há também outra polêmica sobre aplicação para relações casuais. Qual a avaliação da senhora?
Iriny Lopes – A lei é clara, trata de gênero. Não importa se é casada, namorada, irmã, filha. E não sou contra a aplicação para homens, mas nesses casos tem a legislação comum. A Lei Maria da Penha é para ser aplicada para proteger mulheres agredidas. Os homens são amparados pela legislação comum, o próprio Código Penal dá proteção a esses homens. Não é adequada a utilização para homens. O homem quando é agredido é por outra motivação que não o fato de ser homem. A mulher é agredida pelo fato de ela ser mulher.
G1 – Mas a lei protege só a mulher porque fisicamente ela é mais fraca?
Iriny Lopes – A mulher é agredida porque historicamente foi considerado natural agredir uma mulher. É um fato cultural, histórico, que estamos nos esforçando para romper. Não há naturalidade alguma na agressão contra a mulher. O pai podia bater, o irmão, o tio. O homem podia bater, abusar sexualmente e financeiramente. A violência advém desse processo. Pela força física também, mas não exclusivamente. Se a mulher não tem força para carregar um peso ‘x’, o homem também não tem a mesma resistência que a mulher em situações como a dor, por exemplo. E não estou dizendo a dor do parto. É o fato de ir ao trabalho sofrendo doenças, por exemplo. A questão física, a natureza dá conta de equilibrar [...] (OLIVEIRA, 2011, grifo original).
Nesse sentido, é firmada, no âmbito do Poder Judiciário, a orientação para aplicar a Lei Maria da Penha exclusivamente às mulheres. É de se observar, a esse respeito, a seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (BRASIL, 2008):
[...] a Lei 11.340/2006, chamada também de Lei Maria da Penha, é uma Lei de Direitos Humanos, se constituindo em um verdadeiro Estatuto de Proteção do Gênero Feminino, não podendo, por isso, ser aplicada ao gênero masculino. Visa à proteção física e emocional das mulheres vítimas da violência doméstica, vulneráveis física e economicamente em relação aos homens [...] (TJRS, RSE nº 70042488940, 3ª Câmara Criminal, Rel. Des. Francesco Conti, DJe 17.10.2011).
Portanto, percebe-se que a referida jurisprudência é fundamentada em conformidade com o atestado de constitucionalidade conferido pelo STF à Lei Maria da Penha, de modo que indica sua aplicação exclusivamente ao gênero feminino vítima de violência doméstica e familiar.
4.2 A interpretação extensiva da lei como instrumento de criação do direito: a inclusão do gênero masculino na aplicação da Lei Maria da Penha
Tendo em vista o acervo teórico levantado no capítulo anterior, o magistrado pode escolher a moldura normativa que melhor se integre ao caso. Sob um ponto de vista dogmático, no que diz respeito à integração realizada pelo intérprete, Machado (1997, p. 74) diz que “[...] integração, finalmente, é a identificação de uma norma que, não tendo sido elaborada para casos do tipo daquele que se tem a resolver, a ele se ajusta, em face de um critério autorizado pelo legislador”.
Nesse caso, a norma identificada decorre de interpretações da Lei Maria da Penha, que soluciona demandas judiciais de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Por outro lado, embora haja a vedação de sua aplicação ao gênero masculino, esta aplicação resta justificada e fundamentada em decorrência da violência ao homem ocorrer no âmbito doméstico e familiar, ainda que o procedimento comum adotado a esse caso siga os preceitos do Código Penal.
Em breves linhas, recapitulando a ideia trazida no capítulo anterior, há a possibilidade de interpretar de diferentes maneiras que questionam se o intérprete deve levar em consideração a vontade da lei (voluntas legis) ou a vontade do legislador (voluntas legislatoris) para buscar o sentido e alcance empregado na aplicação da lei.
Para Nunes (2005) é adequado que o magistrado busque o sentido da lei para adequá-lo ao caso. Nessas circunstâncias, a própria lei em questão estabelece que ela deve ser interpretada conforme seus fins sociais – e não a vontade do legislador – (BRASIL, 2006). Inclusive, como citado no capítulo anterior, a LINDB em suas regras gerais de interpretação toma esse mesmo preceito em seu art. 5º (BRASIL, 1942).
Tal desfecho acerca da concepção de integração por Machado foi levantada neste momento, de forma proposital, para elucidar a questão que segue, qual seja, o caminhar do estudo de caso que tem como cerne a aplicação da Lei Maria da Penha para o homem, em que pese se tratar de criação da norma em decorrência de sua extensão, tendo em vista que ela foi promulgada para ser aplicada exclusivamente ao gênero feminino.
A princípio, adentrando na temática da aplicação dessa lei ao gênero masculino (criação do direito pelo magistrado), faz-se útil salientar o entendimento do que venha a ser interpretação extensiva, em respeito ao formalismo textual de compreensão lógica do tema.
A interpretação extensiva é uma das classificações adotadas pela doutrina da hermenêutica jurídica, a fim de ser um instrumento de suporte ao intérprete, auxiliando-o no caminho de raciocínio lógico de argumentos que será utilizado para fundamentar sua decisão.
Assim, entende Pinto (2011, p. 16) que o método de interpretação ao qual se busca o “resultado”, designando por interpretação “ampliativa” (tida aqui como extensiva), ocorre “quando o legislador disse menos do que queria dizer”.
A par do conceito supra referido, e da abordagem realizada acerca da teoria da moldura de Hans Kelsen explicitada no capítulo anterior, evidencia-se que os magistrados ao receberem e analisarem as circunstâncias (sejam elas peculiares ou não) de uma demanda judicial, poderão aplicar e criar o direito.
A título de exemplo, veremos, a seguir, uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que trata de um conflito negativo de jurisdição[3]. No caso em questão, a magistrada do juizado especial entendeu que caberia aplicação da Lei Maria da Penha em face da violência cometida contra um homem. Desse modo, declinou de sua competência (estabelecida pela Lei nº 9.099 de 1995), vez que, em se tratando de violência doméstica e familiar, esses juizados não podem processar e julgar causas referentes à Lei nº 11.340 de 2006.
VOTO
Cuida-se de conflito negativo de jurisdição suscitado pelo MM. Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal e do Tribunal do Júri da Comarca de Ribeirão das Neves, em face da decisão proferida pela MMª. Juíza de Direito do Juizado Especial Criminal da mesma Comarca, que declinou da competência para a Justiça Comum, sob o fundamento de que o presente feito trata de violência doméstica.
Redistribuídos os autos à Justiça Comum (f. 26v), o Ministério Púbico do Estado de Minas Gerais manifestou pela suscitação do conflito negativo de competência, para declarar compete o Juizado Especial Criminal da Comarca de Ribeirão das Neves, tendo em vista que "a Lei nº 11.340/06 tem por fim proibir e coibir a violência doméstica contra a mulher e considerando que o presente Termo Circunstanciado de Ocorrência tem por vítima um homem", a Lei Maria da Penha não pode ser aplicada (f. 28) [...] (TJMG, CNJ nº 1.0000.07.465785-9/000, Rel. Des. Fernando Starling, DJe 10.06.2008).
Perceba-se que a magistrada, por ser conhecedora da lei, sabe as hipóteses que configuram violência doméstica e familiar, e que essas devem ser procedimentalizadas pela Lei 11.340/2006 em decorrência das vítimas serem do gênero feminino. Por outro lado, quando a violência for de menor potencial ofensivo e for cometida contra o gênero masculino, deve ser procedimentalizada pela Lei 9.099/95.
Nesse caso, a intérprete é competente para julgar questões concernentes ao juizado especial, incluindo violência cometida contra homens – tal como o objeto da demanda judicial constante do conflito negativo de jurisdição.
Ocorre que ela optou por incluir aquela violência sob a proteção da Lei Maria da Penha com base na integração e interpretação extensiva, vez que o tipo de violência, embora tenha sido cometida contra o homem, aconteceu no âmbito doméstico e familiar, o que, consequentemente, é uma criação normativa (não havendo que se comparar com a criação de uma nova norma elaborada por competência do Poder Legislativo, obedecendo a um rito de elaboração específico), já que a Lei 11.340/2006 é literalmente de uso exclusivo ao gênero feminino.
Nessa perspectiva, ela (a magistrada) pode ter observado o direito ante as constantes mudanças sociais, precisando, portanto, adequar a lei às novas demandas. Desse modo, como a Lei Maria da Penha foi criada para proteger exclusivamente a mulher com observância aos fatos sociais de violência doméstica e familiar, nada obsta que, agora, haja um novo fato social que o direito deva seguir, qual seja a violência doméstica contra o homem, no seio de sua família, tornando-o parte em situação de desigualdade. Deve-se, além disso, considerar também que há casos nos quais a mulher é fisicamente mais forte do que o homem.
Corroborando com a tese da criação do direito, Dimoulis (2006, p. 80-81) entende que tal incidência criativa não deve tomar por base a “vontade” de um ou vários indivíduos, mas sim deve levar em consideração “[...] um conjunto de condutas sociais que, em determinada situação histórica e sob determinadas condições, atribuem a essa pessoa ou grupo o poder de criar direito [...]”, e isso se remete aos já mencionados “fatos sociais”, “[...] no sentido de um conjunto de condutas humanas que se relaciona a tradições, instituições, correlações de forças políticas etc”.
Por fim, no decorrer da práxis jurídica, os magistrados se deparam com questões típicas como a vagueza e ambiguidade dos textos, inexistência de regulamentação normativa específica ou dever de adequabilidade da lei às novas demandas sociais. Assim, cabem a eles interpretar da melhor forma possível, observando todas as nuances de cada caso.
5 CONCLUSÃO: aspectos valorativos do intérprete como fatores de influência na criação do direito
Nos propomos a falar da atividade de intérprete do juiz, no sentido de se ele pode “apenas” aplicar o direito, ou também criá-lo. Inicialmente, essa distinção traz a ideia de que a aplicação estaria atrelada, portanto, à representação da competência atribuída ao Poder Judiciário, em que confere autoridade jurisdicional ao magistrado para a resolução das demandas judiciais. E que essa atividade do juiz consistiria em aplicar as normas previamente estabelecidas e vigentes no ordenamento jurídico. Por outro lado, em sua forma mais literal, o ato de criar estaria vinculado a ideia de elaboração dessa norma jurídica pelo Poder Legislativo, consistindo pelo seu já mencionado rito de elaboração através do processo legislativo. Ainda, sobre esta última perspectiva, pode-se tomar outro sentido, na medida em que traz a concepção de expressar a atividade do “juiz como legislador” (entendemos que essa terminologia está tecnicamente equivocada, pois quem “legisla” de fato é o legislador, e não o magistrado), dita por Kelsen (2006, p. 277), “especialmente” dentro de um tribunal de última instância, em que:
[...] Uma decisão judicial pode ter um tal caráter de precedente quando a norma individual por ela estabelecida não é predeterminada, quanto ao seu conteúdo, por uma norma geral criada por via legislativa ou consuetudinária, ou quando essa determinação não é unívoca e, por isso, permite diferentes possibilidades de interpretação. No primeiro caso, o tribunal cria, com a sua decisão dotada de força precedente, Direito material novo; no segundo caso, a interpretação contida na decisão assume o caráter de uma norma geral. Em ambos os casos, o tribunal que cria o precedente funciona como legislador, talqualmente o órgão a que a Constituição confere poder para legislar [...] (KELSEN, 2006, p. 278).
O discurso científico do século XVIII, e principalmente XIX, foi um importante aliado para destacar essa distinção entre aplicar e criar o direito, pois a concepção de que o direito teria de se adequar aos preceitos científicos tentou trazer à teoria jurídica a ideia de que o conhecimento devia ser empregado pretensiosamente de forma objetiva. E que só desta maneira, conforme Santos (1995), é que se daria a única forma de conhecimento válido, aceitável. Desse modo, o “aplicar” estaria vinculado à postura do magistrado que o conduziria objetivamente, seguindo os limites disponibilizados pela norma jurídica vigente. Esse é, portanto, o sentido do fator objetivo empregado à pesquisa, em que direciona o intérprete juiz para dar prosseguimento ao processo, e resultando, ao final, na elaboração da sentença.
Atualmente, podemos visualizar através do pensamento de Pacheco (2012) que a distinção entre aplicar e criar direito não tem mais tanto destaque na teoria jurídica, quando comparado à influência do discurso científico no período supramencionado.
Nessa linha de pensamento, encontramos autores como Hans Kelsen e Herbert Hart, por exemplo, que entendem que o fato de o operador do direito sentenciar através da norma, consubstanciaria não só na aplicação como na criação do direito. Já em Carlos Maximiliano vemos que a ideia de criação está relacionada como um fator de possibilidade, em decorrência dos motivos já elencados, como a vagueza, ambiguidade, indeterminação do sentido das palavras contidas no texto normativo.
Assim, tendo em vista as variações linguísticas, significados múltiplos, vaguezas e ambiguidades dos textos jurídicos, cabe ao intérprete juiz dá-lhes sentido, analisando as nuances de cada caso. Aqui conseguimos observar a importância que a ideia da teoria da moldura de Hans Kelsen traz para a prática jurídica. Ela dá reconhecimento ao ato de vontade de escolha do magistrado, que, em meio a possibilidades de interpretação, atribui sentidos a enunciados normativos. Mas o uso de um ou de outro sentido não significa que existe uma única interpretação correta.
Visualizamos que, ao falar tanto da teoria da moldura de Hans Kelsen quanto da textura aberta da linguagem de Herbert Hart, ambos argumentam, como já expusemos, que o juiz exerce uma condição criadora do direito ao dar sentido ao texto e efetuar a norma (ainda que inexista disposição normativa escrita, o magistrado poderá se socorrer à equidade, costumes e princípios gerais do direito – como exemplificado no decorrer da pesquisa).
A partir dessas observações, objetivamos analisar algumas nuances que envolvem o ato de criar o direito, razão pela qual demos ao desenvolvimento da temática o sentido de que há alguns fatores subjetivos inerentes ao juiz, como suas concepções valorativas, que podem influenciar na escolha de uma norma dentre outras possíveis. Para tanto, vimos questões relacionadas aos valores éticos, morais, ideológicos e a interdisciplinaridade do direito com a psicologia, ressaltando o aspecto do consciente do intérprete juiz que, de acordo com esses valores presentes em sua consciência podem influenciá-lo na aplicação ou criação da norma jurídica (sentença).
Para desenvolver esses aspectos subjetivos do intérprete, além de questões relacionadas ao próprio sistema normativo, no sentido de considerarmos as modificações sociais como via à flexibilização das leis que dão margem às novas interpretações, utilizamos a teoria da moldura de Hans Kelsen – constante do capítulo VIII de sua obra intitulada “Teoria Pura do Direito” –, para explicar o ato de vontade do juiz que escolhe por quais disposições normativas serão empregadas na demanda judicial.
De outro modo, para corroborar com a tese que quebra o paradigma de que os juízes “apenas” podem aplicar a lei, reforçando a tese da função criadora do juiz ao elaborar a norma, tratamos especificamente da textura aberta da linguagem desenvolvida por Herbert Hart – que é retratada no capítulo VII da sua obra intitulada “O Conceito de Direito”.
Em decorrência das modificações sociais, deve ser considerado que os textos não abarcam todas as possibilidades que possam ocorrer a um dado objeto, ainda que ele seja claro. Ao falar da clareza de um texto, há de se convir que ela pode ser questionada por haver mais de uma regulamentação normativa disponível ao magistrado a ser aplicada no caso concreto. Por outro lado, ainda sobre esse quesito, o surgimento de novos fatos sociais podem prejudicar, obnubilar, obscurecer a ideia trazida por essa clareza, devendo, pois, o texto normativo se moldar às novas demandas.
Por fim, o estudo de caso proposto teve como objetivo demonstrar na prática jurídica o modo pelo qual o magistrado pode se valer da interpretação para proferir a sentença. Assim, além de várias regras jurídicas que lhe são disponibilizadas, pode ser influenciado por suas concepções valorativas que lhe nortearão na escolha do texto normativo que pensar ser mais adequado, ante outras possibilidades interpretativas para aplicar ou criar o direito.
Isso posto, acreditamos que o juiz tanto pode aplicar como criar o direito. Neste último caso, deve ser observado previamente os preceitos normativos, assim, se não estiverem claros o suficiente, o magistrado pode criar o direito, em decorrência da indeterminação do direito ou de sua textura aberta atribuída à linguagem.
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[1] Ressaltamos que o emprego do gênero masculino no decorrer da escrita não exclui o feminino (magistrado/a).
[2] Ressaltamos que não é nosso objeto de estudo explicar a nomenclatura do direito processual: legitimidade da parte, aqui mencionada.
[3] Sic. A nomenclatura adequada não é conflito negativo de jurisdição (sentido geral, lato sensu, de todo território nacional), mas sim conflito negativo de competência (sentido específico, stricto sensu, de causa em questão), ao nosso ver.