A persecução penal, no Brasil, quando houver crime de ação pública incondicionada, nortear-se-á pelos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade[1], entre outros. Isto porque o tempo verbal do núcleo de um dos tipos processuais que informam a matéria — art. 5º do CPP — é o futuro jussivo (imperativo). Diz o dispositivo: “(...) Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado (...)”[2]. Proclama também o mesmo Diploma Legal: “Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar os autos de inquérito”.
Como consequência, não tem a autoridade policial nenhuma discricionariedade na instauração do procedimento[3]. O poder exercido naquele momento é vinculado, ou seja, não se levarão em consideração aspectos de conveniência ou de oportunidade[4]. Trata-se, como se vê, de exercício de poder/dever. “Poder”, não no significado de faculdade, mas no de que somente aquela autoridade poderá praticar o ato; “dever”, no sentido de que, presentes os pressupostos, deve a instância ser instaurada; e uma vez iniciada, não mais poderá ter seu curso elidido pela mesma autoridade.
Uma das razões a inspirar o dispositivo em comento é a de que este impossibilite dúvidas em relação à lisura dos comportamentos. Se não houvesse a obrigação de instaurar o inquérito (poderia ser também o caso de termo circunstanciado, ou de procedimento para apuração de ato infracional), por parte do seu titular, quando fosse o caso, ficaria este sujeito às mais esdrúxulas especulações: ora a de que estivesse protegendo apaniguados (ou obtendo algum tipo de vantagem); ora a de estar perseguindo desafetos.
O pressuposto para a instauração do inquérito policial, como quer Flávio Meirelles Medeiros, com o que concordamos inteiramente, é a mera suspeita “de ocorrência de fato dotado de tipicidade”[5]. Nada importa constate-se, ao depois, não ter havido crime por ocorrência de causa justificante ou exculpante: a pressuposição do inquérito não é o delito, mas a mera adequação do fato — de maneira formal e material — à lei penal (tipicidade).
Nesta sede, não se demanda a existência de indícios de autoria: ainda que não se tenha idéia de quem seja o autor, deve o procedimento ser iniciado - até para que se lhe descubra a identidade. A própria existência do fato típico pode e deve, se for caso, ser posteriormente negada - na fase do relatório[6]-, por ausentes os seus demais elementos: conduta dolosa ou culposa, resultado e nexo causal (estes últimos nos crimes materiais)[7].
Obviamente, a tipicidade a que nos referimos — a qual é a única aceitável num Estado Democrático de Direito —, para além de formal (mera subsunção à descrição legal), há também de ser material, ou seja, deve haver real lesividade ao bem jurídico tutelado.
Assim, não são sequer típicas condutas como, por exemplo, a do médico, nas intervenções cirúrgicas regularmente realizadas; as lesões esportivas ocorridas no contexto do esporte; a colocação ou aplicação de brincos, piercings, tatuagens, quando consentida por pessoa capaz; a subtração de um refrigerante, por um empregado, a uma família abastada, etc.[8] É que, nesses casos, os bens jurídicos protegidos pela norma penal — a integridade física e o patrimônio — não são substancialmente agredidos. Ao último exemplo, acrescente-se a lembrança da parêmia latina que ilumina o princípio constitucional da ofensividade[9]: “de minimis non curat praetor” (o juiz não se preocupará com ninharias).
Como se vê, tais fatos estão fora do contexto que interessa ao moderno Direito Penal. Não sendo o caso, isto é, presente a tipicidade, em seus dois aspectos (formal e material), como antes dito, a inauguração da instância é impositiva.
Nada mais estapafúrdio, portanto, do que as chamadas “indagações policiais”, ocorrentes em determinadas delegacias de polícia, as quais não são sequer autuadas, não têm as páginas numeradas[10] e estão, por isso mesmo, extraoficiais: não existem no mundo jurídico. Ora, o inquérito policial já é uma investigação preliminar, por se tratar de um “procedimento administrativo pré-processual”[11], mera peça de informação, de cunho inquisitorial[12] (entendimento em relação ao qual guardamos reservas), tendente a apurar os fatos e, se for o caso, balizar eventual propositura de ação penal.
Assim, de duas uma: ou a autoridade policial entende não ser caso de persecução penal, a qual deve acontecer somente como última opção (“ultima ratio”[13]), quando houver uma agressão típica intolerável aos bens juridicamente protegidos (tipicidade formal e material), ou decide por investigar o fato. Neste caso, de forma legal, transparente e oficial.
Sobre tais procedimentos ao arrepio da lei algumas inferências podem ser feitas: 1ª) as peças da investigação não são autuadas para que, havendo solicitação de vista dos autos por parte da defesa, possa a autoridade policial sacar parte dos documentos (não existe ordem de paginação, porque não estão as folhas numeradas) e oferecer ao advogado do investigado somente o que convier (à acusação); 2ª) outra possibilidade é a de que o caráter extraoficial seja mantido até que esteja o inquérito praticamente concluído. Isso possibilitaria que o delegado viesse a “instaurá-lo” (com data anterior) e produzir o relatório de encerramento num mesmo momento, de molde que os dois procedimentos guardassem entre si, ficticiamente, o interregno legal: 10 dias, com réu preso, e 30, quando solto (art. 10 do CPP). 3ª) por fim, tal desrespeito poderia ainda dar ensejo a que se pensasse pudesse ter lugar nos distritos policiais justamente o que quis o legislador evitar: o favorecimento de protegidos e/ou a obtenção de vantagens oriundas de “acertos”.
Como se vê, nenhuma razão justifica tais condutas ilegais. Se pretende a autoridade policial cobrir o inquérito com sigilo, cumpre que o requeira ao Poder Judiciário - e não que o decrete arbitrariamente.
Ademais, a Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), no seu art. 7º, XIV, garante tenha o advogado pleno acesso aos autos, inclusive “podendo copiar peças e tomar apontamentos”[14]. A primeira e a segunda conduta das acima expostas constituem infrações administrativas, passíveis de correição; a última é crime (prevaricação - art. 319 do CP).
Assim, qualquer ocorrência pela população trazida ao distrito policial deve ser registrada para, posteriormente, ser submetida ao titular da DP, a fim de que este delibere sobre ser ou não caso de se instaurar o inquérito policial. Para ilustrar, citamos a Portaria nº 273/01, da Chefia de Polícia do RS, vigente e válida[15]: Art. 2º. Os Boletins de Comunicação de Ocorrência e documentos que aludam à notícia de fatos não criminais, após despachados pela autoridade policial, serão arquivados na secretária do órgão, na pasta/arquivo própria, em ordem de numeração interna/ano, atendendo-se fins do controle interno e externo;
Ainda: Art. 4º. Havendo notícia de infração penal, a autoridade policial, conforme a hipótese legal, determinará a imediata instauração do procedimento policial competente (Inquérito Policial, Termo Circunstanciado, Procedimento de apuração de Ato Infracional).
Em suma: qualquer procedimento gravoso[16], contra um cidadão, levado a efeito nas delegacias de polícia — mesmo a mera intimação para depor como testemunha, posto que tal fato redunda também em umgravame —, fora de um regular e convenientemente instaurado inquérito policial, é ilegal e, como tal, merece ser repudiado e conduzido ao crivo dos órgãos competentes.
Notas
[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 65.
[2] TORNAGHI, Hélio. Comentários ao Código de Processo Penal, vol. 1, tomo 1, Rio de Janeiro: Revista Forense, 1956, p. 142.
[3] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O ato administrativo de instauração do inquérito policial, in: Estudos Jurídicos em Homenagem a Manoel Pedro Pimentel, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 163.
[4] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1989, pp. 78 e 79. Diz o autor: “Assim, vinculação ou atribuição vinculada é a atuação da Administração Pública em que a lei não lhe permite qualquer margem de liberdade para decidir ou agir diante de um caso concreto. Sabe-se que se está diante de uma atribuição dessa natureza em razão do enunciado legal, consubstanciado nas expressões: será concedido, será outorgado, ou de outra da mesma índole” (sem grifo).
[5] Do Inquérito Policial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1994, p. 37.
[6] LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001, pp. 178 e ss.
[7] Sobre os componentes no fato típico: REALE JR., Miguel. Teoria do Delito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 30; COELHO, Valter. Teoria Geral do Crime. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991, pp. 31 e 32; e LUISI, Luiz. O Tipo Penal, A Teoria Finalista e a Nova Legislação Penal. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1987, p. 37.
[8] GOMES, Luiz Flávio. “Na virada do milênio, o quê herdamos e o que deixaremos para as futuras gerações nas ciências criminais”, in: www.ibccrim.org.br, 24.12.2000, referindo-se à chamada “tipicidade conglobante” (Zaffaroni).
[9]GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal. Não há Crime sem Lesão ou Perigo Concreto de Lesão ao Bem Jurídico (Nullum Crimen Sine Iniuria). Funções Político-Criminal e Dogmático-Interpretativa. O Princípio da Ofensividade como Limite para o Ius Puniendi. O Princípio da Ofensividade como Limite ao Ius Poenale. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 59.
[10]Art. 9º do CPP: “Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade.”
[11] LOPES JR., Aury. ob. citada, p. 33
[12] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001, pp. 123 e ss.
[13] GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. Introdução a seus Fundamentos Teóricos; Introdução às Bases Criminológicas da Lei 9.099/95 – Lei dos Juizados Especiais Criminais. 2ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, pp. 312 e ss.
[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n° 14: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”
[15] FERRAJOLI, Luigi. O Direito como Sistema de Garantias. In: OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades (org.). O Novo em Direito e Política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, pp. 90-91. Ver também FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón - Teoria del Garantismo Penal. Madrid: Editorial Trotta, 2001.
[16]O STF tem admitido investigações iniciais, antes da instauração do inquérito policial, especialmente nos casos de denúncias anônimas, mas com o objetivo de ampliar o espectro das garantias do cidadão – para verificar a credibilidade que se possa dar à notícia do crime -, e não para permitir que o investigado seja mero objeto da persecução e nem para que se obstaculize o exercício da defesa.