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Janelas quebradas, tolerância zero e criminalidade

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01/02/2003 às 00:00
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A Legislação e a Jurisprudência Americanas – Um pequeno apanhado

&nbsp        Nos EUA já existiam, bem antes do advento da broken windows theory e da "operação tolerância zero", leis que criminalizavam determinadas condutas que, durante muito tempo, foram vistas apenas como meros atos de desordem. A autoridade para regular e reprimir legalmente comportamentos como mendicância agressiva, embriaguez pública, o uso apropriado dos parques e ruas da cidade, reside no poder constitucional do estado em prover a saúde, a segurança e a qualidade de vida dos cidadãos.

&nbsp        Nos EUA um Estado pode delegar a uma municipalidade o poder de regular as condutas nestas áreas ou pode regular ele próprio inteiramente estas áreas. Todavia, Kelling e Coles informam que isto não tem sido fácil. Há uma razoável possibilidade de que regulamentos ou decretos municipais sejam considerados inconstitucionais, e que as municipalidades venham a ser processadas por aquelas pessoas que, eventualmente, tenham sofrido alguma restrição com base nestes regulamentos ou decretos.

&nbsp        Em verdade, o que ocorre é uma tensão ou um choque entre os direitos individuais daqueles que alegam que suas condutas supostamente desordeiras nada mais configuram do que o seu mero direito de expressão, e o direito da comunidade, para a qual os direitos individuais, por vezes, devem dar lugar aos valores comunitários, a fim de que a ordem possa ser mantida na comunidade, impedindo-se, assim, a proliferação da desordem e a ascensão da criminalidade.

&nbsp        Os que se contrapunham ao direito de se reprimir legalmente algumas condutas tidas como atos de desordem, tinham, fundamentalmente, duas restrições: a primeira era quanto à tipificação dos comportamentos, que alegavam ser vaga e imprecisa; e a segunda era de que tais leis, em verdade, não reprimiam uma conduta, mas sim uma condição (ou um status); a condição de pobre, sem-teto, viciado, etc. Tais restrições foram, eventualmente, levadas ao Judiciário americano.

&nbsp        Num primeiro momento, as tentativas de se reprimir legalmente tais comportamentos podem ser resumidas em dois tipos de leis: as "vagrancy laws" e as "loitering laws", algo que pode ser definido como "leis anti-vadiagem" e "leis contra o ato de perambular, demorar-se em um local, vagar sem destino".

&nbsp        Kelling e Coles referem dois casos fundamentais nos quais a Suprema Corte dos EUA julgou inconstitucional as "vagrancy e loitering laws".

&nbsp        O primeiro é o caso Papachristow v. City of Jacksonville, de 1972. Neste caso, oito indivíduos, entre negros e brancos, foram acusados de vagar a esmo, de carro, sem destino, perambulando pelas ruas de um bairro. Foram condenados por violarem uma lei de Jakcsonville, Florida, segundo a qual "elementos perniciosos, vagabundos, pessoas licenciosas, que perambulam de um lugar para outro, sem qualquer objetivo ou motivo legal, devem ser tidas como vadios, para efeitos legais". A Suprema Corte anulou a condenação, considerando que a lei de Jacksonville era imprecisa e vaga ao tipificar o comportamento incriminado, porque falhava na função de dar a uma pessoa de mediana inteligência uma informação razoável de que sua conduta era proibida e também porque estimulava prisões e condenações arbitrárias. A Suprema Corte também enfatizou que a lei em questão era inadmissível porque tornava criminosas condutas inocentes, tais como o simples ato de vagar ou perambular sem destino, que tinha sido, inclusive, parte da tradição americana. O resultado de um diploma legal tão impreciso seria, ainda segundo a Suprema Corte, colocar uma excessiva discricionariedade nas mãos da polícia.

&nbsp        O segundo caso é Kolender v. Lawson, de 1983. Lawson tinha sido detido ou preso pela polícia 15 vezes entre março de 1975 e janeiro de 1977, cada uma dessas vezes caminhando tarde da noite numa rua isolada próximo a uma área de alta criminalidade ou em uma área comercial onde muitos arrombamentos haviam sido cometidos. Foi acusado de acordo com uma seção da Lei Penal da Califórnia, que estabelecia:

&nbsp        "Toda pessoa que comete um dos seguintes atos é culpada de conduta desordeira, uma contravenção:.. . e) que perambula ou vagueia pelas ruas, sem razão aparente, e que se recusa a se identificar ou a prestar contas de sua conduta, quando requerido pela autoridade a fazê-lo, se as circunstâncias são tais que indicam, para uma pessoa razoável, que a segurança pública exige a sua identificação".

&nbsp        A Suprema Corte considerou a lei vaga e imprecisa diante da exigência do devido processo legal da 14 ª Emenda à Constituição por falhar ao definir a conduta criminal com suficiente precisão para que uma pessoa comum pudesse entender que sua conduta é proibida e de uma maneira que não encorajasse a arbitrariedade e a discricionariedade excessiva.

&nbsp        Como resultado destas duas decisões, a polícia e os Promotores deixaram de aplicar outras leis similares, que, não obstante não tivessem sido declaradas inconstitucionais, não eram mais aplicadas.

&nbsp        O próximo passo na busca de uma legislação que coibisse a desordem foram as "Loitering For the Purpose of Laws". Tais leis acresciam uma particular finalidade ao ato de vaguear, algo equivalente ao elemento subjetivo do tipo do direito brasileiro. Assim, o simples ato de perambular ou vagar de lugar em lugar não era tipificado. No entanto, se tal ato tivesse por finalidade um outro ato proibido pelo ordenamento jurídico, então a lei não seria inconstitucional. Um exemplo deste tipo de lei é a seção 647 (d) da Lei Penal da Califórnia conforme a qual "qualquer pessoa que esteja a vaguear próxima a um banheiro público para o fim de satisfazer sua lascívia ou para qualquer outro ato ilegal" incorre num ilícito penal. A Suprema Corte, em 1988, considerou constitucional esta lei, entendendo que a exigência do conhecimento de que determinada conduta era ilegal e a linguagem especificando o local do fato, diminuía qualquer potencial indeterminação da norma e cumpria sua função de noticiar os atos proibidos, além de evitar eventuais abusos policiais. Em outro julgamento, deste feita de uma Lei de Milwaukee (que tipificava a conduta de vaguear a ela acrescendo uma série de circunstância especiais e específicas), a Suprema Corte de Wisconsin manteve a lei da Municipalidade, e acrescentou ainda que existem áreas da conduta humana que, pela natureza dos problemas que apresentam, simplesmente tornam impossível ao legislador definir com exatidão absoluta a conduta ilícita.

&nbsp        As "Loitering For the Purpose of Laws" representaram um avanço. No entanto, segundo Kelling e Coles, nem todas as Cortes americanas aceitaram a constitucionalidade das mesmas. Ainda assim, em muitos estados americanos tais leis estão em vigor, e sendo aplicadas.

&nbsp        Mas tais leis e regulamentos também tiveram contra si a alegação de violação à primeira emenda à Constituição Americana que protege o direito de expressão [5]. Em Young v. New York City Transit Authority, em 1990, o Departamento de Trânsito de Nova Iorque foi processado porque seus regulamentos anti-mendicância no interior dos metrôs estariam violando a primeira emenda. A primeira emenda protege não apenas o mero direito de expressão verbal, mas também a conduta em que um comportamento e a expressão estão intrinsecamente ligados, de maneira a passar uma determinada mensagem. Exemplificando, a primeira emenda sustentou condutas tais como a queima da bandeira americana e passeatas em protesto contra o envolvimento dos EUA no Vietnã. Ou seja, outras formas de expressões não-verbais estão protegidas pela primeira emenda. Neste caso, o direito dos sem-teto de mendigar seria uma forma de expressão protegida pela primeira emenda. Anteriormente, a Suprema Corte havia entendido que as solicitações de fundos feitas por organizações de caridade eram uma forma de liberdade de expressão protegida pela primeira emenda, pois passaria uma mensagem sobre uma causa particular. Sem a solicitação de fundos, a mensagem ficaria muito prejudicada. Seria um dos casos em que a conduta (solicitar fundos) estaria intrinsecamente ligada à mensagem (os problemas dos necessitados). O Juiz que julgou o caso entendeu que a mendicância individual estaria protegida pela primeira emenda porque não seria possível dar a esta um tratamento diferenciado do tratamento dado às solicitações feitas por entidades de caridade. Além disso, entendeu que os interesses do Departamento de Trânsito (proteção dos usuários do metrô contra comportamentos que pudessem configurar ameaças e intimidações mediante uma mendicância agressiva) não eram suficientes para coibir o direito de mendigar dos sem-teto no metrô.

&nbsp        A decisão foi duramente criticada pela imprensa. Houve editorial que perguntou "quem é esse Juiz suburbano, que nunca usou o metrô para dizer aos Nova Iorquinos o que eles devem agüentar"?

&nbsp        No entanto, a decisão foi modificada em grau de recurso. Os juízes entenderam que o ato de mendicância não poderia ser considerado como um direito de expressão resguardado pela primeira emenda, uma vez que a imensa maioria dos indivíduos que mendiga, o fazem para coletar algum dinheiro, e não para passar alguma mensagem ao público. Se alguns sem-teto quisessem passar alguma mensagem sobre a falta de políticas públicas com relação à falta de moradia ou sobre sua própria situação, seria muito improvável que os passageiros do metrô, testemunhando aquela conduta (mendicância agressiva) pudessem concluir que o sem-teto estivesse passando uma mensagem, pelas específicas circunstâncias do metrô, que, antes, os fariam se sentir ameaçados e importunados. Prosseguindo, os juízes entenderam que os regulamentos anti-mendicância do Departamento de Polícia de Nova Iorque não se destinavam à supressão do direito de expressão no metrô, mas sim a garantir um ambiente seguro nas estações, prevenindo qualquer ato que pudesse causar intimidação ou atormentasse os passageiros. Por fim, os juízes concluíram que, mesmo se as condutas dos sem-teto no interior do metrô estivessem protegidas pela primeira emenda, a decisão de primeira instância havia pecado por ter superdimensionado o direito destes em detrimento do bem comum.

&nbsp        No entanto, a demonstrar o dissenso jurisprudencial, uma lei da Municipalidade de Nova Iorque que considerava contravenção perambular, permanecer ou vagar em local público (fora dos metrôs, em parques, ruas, etc.), para o fim de mendigar foi declarada inconstitucional por ofender a primeira emenda. O juiz entendeu que a mendicância era uma conduta e também forma de expressão que estavam intrinsecamente ligadas, e, portanto, protegidas pela primeira emenda, tal como as solicitações de fundos por entidades de caridade.

&nbsp        Não há consenso, portanto, acerca destas leis cujo principal objetivo é manter ou restaurar a ordem a fim de evitar o avanço da desordem e da criminalidade. A tendência é que o legislador aperfeiçoe cada vez mais a técnica legislativa, a fim de que a lei resista aos testes de constitucionalidade, não podendo alegar-se que é vaga ou imprecisa e tampouco que ofende a primeira emenda à Constituição. Esta tendência aponta, também, no sentido de especificação de determinados comportamentos, evitando as alegações de imprecisão que também podem levar à inconstitucionalidade. Neste sentido, estão em vigor nos EUA leis tipificando objetivamente determinados comportamentos que levam à desordem e à criminalidade, como a própria mendicância que se faz de uma maneira agressiva [6], obstrução de calçadas, embriaguez pública e vandalismo, dentre outras.


Crítica: Os Pobres e as Minorias como Alvo

&nbsp        Não obstante o extraordinário sucesso da "Operação Tolerância Zero" na diminuição da criminalidade em Nova Iorque, há veementes críticos desta política criminal.

&nbsp        Os críticos sustentam que tal política criminal oprime apenas os pobres, os necessitados e as minorias. Trata-se de evidente equívoco.

&nbsp        Keeling e Coles são claros ao afirmarem que o problema não é a condição das pessoas, mas sim o seu comportamento. O que se busca coibir é o comportamento que causa desordem e que prepara o terreno para a ascensão da criminalidade. Não importa, portanto, a condição da pessoas, mas sim sua conduta.

&nbsp        No entanto, os críticos questionam porque se preocupar com mendicância agressiva, lavagens de párabrisas não solicitadas, embriaguez pública, quando a violência anda solta nos grandes centros urbanos. Acaso estariam procurando bodes expiatórios para a violência? Helen Hershkoff, da União Americana das Liberdades Civis critica uma legislação que, tratando de maneira equivocada o problema da pobreza, termina por proibir que os necessitados simplesmente peçam dinheiro. [7]

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&nbsp        Kelling e Coles identificam nas alegações de que o objetivo de manter a ordem nada mais significaria do que uma forma de opressão aos pobres e às minorias o resultado de décadas do crescimento de um individualismo sem limites. Produtos deste crescimento seriam a primazia do indivíduo e o seu direito de ser diferente; uma ênfase nas necessidades e direitos individuais e a crença de que tais direitos seriam absolutos; uma rejeição a uma moralidade média dos cidadãos americanos; e, por fim, a noção de que considerar indivíduos como criminosos os estigmatizaria e os tornaria realmente criminosos.

&nbsp        Na arena judicial as cortes americanas desenvolveram um corpo de precedentes legais nos quais a proteção aos direitos fundamentais e liberdades individuais expandiram-se e foram elevados a posições muito acima de suas respectivas responsabilidades ou dos interesses da comunidade. Sendo mais claro: a conduta de um indivíduo causador de desordem numa comunidade devia ser protegida porque, em última análise, ele tem direito a ser diferente, e sua liberdade de ser diferente deve ser protegida pelo judiciário. Os interesses da comunidade não podem sobrepor-se aos direitos e liberdades individuais de uma pessoa. A desordem cresceu, se expandiu e foi tolerada porque virtualmente todas as formas de desvios comportamentais não claramente violentos foram considerados sinônimos de expressão individual, e, como tal, supostamente protegidas pela primeira emenda.

&nbsp        No entanto, Kelling e Coles afirmam que a demanda por ordem permeia todas as classes sociais e grupos étnicos. Quando os usuários do metrô exigiram a restauração da ordem nas estações subterrâneas não eram os banqueiros ou os tubarões de Wall Street que estavam reclamando. Estes, afinal, tinham outras alternativas. Foram os trabalhadores, principais usuários do sistema, que exigiram a restauração da ordem e da segurança.

&nbsp        Os que advogam a restauração da ordem não estão propondo alguma forma de tirania da maioria. Referem-se, isto sim, a comportamentos que violam padrões de comportamento largamente aceitos por uma comunidade, e sobre os quais há um consenso, sem qualquer conotação racial, étnica ou de classes.

&nbsp        Além disso, a desordem tem conseqüências mais graves em comunidades pobres e, portanto, estas são justamente as que mais precisam de ordem a fim de evitar o aumento da criminalidade. Uma comunidade rica tem certas condições de manter um estado de ordem que uma comunidade pobre não tem, como, por exemplo, a contratação de segurança privada. É muito mais fácil consertar uma janela quebrada em uma comunidade rica do que em uma comunidade pobre. Portanto, antes de oprimir os pobres e minorias, a restauração e manutenção da ordem, em verdade, vêm em seu auxílio. Relembre-se da pesquisa de Wesley Skogan, referida no início deste estudo, e que concluiu que a relação de causalidade entre desordem e criminalidade era mais forte do que a relação entre criminalidade e outras características encontradas em determinadas comunidades, tais como a pobreza ou o fato de a comunidade abrigar uma minoria racial. Para o controle da criminalidade nestas comunidades, portanto, a restauração da ordem é imprescindível. Pobreza não deve necessariamente significar crime e desordem.

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Sobre o autor
Daniel Sperb Rubin

promotor de Justiça em Porto Alegre (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUBIN, Daniel Sperb. Janelas quebradas, tolerância zero e criminalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3730. Acesso em: 28 mar. 2024.

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