Das medidas anticorrupção propostas pelo Ministério Público Federal

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O denominado "Teste de Integridade" proposto pelo Ministério Público para combater a corrupção é inconstitucional em várias frentes, não podendo ser adotado num Estado Democrático de Direito que pretenda evitar o totalitarismo.

 

“Hoje em dia, costuma-se concentrar a atenção na democracia, julgando-a o principal valor que está sendo ameaçado. Isso, porém, não deixa de ser perigoso. De fato, essa ênfase desmedida no valor da democracia é responsável pela crença ilusória e infundada de que, enquanto a vontade da maioria for a fonte suprema do poder, este não poderá ser arbitrário. A falsa segurança que tal crença infunde em muita gente contribui sobremodo para a geral falta de consciência dos perigos que nos ameaçam.

É injustificado supor que, enquanto o poder for conferido pelo processo democrático, ele não poderá ser arbitrário. Essa afirmação pressupõe uma falsa relação de causa e efeito: não é a fonte do poder, mas a limitação do poder, que impede que ele seja arbitrário. O controle democrático pode impedir que o poder se torne arbitrário, mas a sua mera existência não assegura isso. Se uma democracia decide empreender um programa que implique necessariamente o uso de um poder não pautado por normas fixas, este se tornará um poder arbitrário.” (g.n.) (Hayek, Friedrich Von in O caminho da servidão, Tradução de Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro, Editora Vide Editorial, 2013, pág. 104)

                   No calor do momento sociopolítico atual (março de 2015), o Ministério Público propôs um pacote de medidas ao Congresso Nacional, com o objetivo declarado de combater a corrupção. Não se pretende, neste breve trabalho, esmiuçar todas as medidas propostas. Pretende-se modestamente destacar apenas uma delas, para analisar em apertada síntese sua juridicidade.

                    Nem se objetiva, com este breve estudo, desmerecer o esforço ou atacar as boas intenções de quem defende (ou de quem propôs) o pacote anticorrupção mencionado. A corrupção é um grave problema, e o Estado deve mobilizar seus recursos para combatê-la. No entanto, é necessário refletir sobre cada ação adotada para combater a corrupção, pois a defesa da liberdade ou, em outras palavras, o combate ao totalitarismo pressupõe a fiscalização constante dos atos estatais, que não podem ser arbitrários ou desproporcionais.

                   Por isto, este trabalho começou com a citação de Hayek. Para combater o totalitarismo, não nos é suficiente a democracia. Não nos é suficiente um governo civil eleito periodicamente. É necessário ainda prevenir-se contra a configuração de um Estado Totalitário, ou seja, de um Estado que, embora democraticamente delineado, confere aos agentes públicos poderes arbitrários.

                   Mesmo numa democracia, é indispensável severa vigilância, de forma a evitar normas que permitam que os agentes estatais atuem em contradição com os próprios princípios éticos norteadores do Estado Democrático de Direito. É preciso, enfim, não sufocar a liberdade individual conferindo-se poderes excessivos ao Estado, através de disposições legais que permitam que ele (Estado) transgrida as normas estabelecidas quando entender necessário, ainda que debaixo dos mais nobres pretextos.

                   Feitos estes esclarecimentos, passa-se (sem a menor pretensão de exaustividade) a sucintamente demonstrar a injuridicidade do denominado “Teste de Integridade” do servidor público.

                    Pelo que se pôde depreender das notícias nos jornais, no pacote de medidas propostas pelo Ministério Público para se combater a corrupção, está incluída a possibilidade de o Estado “simular” propostas criminosas para testar a honestidade de servidores públicos. Ora, tal medida fere, antes de tudo, o Estado Democrático de Direito, princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, caput, da Constituição da República). Isto porque uma das vigas mestras do Estado Democrático de Direito reside na segurança jurídica, que tem como subprincípios a boa-fé da ação estatal e na proteção da confiança do administrado. Confira-se, neste sentido, lição de Almiro de Couto e Silva:

Um dos temas mais fascinantes do Direito Público neste século é o do crescimento e importância do princípio da segurança jurídica, entendido como princípio da boa-fé dos administrados ou da proteção da confiança.  A ele está visceralmente ligada a exigência de maior estabilidade das situações jurídicas, mesmo daquelas que na origem apresentam vícios de ilegalidade.  A segurança jurídica é geralmente caracterizada como uma das vigas mestras do Estado de DireitoÉ ela, ao lado da legalidade, um dos sub-princípios integradores do próprio conceito do Estado de Direito”. (g.n.) (Couto e Silva, Almiro in “A prescrição qüinqüenária da pretensão anulatória da Administração Pública com relação a seus atos administrativos. Rio de Janeiro: Renovar, Revista de Direito Administrativo, vol. 204, 1996, pág. 24)

                   Por sua vez, o eminente publicista luso GOMES CANOTILHO, após afiançar que “desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito”, ensina:

A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos de seus próprios actos.  Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder”. (g.n.) (José Joaquim Gomes Canotilho. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed., Coimbra: Almedina, p. 252).

                   Ora, um Estado que se permite vestir a “fantasia de corruptor”, um Estado que faz uma proposta indecorosa a um de seus servidores com a reserva mental de realizar um “Teste de Integridade”, não é definitivamente um Estado que age de boa-fé, ou que proteja a confiança legítima que os administrados depositam em seus atos. Não é um Estado transparente, mas sim um Estado Mentiroso. É um Estado que não passa no filtro constitucional do Estado Democrático de Direito, por desrespeitar os postulados da segurança jurídica, da boa-fé e da proteção da confiança legítima dos administrados.

                    Por outro lado, como é cediço, o princípio da moralidade é um princípios norteadores da Administração Pública no Brasil (art. 37, caput, da Constituição da República). “O princípio da moralidade exige que o administrador se paute por conceitos éticos....O direito condena condutas dissociadas dos valores jurídicos e morais. Por isso, mesmo quando não há disciplina legal, é vedado ao administrador conduzir-se de modo ofensivo à ética e a moral.” (g.n.) (Carvalho Filho, José dos Santos in Manual de Direito Administrativo, Lumen Juris Editora, 23ª edição, 2ª tiragem, pág. 264).

                   Logo, sob a ótica constitucional, não pode o agente estatal praticar o denominado “Teste de Integridade” com um servidor público, visto que a prática de tal teste pressupõe necessariamente que o referido agente faça uma proposta criminosa, imoral, aética, ao servidor público testado. O “Teste de Integridade” confere um salvo-conduto para que a autoridade estatal descumpra o princípio da moralidade no seu núcleo essencial, o que não é constitucionalmente viável.

                     Ademais, o “Teste de Integridade” fere outro princípio fundamental da República Federativa no Brasil no seu núcleo essencial, a saber, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso IV, da Constituição da República). Isto porque o servidor público que recebe uma proposta indecorosa num "Teste de Integridade", na verdade, está sofrendo um feroz assédio moral por parte da Administração Pública, o que não se pode tolerar.

                   O servidor público decente, não psicopata nem desonesto (ou seja, a grande maioria), sente-se aviltado em sua honra, menosprezado em sua dignidade com qualquer proposta indecorosa que lhe seja dirigida. A situação também traz angústias ao servidor público que, dependendo do caso, poderá até temer eventuais retaliações por parte de quem fez a proposta, na hipótese de recusa. 

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                   O servidor público, enfim, não pode ser submetido a uma situação de estresse, e não pode ser degradada a sua condição humana para consecução dos fins de um Estado que se permite mentir e enganar no exercício de suas atividades. “O outro parâmetro fundamental para solucionar esse tipo de colisão é o princípio da dignidade humana. Como se sabe, a dimensão mais nuclear desse princípio se sintetiza na máxima kantiana segundo a qual cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo. Esta máxima, de corte antiutilitarista, pretende evitar que o ser humano seja reduzido à condição de meio para a realização de metas coletivas ou de outras metas individuais. Assim, se determinada política representa a concretização de importante meta coletiva (como a garantia da segurança pública ou da saúde pública, por exemplo), mas implica a violação da dignidade humana de uma só pessoa, tal política deve ser preterida, como há muito reconhecem os publicistas comprometidos com o Estado de Direito.” (g.n.) (Barroso, Luis Roberto in Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público, Organizador Daniel Sarmento, vários autores, Editora Lumen Juris, 2005, pág. XVII).

                   Prosseguindo, registre-se que o “Teste de Integridade” não passa no tríplice filtro do princípio da razoabilidade[1] ou proporcionalidade (adequação, necessidade, proporcionalidade em sentido estrito). Senão vejamos.

                   A medida (“Teste da Integridade”) não é adequada para se combater a corrupção, ou seja, não é meio idôneo para se aferir a honestidade de servidor público. Um servidor pode muito bem recusar uma proposta de suborno numa ocasião e, no entanto, aceitar depois outra mais atraente. A honestidade é posta a prova no dia a dia, e não apenas num momento específico, sob circunstâncias que não se repetirão da mesma forma. Logo, o teste em questão não afere, com a segurança necessária, a idoneidade do servidor.

                   A medida também não é adequada para combater a corrupção se ela partir da própria cúpula do Estado (ou da entidade na qual se pratica a corrupção), que poderá inclusive utilizar-se do álibi do “Teste de Integridade” para justificar seus malfeitos, perpetuando-se assim os corruptos no Poder.

                   A medida não é necessária, visto que a corrupção pode ser combatida por outros meios juridicamente hábeis (o Estado dispõe de vasto arsenal de meios para combater a corrupção, que inclui até mesmo a quebra do sigilo bancário, a interceptação telefônica, a delação premiada, dentre outros), sendo desnecessário o recurso a tão drástica medida, que avilta a dignidade tanto do servidor testado como a do que servidor que testa o outro (que teria que ser desleal, e agir desonestamente no exercício de seus misteres).

                   O “Teste de Integridade” não passa também no filtro da proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que traz mais danos do que benefícios à sociedade. O referido teste, como sobredito, apenas seria legítimo num Estado que é (ou caminha para ser) Totalitário, inimigo da transparência, da liberdade e da dignidade humana. O Estado, enfim, não pode se utilizar de métodos indecorosos, como os mencionados por George Orwell no famoso livro “1984”. 

                   Por estas resumidas razões, como conclusão deste rascunho de ideias, tem-se como inconstitucional e juridicamente inviável o mencionado “Teste de Integridade” do servidor público.  


[1] “"Abrindo o debate, deixo expresso que a Constituição de 1988 consagra o devido processo legal nos seus dois aspectos, substantivo e processual, nos incisos LIV e LV do art. 5º, respectivamente. (...) Due process of law, com conteúdo substantivo –substantive due process – constitui limite ao Legislativo, no sentido de que as leis devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality), devem guardar, segundo W. Holmes, um real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir. Paralelamente, due process of law, com caráter processual – procedural due process – garante às pessoas um procedimento judicial justo, com direito de defesa." (ADI 1.511-MC, voto do Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 16-10-1996, Plenário, DJ de 6-6-2003.).”

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Sobre o autor
Paulo Gustavo Loureiro Ouricuri

Advogado, Sócio fundador do escritório Camargo, Moreira e Ouricuri Advogados, pós-graduado em Direito da Economia e da Empresa pela FGV/RJ

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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