Introdução à filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer

23/03/2015 às 15:11
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Este texto é uma resenha do livro “Filosofia das formas simbólicas – A linguagem”, do filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945), um dos maiores representantes da Escola de Marburgo, de inspiração neokantiana.

INTRODUÇÃO

O filósofo Ernst Cassirer nasceu em Breslau, na Alemanha, em 28 de julho de 1874, e estudou direito, filologia, literatura, filosofia e matemática, em Berlim e Marburgo. Tido como um dos grandes nomes do movimento neokantista, foi professor da Universidade de Berlim, de 1906 a 1919, daí, atuou na Universidade de Hamburgo, tornando-se reitor em 1930. Porém, com a ascensão de Adolf Hitler e dos nazistas ao poder, renunciou ao cargo deixou sua pátria em 1933, exilando-se na Inglaterra, na Suécia e, enfim, nos Estados Unidos. Já neste país, lecionou na Universidade de Yale e Colúmbia, até sua morte, em 13 de abril de 1945.

Seus principais livros foram: “O sistema de Leibniz em seus fundamentos científicos”; “O idealismo crítico e a filosofia do entendimento humano”; “Conceito de substância e conceito de função”; “Vida e doutrina de Kant”; “Para a crítica da teoria einsteiniana da relatividade”; “Idéia e forma”; “Filosofia das formas simbólicas”; “Mito e linguagem”; “Indivíduo e cosmos na filosofia do Renascimento”.

Cassirer faz parte da chamada Escola de Marburgo, que também tem como principais representantes Hermann Cohen (1854-1918), seu mentor, e Paul Natorp (1854-1924). Os autores desta escola têm como marca um retorno às idéias de Kant, nas áreas da filosofia da ciência e da teoria do conhecimento. (DUROZOI, 1996: 21) Os teóricos de Marburgo embrenham-se principalmente nas ciências exatas da natureza e da matemática, mas neste ponto, Cassirer possui certa afinidade com a também neokantista Escola de Baden[1], pois se dedica, em certo ponto de sua carreira, a pesquisar assuntos histórico-culturais.

I - FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBÓLICAS

Nesta investigação sobre o papel da cultura e a própria definição de homem, Cassirer escreveu “Filosofia das formas simbólicas”, em três volumes, cada um dedicado a um aspecto ou formas simbolizantes que considerou as mais importantes: a linguagem, o mito e a arte. Neste texto, falar-se-á, do primeiro volume, dedicado à linguagem, editado no Brasil pela Editora Martins Fontes, com tradução de Marion Fleischer. Uma espécie de síntese de “Filosofia das formas simbólicas” pode ser lida em “Ensaio sobre o homem”, também editado pela Martins Fontes.

Cassirer tenta, nesta obra, utilizar-se das observações de Kant sobre a epistemologia das ciências naturais, para, então, ampliá-las ao campo das ciências do espírito[2], mais particularmente na área da cultura e suas principais manifestações, que seriam, na verdade, cada qual um aspecto da realidade, que desencadeiam uma “transformação das impressões sensíveis em um mundo de pura expressão espiritual”.[3]

“Filosofia das formas simbólicas – a linguagem” inicia-se com uma constatação: “O ponto de partida da especulação filosófica é marcada pelo conceito de ser.”[4] Deve-se, portanto, delimitar os “fundamentos últimos de cada ser”, ou seja, dar-lhe uma posição quanto ao começo.  Porém, a resposta não está ao nível de responder a questão, apesar do correto encadeamento, pois “aquilo que se denomina de essência, de substância do mundo, em vez de transcendê-lo basicamente, constitui apenas um fragmento deste mesmo mundo.”[5]

Para o alemão, o “ser” e o “objeto” da ciência revelam em si mesmos novos aspectos, conforme haja um novo enfoque. O “ser” não é mais rígido, porém, fluído, o que lhe permite diluir-se numa generalização de movimentos. Daí, a unidade do ser não é a gênese do movimento, mas a meta a ser atingida. (CASSIRER, 2001: 14)

O objeto existe somente como função da consciência, assegura o filósofo. A forma e o conteúdo se condicionam mutuamente, na produção do saber, adiantando-se e determinando toda unidade objetiva. Desta forma, o objeto seria nada menos que a evidência material da realização do espírito.[6] Não há contraposição inicial entre o ser “subjetivo” e “objetivo”, como se fossem mundos totalmente distintos quanto ao conteúdo. Só ocorre a determinação quando há o processo de conhecimento: os conteúdos do ser “subjetivo” e o ser “objetivo” limitam-se, um ao outro, de acordo com o nível de conhecimento adquirido. (CASSIRER, 2001: 38)

II - DIMENSÃO ESPIRITUAL DA LINGUAGEM

            Devido ao caráter espiritualizante, desencadeado principalmente pela influência do romantismo de Herder nos estudos da linguagem,  não se fala mais em percepções naturais como apenas um sistema artificial de signos. A reflexão, tal como o grito de Eureka!, inventa consigo a linguagem humana, que seria, nesta acepção, produto da sensação imediata, algo que integra, desde o primeiro momento, o conteúdo, conferindo-lhe uma dimensão espiritual àquilo que seria apenas um simples estímulo sensorial. Cassirer diz, então, que a linguagem faz parte da estruturação sintética da consciência, pelo mundo da intuição (anteriormente somente um mundo de percepções sensoriais), constituindo, não algo produzido, mas “uma maneira específica do espírito na sua atividade de criar e formar”.[7]

A separação entre o conteúdo anímico e a expressão sensorial da linguagem é apenas aparente. Na verdade, o conteúdo anímico não subsiste sem a expressão sensorial, e vice-versa, não sendo – um com relação ao outro – autônomos ou mesmo auto-suficientes. Ambos completam-se como uma condição necessária de existência, tão-somente porque só ocorrem devido a sua “interpenetração recíproca”. (CASSIRER, 2001: 175). A linguagem, diz Cassirer (2001), situa-se num foco do ser espiritual, que é aglutinador variados tipos de radiações – de origens diversas -, a partir do qual se desenham diretrizes para todas as esferas do espírito, devendo, ademais, ser considerada como “uma energia verdadeiramente autônoma e original do espírito”.[8] Ela, ao se integrar com todas estas formas, não pode, entretanto, ser coincidente com “qualquer outra parte constitutiva da totalidade”[9], caso assim o fosse, não poderia pleitear sua autonomia, com propriedade e especificidade.

III – CRÍTICA AO POSITIVISMO

            O autor nega o enquadramento num esquema eminentemente mecanicista da linguagem, tal como propõem os positivistas, pois – embora ainda inclusa nos processos da natureza -, a mesma é parte integrante de algo mais amplo: a natureza “psicofísica” do homem. Citando Wundt, Cassirer assevera que a linguagem “não deve ser vista como um agregado de elementos heterogêneos, e sim como expressão da ´totalidade´ do seu ser espiritual e natural; ao mesmo tempo, porém, evidencia-se que esta exigência, naquilo que aqui é chamado de unidade da ´natureza psicobiofísica´ do homem, por ora se encontra apenas vagamente definida e insuficientemente atendida.”[10]

Tentar relacionar lingüística com ciências naturais – com transposição quase literal de modelos desta para aquela – foi, para Cassirer, um equívoco metodológico, um “andar em círculos”. Havia um interesse em comparar ambas, para que se pudesse extrair e aplicar leis exatas para explicar, ou até mesmo controlar, as manifestações da linguagem. Porém, esta unidade era aparente, já que este esquema, cuja missão era fornecer uma base sólida para a lingüística, continha em si várias contradições que ansiavam por novas explicações filosóficas. Ao buscar uma solidez, a exemplo das ciências naturais, verifica-se que o esquema positivista da lingüística não poderia ser aplicado rigorosamente nos estudos da linguagem. (CASSIRER, 2001: 169)

IV – TEMPO E ESPAÇO

Para Kant, a designação lingüística e a determinação lógica dos conceitos  servem-se da assertiva de que, se desprovidos de intuições, os conceitos são vazios, cita Cassirer (2001). Não há, desta forma, delimitação absoluta entre a esfera do “sentido” da esfera da “sensibilidade”, pois permanecem entrelaçadas. Na linguagem, por exemplo, situa-se uma réplica do processo de transposição do “mundo da sensação para o da intuição pura”, que é, aliás, ferramenta imprescindível “na estruturação do conhecimento”. “(...) na estrutura das ´formas de intuição´ que primeiramente se manifestam o tipo e orientação da síntese espiritual que opera na linguagem (...) através da veiculação das intuições de espaço, tempo e número que a linguagem pode realizar sua função essencialmente lógica: a de transformar impressões em representações.” [11]

A noção de espaço, de situar-se num lugar, para dar vazão e ponto de partida para suas atividades também se apresenta na linguagem, principalmente como metáfora de determinações espirituais, para explicar movimento ou posições, argumenta Cassirer (2001).

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As relações temporais, por outro lado, já constituem assunto mais complexo que as determinações e designações espaciais. O passado e o futuro são dimensões fundamentalmente humanas, praticamente ignoradas por outros animais. As unidades temporais – agora, antes e depois – parecem excluir-se, ao contrário da intuição espacial (na qual as partes se unem). Ou seja, o agora existe com a exclusão do antes e do depois; o antes, com exclusão do agora e do depois; e o depois, com exclusão do antes e do agora. Sobre o conteúdo da representação do tempo, pode-se dizer que está embutido num contexto maior que a representação espacial (intuição imediata), porque demanda um raciocínio unificador e separativo, que seja tanto analítico quanto sintético (CASSIRER, 2001: 237-238)

V – O ANIMAL SIMBÓLICO

            Tomando-se a linguagem como “conteúdo total do espírito”, automaticamente se entende que ela está entre o mito e o logos o que também configura uma “intermediação entre a visão teórica e estética do mundo”.[12] A linguagem, ademais, não é somente resultado teórico (comparação lógica e associação dos conteúdos da percepção), pois é composta adicionalmente por elementos imaginativos. (CASSIRER, 2001: 378-379) Mesmo impregnada com o mundo sensível e imagístico, a linguagem dirige-se rumo a uma espiritualidade cada vez mais pura e independente da sua forma, por meio da sua “tendência e capacidade para generalização lógica”.[13]

O conjunto das formas simbólicas, segundo Cassirer, é uma maneira de o homem se autolibertar, num processo progressivo de compreensão da cultura, pelo mito, pela linguagem, pela estética ou pela ciência. O ser humano, por sua capacidade simbolizante, distingue-se dos demais animais, porque edifica um mundo próprio a partir da criação de símbolos, a principal atividade humana, não podendo viver sem expressá-los. Uma vez dentro, ele não pode negar este mundo ideal que lhe propicia uma unidade fundamental na qual todas funções são complementares e interdependentes. O homem é um animal simbólico, que constrói sua existência pelas conjugações do “sensível” e do “intelectual”, expressas nas manifestações culturais, para atingir, por meio delas, sua tão almejada liberdade.

BIBLIOGRAFIA

CASSIRER, Ernest. Linguagem e mito – uma contribuição ao problema dos nomes dos deuses. Traduzido por J. Guinsburg e Miriam Schnaiderman. 1. ed. São Paulo (SP): Editora Perspectiva, 1972. Tradução de Sprach und mythos – ein beitrag zum problem der goetternamen.

____. Filosofia das formas simbólicas I – a linguagem. Traduzido por Marion Fleischer. 1. ed. São Paulo (SP): Martins Fontes, 2001.Título original: Philosophie der symbolischen formen – die sprache.

DUROZOI, Gerard e ROUSSEL, André. Dicionário de Filosofia. Traduzido por Marina Appenzeller. 2. ed. Campinas (SP): Papirus, 1996, p. 21. Título original: Dictionnaire de philosophie.

FIGUEIREDO, Vinícius. O animal simbólico – uma compreensão filosófica da cultura. Folha de S. Paulo, Jornal de resenhas, 8 de setembro de 2001, p. 7.

[1] Os grupos neokantianos mais importantes são a Escola de Marburgo e a Escola de Baden. Esta, de forma geral, baseou seus interesses nas ciências culturais, históricas e na teoria dos valores. Seus principais representantes foram Wilhelm Windelband e Heinrich Rickert. Cf. CASSIRER, Ernest, Linguagem e mito, pp. 10-11.

[2] FIGUEIREDO, Vinícius, O animal simbólico – uma compreensão filosófica da cultura. Folha de S. Paulo, 8.09.2001, p. 7.

[3] Idem, ibidem.

[4] CASSIRER, Ernest, Filosofia das formas simbólicas, p. 11.

[5] Idem, ibidem.

[6] FIGUEIREDO, Vinícius, op.  cit.

[7] CASSIRER, Ernest, op.  cit., p. 136.

[8] Idem, ibidem, p. 172.

[9] Idem, ibidem.

[10] Idem, ibidem, pp. 167-168.

[11] Idem, ibidem, p. 208.

[12] Idem, ibidem, p. 379.

[13] Idem, ibidem, p. 387.

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Sobre o autor
Roger Yabiku

Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Professor do CEUNSP e da Faculdade de São Roque - UNIESP. Advogado militante no escritório Badaró e Yabiku Advogados Associados (www.labwy.com.br)

Informações sobre o texto

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