6. POSSIBILIDADE DE EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS PELOS MUNICÍPIOS
Embora entendimento de cátedras de escol, como v.g., Michel Temer [36], Manoel Gonçalves Ferreira Filho [37] e José Afonso da Silva [38] no sentido da impossibilidade de Estados e Municípios editarem medidas provisórias [39], os argumentos até agora arrolados conduzem a juízo outro.
Conforme visto anteriormente, o art. 200 da Carta de 1967 proibia expressamente a adoção do decreto-lei pelos Estados-membros e, conseqüentemente, pelos Municípios. Já no que tange às medidas provisórias, a Carta atual não produz idêntica vedação, verificando-se assim uma lacuna, uma deficiência ocasional do legislador constituinte, e, não um silêncio propositado do qual alguns interpretam restritivamente. Ronaldo Poletti [40] entende que se a Constituição não proíbe expressamente, a interpretação há de ser extensiva e não restritiva. [41]
Ao dispor que "o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias" [42] o legislador constituinte também deu a faculdade para esta adoção também no âmbito municipal, o que não poderia ser diferente, à luz de um importante princípio – o da Federação.
Tal assertiva em nada enfraquece o princípio da separação dos Poderes, já que a competência para legislar permanece com o Legislativo. Se o Presidente da República pode adotar medidas provisórias sem afetar a democracia e a separação dos poderes, igualmente poderão fazê-lo os Prefeitos Municipais.
Roque Carrazza também não observa nenhum óbice, entendendo de forma direta que:
Nada impede que, exercitando seus poderes constituintes decorrentes, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal prevejam a edição de medidas provisórias, respectivamente, estaduais, municipais e distritais. A elas, mutatis mutandis, devem ser aplicados os princípios e limitações que cercam as medidas provisórias federais. [43]
Tem-se assim que a possibilidade de edição de medida provisória vai depender apenas do que disserem as Leis Orgânicas Municipais [44], não sendo auto-aplicável pelos Municípios o art. 62 da CF, dado o seu caráter excepcional.
O Município poderá adotar o instituto da medida provisória, desde que sua Lei Orgânica Municipal contenha tal previsão, independentemente do que dispõe a Constituição Estadual respectiva [45], face a autonomia municipal conferida pela CF, caso contrário, verificar-se-ia um achegamento, omissivo ou comissivo, do legislador constituinte estadual na esfera municipal, ofendendo o princípio republicano e o pacto federativo.
Pensamento diferente levaria ao absurdo de que se uma Carta Estadual não trouxesse a previsão de emendas à Constituição, os Municípios desse Estado também não poderiam emendar sua LOM, impossibilitando sua oxigenação num Estado contemporâneo que reclama dinamismo.
Marco Aurélio Greco responde claramente a questão quanto à possibilidade de edição de MP por governadores e prefeitos da seguinte forma:
A meu ver, esta questão deverá ser solucionada pelas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais. Se estas contiverem previsão expressa com os contornos da CF, em princípio, cabe a criação da figura. [46]
Advoga-se aqui então a faculdade de o prefeito utilizar-se da medida provisória, observando os mesmos pressupostos e restrições impostas à União, em vista também do princípio da simetria, segundo o qual aplicam-se aos demais entes da federação as mesmas regras previstas na Constituição para a União, salvo disposição expressa em contrário. [47]
7. CONCLUSÃO
É hora de renovar a abordagem ao princípio da separação de Poderes já que o Estado Contemporâneo reclama dinamismo diante do crescimento das demandas políticas, sociais e econômicas, não se podendo ignorar a necessidade de uma legislação de emergência, inclusive no âmbito municipal.
O Poder Executivo funcionando como legislador é um fenômeno generalizado, sendo a medida provisória uma alternativa que a atual Carta oferece à competência legislativa de urgência, acompanhando assim a evolução do direito constitucional.
A medida provisória não é incompatível com os postulados do Estado Democrático de Direito e da separação dos poderes, e podem dela fazer uso os Estados-membros e os Municípios, em que pese a opinião dos que pensam de modo diferente.
Dessa forma, deve-se reconhecer como oportuna a possibilidade de edição de medidas provisórias pelos municípios, pois que aí também podem ocorrer situações revestidas de relevância e urgência que necessite ser disciplinada pelo Chefe do Executivo por não poder aguardar a realização de um processo legislativo. Esta é a providência que integra a autonomia municipal, a qual deve ser respeitada e incentivada, sob pena de proporcionar um desequilíbrio em nossa Federação.
Inolvidável que caso um município resolva adotar as medidas provisórias, indispensável, somente, a previsão em sua Lei Orgânica Municipal e a observância dos contornos estabelecidos pela Constituição Federal.
Destaca-se alfim que embora haja permissivo para que todos os entes da Federação utilizem a medida provisória, inclusive os Municípios, não é aconselhável que o façam, pois é sabido que o Chefe do Executivo Federal com a utilização ampla e irrestrita deste instituto vem provocando disfunção sistêmica na tripartição dos poderes, e, por conseguinte, na CF, num procedimento visivelmente abusivo, o que também poderá ocorrer nos demais entes federados.
NOTAS
01. O art. 77 da Constituição italiana prevê os chamados decreti-legge in casi straordinarí di necessità e d’urgenza (decretos-lei em casos extraordinários de necessidade e urgência), prevendo que em caso extraordinário de necessidade e urgência, o Governo adotará, sob sua responsabilidade, providências provisórias com força de lei.
02. As críticas a EC 32/2001, bem como aos abusos verificados na utilização das medidas provisórias merecem um tratamento específico que não será dado nesse trabalho.
03. "Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I – emendas à Constituição; II – leis complementares; III – leis ordinárias; IV – leis delegadas; V – medidas provisórias; VI – decretos legislativos; Resoluções." (grifo nosso). Cf.: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo, 4ª ed. atual., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 235.
04. Redação original. A EC 32, de 11 de setembro de 2001, conferiu ao dispositivo a seguinte redação: "Art. 62. Em casos de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional."
05. BONAVIDES, Paulo. Ciência política, 10ª ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 146.
06. Adaptação do "checks and balances" do direito norte-americano.
07. Paulo Bonavides, ob. cit., p. 147.
08. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ob. cit., p.114-115.
09. CLÈVE, Clèmerson Merlim. Medidas provisórias. 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 159.
10. Como "substituta" do Decreto-lei.
11. RAMOS, Carlos Roberto. Da medida provisória. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 1995, p. 17.
12. GRECO, Marco Aurélio. Medidas provisórias. São Paulo: RT, 1991, p.11.
13. Ibid., p 13.
14. Carlos Roberto Ramos, ob. cit., p. 19.
15. A medida provisória, como o decreto-lei, inspira-se no Direito italiano, nas ordinanze di necessita.
16. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ob. cit., p. 14.
17. RAMOS, J. Saulo. Medidas provisórias, Parecer nº SR-92, de 21.06.89, da Consultoria Geral da República. Brasília: Diário Oficial da União, 23.06.89, p. 4.
18. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11ª ed. rev. atual. e amp., São Paulo: Malheiros, p. 311.
19. Art. 18, caput da CF.
20. Arts. 18, 29 e 30 da CF.
21. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 592.
22. FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Controle da constitucionalidade das leis municipais, 2ª ed., São Paulo: RT, 1994, p. 39.
23. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 623.
24. Art. 29 da CF.
25. ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 2ª ed. atual., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 34.
26. Geraldo Ataliba, ob. cit., p. 46.
27. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 99-100.
28. Geraldo Ataliba, ob. cit., p. 36-45 passim.
29. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 3ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 147.
30. Ibid., p. 188-189.
31. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4ª ed. rev. aum. e atual., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 185.
32. MORAES, Germana de Oliveira. O controle jurisdicional da constitucionalidade do processo legislativo. São Paulo: Dialética, 1998, p. 64.
33. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2001, p.510.
34. Ibid., p.541.
35. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 594, também os trata como princípios constitucionais sensíveis, pois são percebidos facilmente pelos sentidos, mostrados indubitavelmente pela Constituição.
36. TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 10ª ed. rev. amp., São Paulo: Malheiros, 1994, p. 146.
37. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ob. cit., p. 249.
38. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 533.
39. Em síntese entendem os autores mencionados que a medida provisória é exceção ao princípio segundo o qual legislar compete ao Poder Legislativo, logo sua interpretação há de ser restritiva, nunca ampliativa.
40. POLETTI, Ronaldo. Controle da constitucionalidade das leis. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 116.
41. Cf.: MONTEIRO, Vera Cristina Caspari. Medida provisória: panorama doutrinário e jurisprudencial. Revista trimestral de direito público, São Paulo, n. 16, 1996, p. 146.
42. Art. 62, caput da CF.
43. CARRAZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 9ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 186.
44. Cf.: Alexandre de Moraes, ob. cit., p. 542.
45. Cf. em sentido contrário: CHIESA, Clélio. Medidas provisórias – o regime jurídico constitucional. Curitiba: Juruá, 1996, p. 95; e, PEDRA, Adriano Sant’Ana. Possibilidade de edição de medidas provisórias pelos municípios. Interesse Público, São Paulo, n. 8, out./dez. 2000, p. 99.
46. Marco Aurélio Greco, ob. cit., p. 20.
47. SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Medidas provisórias. São Paulo; RT, 1991, p. 71.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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