A política e o “direito de mentir”: nossa democracia representativa na tutela dos políticos profissionais

06/04/2015 às 17:44
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O "direito de mentir" aceito por parcela da doutrina no âmbito do Direito Penal como uma "prerrogativa do réu", corolário do direito de não produzir provas contra si mesmo [de espeque constitucional] também utilizado no âmbito da política.

Líder do Democratas no Senado Federal, o senador Ronaldo Caiado (GO) pediu a renúncia da presidente Dilma Rousseff (PT), após divulgação de pesquisa que aponta queda histórica na avaliação do governo federal. A pesquisa encomendada pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT) ao Instituto MDA indica que 64,8% dos entrevistados consideram o governo Dilma ruim ou péssimo, contra 10,8% que o avaliam como ótimo ou bom. Outros 23,6% consideram que o governo petista é regular e 0,8% não sabem ou não responderam. "O mínimo que ela deveria fazer é renunciar ao mandato e convocar novas eleições. É postura de quem tem responsabilidade com o país", defendeu o senador goiano. Para o líder do PSDB, Cássio Cunha Lima (PB), o resultado da pesquisa é "reflexo da ausência" de um governo que "se transformou num amontoado de pessoas que batem cabeça".

Além do aspecto lúdico da hipótese trazida pelo nobre senador maculada pela pecha da máxima utopia, sabemos que o Partido dos trabalhadores, ao contrário, ainseia a perpetuação no poder, como a sociedade insatisfeita pode insurgir-se diante do ordenamento posto? Nossa Constituição atribui a sociedade legitimidade para retirar um representante que elegeu? Essa resposta discutiremos na segunda metade do artigo, não sem antes discorrer sobre Impeachment, forma que a democracia representativa constitucionalizada, à priori, nos ofertou.

O Artigo 86 da Constituição Republicana divide o processo de "Impeachment" em duas fases:

Na primeira a Câmara dos Deputados, após admitida a acusação feita por qualquer cidadão, limita-se, pela maioria de 2/3 de seus membros, a receber ou não a acusação.

Esse ato de recebimento ou não da acusação, decisão que não julga mérito do processo de "impeachment", limita-se a fazer o denominado pela doutrina como juízo de admissibilidade. Esta pronuncia realizada pela Câmara dos Deputados implica tão somente na processabilidade do Presidente da Republica pelo crime de responsabilidade e conexos.

Conexão significa nexo, vínculo, relação, liame, ou seja, a ideia de que a coisa esta ligada a outra, e o artigo 76 do Código Processual Penal, que trata do assunto determina a reunião dos crimes conexos em um só processo diante da existência desse vinculo.

Essa decisão de pronúncia da pela Câmara dos Deputados não equivale a um pré-julgamento do acusado, não adentra ao mérito propriamente dito, não significa um juízo condenatório. Indica entrementes, que a Câmara dos Deputados considerou haver indícios razoáveis, provas do ato imputável ao acusado e, levando-se em conta a natureza do crime de responsabilidade perpetrado pelo Presidente da Republica, naquele momento não encontrou razões de monta que justifique seu arquivamento, pronunciando.

A Câmara dos Deputados para formalizar ou não a acusação como objeto de deliberação deve apreciar a gravidade dos fatos alegados e o valor probatório das provas e indícios. O ato de declaração de pronúncia ou arquivamento da acusação é iminentemente discricionário, sendo certo que se não houver a pronúncia pela Câmara o pedido de "impeachment" restará arquivado. Ato discricionário é aquele em que o julgamento deverá pautar-se pela conveniência e pela oportunidade. A rigor, a discricionariedade não se manifesta no ato em si, mas sim no poder de a administração pratica-lo pela maneira e nas condições que repute mais conveniente e oportuno ao Poder público dentro das opções fornecidas pela lei.

parágrafo 1º do Artigo 86 da Carta Maior afirma que, o Presidente da Republica ficará suspenso de suas funções com a instauração do processo pelo Senado pelo interregno de 180 dias.

Inicia-se então, a fase da submissão do Presidente da Republica ao "veredicto" do Senado Federal, caso reste pronunciado pela Câmara, não cabendo, entende o STF, novo juízo de admissibilidade por parte do Senado Federal, que estará obrigado a julgar o Presidente pela acusação de Crimes de Responsabilidade. No Senado o julgamento será presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal.

Se o delito praticado pelo Chefe da Nação for comum (não for de responsabilidade), será ele julgado pelo Supremo Tribunal Federal, mas em qualquer dos casos, a decisão deverá advir dentro de 180 dias contados a partir de seu afastamento e da consequênte pronúncia da acusação. Prossegue o processo, nos termos legais, ofertando oportunidade ao Chefe do Executivo do Direito de ampla defesa e contraditório, nos termos do "due processo of Law" (devido processo legal).

O julgamento proferido pelo Senado Federal poderá resultar absolutório, com o arquivamento do processo; condenatório, se assim entendido pela maioria de 2/3 do voto do Senado Federal, limitando-se a perda do cargo com inabilitação por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis, conforme o Artigo 52 parágrafo único da Constituição Federal.

Nossa Carta de 1988 não acolhe qualquer hipótese que atribua poderes ao povo para cassar o mandato de qualquer de seus representantes. Nosso regime é o de uma democracia representativa [indireta ou liberal], que atribui também aos seus representante referida prerrogativa, que se faz exercer através do “impeachment”.

Uma das mais frequentes críticas à democracia representativa, além do generalizado desencanto com os políticos profissionais amasiados às práticas corruptas de autolocuplemento quase patológicas, é que a opinião do povo só é consultada uma vez a cada “quatro anos”, e após serem eleitos, os políticos tradicionais podem agir com completa liberdade, sem qualquer compromisso com as suas promessas de campanha ou mesmo com as questões de ordem ético-legais, até a próxima eleição. Protegidos por uma imunidade que aprioristicamente é funcional, mas que à vera se faz utilizada com um viés subjetivo muito mias destacado.

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Criam-se ainda, sistemas de blindagens entre as funções de poder, quando a função legislativa de poder à qual a Carta atribuiu a prerrogativa de cassar os representantes políticos desviados de suas funções mantém-se como que por um tácito pacto absolutamente inerte, como forma de proteger-se de suas próprias mazelas e barganhar favores com as demais funções de poderes do Estado em um momento de “necessidade”.

A diferença entre dirigentes e dirigidos, ou representantes e representados, acaba por afastar a política das praticas cotidianas, afastando duas esferas muito intimas na democracia direta: a política e a vida social. Como menciona CARTORIADIS:, "a representação"política"tende a"educar"– isto é, a deseducar – as pessoas na convicção de que elas não poderiam gerir os problemas da sociedade, que existe uma categoria especial de homens dotados da capacidade especifica de"governar".

Voltamos a defender a introdução em nossa Constituição do instrumento de “recall político” [eleitoral] como forma de fortalecimento da democracia e como medida apta a atribuir uma participação mais efetiva da sociedade nas decisões políticas do país. Medida que ainda se imagina consistente controle social do sistema de democracia representativa que funcionaria como fator inibidor das práticas desviadas dos políticos profissionais.

Certa será a ausência de vontade política de se levar adiante uma PEC [proposta de emenda constitucional] neste sentido em uma verdadeira reforma política, cabendo a sociedade se organizar e demonstrar ser esta a sua vontade.

A perda de legitimidade no decorrer do mandato político, ou por incompetência ou praticas ilegais, ou mesmo por exercícios despidos de ética, não pode admitir-se em um regime democrático sadio sem que se reverbere uma solução verdadeiramente democrática que restitua a legitimidade a partir da possibilidade de o povo escolher um novo mandato eletivo quando levado a erro de percepção. O escrutínio, o direito ao voto, não pode revelar-se como uma sanção por escolhas que muitas vezes se fazem pautadas em promessas de políticos despidos de escrúpulos, com maior razão quando levamos em consideração as acachapantes desigualdades socio-educacional de nosso país. Lembramos que uma Carta Repubicana deve corresponder às nossas necessidades reais para que não tenhamos meras folhas de papel.

Em verdade, o sistema, da forma que está posto, tutela ao mandatário político a possibilidade da mentira, concede-lhe a prerrogativa do “direito de mentir”, e seu implícito permissivo está claramente voltado aos políticos profissionais. Este implícito e odiodo permissivo precisa ser revisto para transformarmos a democracia representativa hoje normatizada, em um instrumento mais sadio e de fato no interesse público, para que efetivamente se corrobore no combate a corrupção sistêmica como forma permissiva de se fazer política no país. O representante eleito tem que estar vinculado às suas promessas, aos cidadãos que o elegeram como representante, sob a mácula de se configurar uma representação por tergiversação na defesa de direitos desviados.

O “direito de mentir”, muito utilizado no espeque do princípio da Ampla Defesa pelos acusados em processo criminal (alguns não o admitem), salvo exceções que criminalizam - como mentir a própria identidade com o tipo da falsidade ideológica - é utilizado como regra pelos políticos sem que qualquer consequência ou responsabilidade lhes sejam imputadas. Assim que os políticos, em especial em períodos de campanhas eleitorais, de forma implícita e absolutamente desleal e irresponsável, contam com a mesma prerrogativa que possui o acusado no âmbito do Direito Penal. Será que o sistema já antevê suas potencialidades criminosas e lhes concede este benefício por equivalência?

O voto não pode representar um “cheque em branco”, mas uma “procuração dada em confiança”. Quando não mais há confiança (fidúcia), com a perda da legitimidade, o povo tem sim, que contar com um instrumento democrático capaz de “revogar/cassar” o mandato que conferiu. O povo quem atribui a representação e pela “teoria da paridade de formas” deve ser o povo capaz para “revogar/cassar” a representação deferida.

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