Pode-se afirmar, com certa tranquilidade, que os recursos podem ter duplo efeito: suspensivo e devolutivo.
Todos os recursos têm efeito devolutivo, eis que este é da própria natureza dos recursos. Já o efeito suspensivo é atribuído, pela legislação, a alguns recursos, e a outros, não.
A questão da aceitação do efeito translativo, como sendo efeito autônomo dos recursos, está intimamente ligada ao efeito devolutivo e suas facetas.
A doutrina examina o efeito devolutivo dos recursos sob dois ângulos: o da extensão e o da profundidade.
A extensão, ou dimensão horizontal, do efeito devolutivo, é delimitada pelo recorrente, e se identifica com o brocardo tantum devolutum quantum appellatum. Vale dizer, somente se submetem a nova apreciação jurisdicional os capítulos da sentença impugnados pelo recorrente. Quanto aos capítulos não abrangidos pelo recurso, seria vedada manifestação por parte do órgão ad quem. Esta é a regra consagrada pelo parágrafo 2º, do artigo 1.013, do Novo Código de Processo Civil, que entrará em vigor no próximo ano.
Já a profundidade, ou dimensão vertical, do efeito devolutivo é fixada pelo Código de Processo Civil.
Disciplinando a apelação, mas fixando regras gerais que se aplicam a todos os demais recursos, o atual estatuto processual, nos parágrafos 1º e 2º, do artigo 515, estabelece que serão objeto de apreciação todas as questões já levantadas e discutidas pelas partes, ainda que não enfrentadas pela decisão recorrida, bem como todos os fundamentos do pedido e da defesa, ainda que nem todos sejam acolhidos pela decisão impugnada.
O texto do atual Código de Processo Civil (parágrafos 1º e 2º, do artigo 515, acima mencionados) é reproduzido, com pequenas alterações, no artigo 1.013, parágrafos 1º e 2º, do Novo Código, que em breve estará em vigor.
Não se contesta, também, que a profundidade do efeito devolutivo atinge as questões de ordem pública, ainda que não suscitadas pelas partes, já que delas o Magistrado pode conhecer de ofício. Este último é o efeito translativo, que tem a natureza de devolver ao órgão ad quem a apreciação de questões de ordem pública, ainda que não suscitadas.
É neste ponto, porém, que a questão torna-se espinhosa.
Parte da doutrina, dentre a qual José Carlos Barbosa Moreira, entende que o efeito translativo dos recursos confunde-se com a profundidade do efeito devolutivo, e, que, portanto, limita-se pela sua extensão. Nas palavras de Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha:
“É preciso, porém, fazer uma advertência: o efeito devolutivo limita o efeito translativo, que é o seu aspecto vertical: o tribunal poderá apreciar todas as questões que se relacionarem àquilo que foi impugnado – e somente àquilo. O recorrente estabelece a extensão do recurso, mas não pode estabelecer a sua profundidade” (Didier Jr., Fredie et Cunha, Leonardo José Carneiro da, Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais, vol. 3, 5ª ed. Salvador: Editora Podium, 2008, p. 83) (em itálico no original).
Já outra parcela da doutrina, da qual se extrai, a título de ilustração, o nome de Nelson Nery Jr., entende ser o efeito translativo efeito autônomo dos recursos, ao lado dos efeitos suspensivo e devolutivo, e que, assim, não seria limitado pela extensão deste.
A importância prática da adoção de uma ou outra posição está em que, para os adeptos da primeira corrente, que identificam o efeito translativo com a profundidade do efeito devolutivo, não pode o órgão ad quem ir além dos capítulos da sentença impugnados no recurso, eis que seu efeito extensivo limita a atuação jurisdicional, mesmo para conhecimento de questões de ordem pública. O efeito translativo, assim, subordina-se e limita-se pela extensão do efeito devolutivo.
Ao contrário, tomando-se o efeito translativo como efeito autônomo, o órgão ad quem pode conhecer das questões de ordem pública, ainda que com comprometimento de capítulos da sentença não abrangidos pela extensão do efeito devolutivo.
Um exemplo pode esclarecer: imagine-se uma ação em que se postula a reparação de danos, materiais e morais. A Sentença acolhe o pedido de reparação dos danos materiais, mas rechaça a ocorrência dos danos morais. Apenas o autor apela, e o capítulo da sentença que condenou o réu ao pagamento de danos materiais não é impugnado. A apelação tem por objeto, unicamente, a reforma da sentença para a condenação do réu à reparação dos danos morais. A extensão do efeito devolutivo, portanto, limita o conhecimento do órgão ad quem à indenização pelos danos morais. O Tribunal, contudo, ao apreciar o recurso, acaba por entender que o réu é parte ilegítima para ocupar o polo passivo da ação, e, em sendo a legitimidade de parte uma condição da ação, questão de ordem pública e cognoscível de ofício, afasta a pretensão do autor[1].
Para os adeptos da primeira corrente, uma vez que o recurso interposto pelo autor limitou o conhecimento do órgão ad quem à ocorrência dos danos morais, ainda que entenda o Tribunal ser o réu parte ilegítima, a decisão do colegiado não atinge a condenação à reparação dos danos materiais. Em resumo, o réu deve pagar os danos materiais, mesmo sendo considerado parte ilegítima para o pagamento dos danos morais, eis que a apreciação da condenação à reparação dos danos materiais não foi devolvida ao Tribunal.
Ao contrário, tomando-se o mesmo exemplo, mas adotando-se a idéia de que o efeito translativo é efeito autônomo do recurso, e, portanto, não limitado pela extensão do efeito devolutivo, o Tribunal, reconhecendo a ilegitimidade de parte, profere decisão que atinge, também, a condenação à reparação dos danos materiais, eximindo o réu do pagamento de qualquer valor ao autor, ainda que o recurso tenha sido interposto por este, em verdadeira reformatio in pejus, consagrando-se, porém, a regularidade processual.
Conclui-se, portanto, que o cultivo da idéia de que o efeito translativo é efeito autônomo dos recursos tem pontos positivos, eis que preza pela regularidade processual e pela correta aplicação do direito, mantendo, também, a coerência do sistema e dos julgamentos.
Deparando-se com questão de ordem pública, não pode o Magistrado cruzar os braços ou lavar as mãos, deve, sim, agir, conhecendo e apreciando a matéria.
Não é razoável, como no exemplo citado, que a parte seja condenada à reparação dos danos materiais, e, nos mesmos autos, seja considerada parte ilegítima no que toca à reparação dos danos morais.
Por fim, não deve ficar ao arbítrio do recorrente a exclusão da apreciação do Poder Judiciário de questões de ordem pública.
Considerado o efeito translativo como uma das faces do efeito devolutivo, e, assim, limitado pela extensão deste, a parte, com certa habilidade quando da impugnação da decisão recorrida, poderia excluir, da apreciação do Poder Judiciário, questões de ordem pública, o que não se coaduna com a atual fase de desenvolvimento da Ciência Processual, em que o Magistrado não é mais mero expectador do debate entre as partes, mas sim sujeito atuante na relação processual.
Bibliografia
Didier Jr., Fredie et Cunha, Leonardo José Carneiro da, Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais, vol. 3, 5ª ed. Salvador: Editora Podium, 2008.
[1] A discussão acerca da extinção da ação, sem julgamento de mérito, ou da improcedência da pretensão, não cabe nestes poucos parágrafos, mas acredita-se que não comprometa a compreensão do exemplo. Acerca do tema recomenda-se a leitura de outro texto, também de minha autoria, intitulado “As Condições da Ação e o Processo Civil Moderno”, e publicado em http://jus.com.br/artigos/27358/as-condicoes-da-acao-e-o-processo-civil-moderno