COMISSÃO DA VERDADE DA UNEB E OS DIREITOS À VERDADE, À MEMÓRIA E À JUSTIÇA: MECANISMOS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO APLICADO NO BRASIL PARA INVESTIGAÇÃO DE VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS PRATICADOS DURANTE A DITADURA MILITAR

12/04/2015 às 11:25
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O presente artigo examina a instalação da Comissão da Verdade na Universidade do Estado da Bahia à luz dos princípios da Justiça de Transição e Justiça Restaurativa.

José Cláudio Rocha[1]

 

 

O opressor tem que ser libertado tanto quanto o oprimido. Um homem que tira a liberdade de outro homem é um prisioneiro do ódio, está preso atrás das grades do preconceito e da pobreza do espírito. Ser livre não significa apenas se livrar de suas algemas, mas sim viver de uma maneira que respeite e reforce a liberdade dos outros (Nelson Mandela. Longa Caminhada até a Liberdade, autobiografia publicado no Brasil pela Editora Nossa Cultura, 3ª Edição, 2012)

 

  1. Introdução: A Comissão da Verdade na UNEB

 

No último dia 31 de março em audiência pública foi instalada a Comissão da Verdade na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), conforme Resolução CONSU 1.080/2014, sob a presidência do professor Sergio Armando Diniz Guerra, tendo como membros os representantes da comunidade acadêmica: José Ricardo Moreno (pesquisador), José Aparecido Alves Pereira (CONSU), Joabson Lima Figueiredo (CONSU), Carlos Jerônimo Gonçalves (SINTEST), José Milton Pereira de Souza (Representante ADUNEB) e Ícaro Batista Rebouças (DCE/UNEB), com a finalidade de recolher documentos e depoimentos necessários ao resgate da memória das violações dos Direitos Humanos (DDHH) ocorridos no período do regime militar brasileiro.

Este ato é digno de aplausos porque a Comissão da Verdade da UNEB juntamente com as iniciativas para a inclusão da temática da Educação em Direitos Humanos (EDH) no currículo universitário e escolar são ações que definem o perfil da UNEB não só como uma instituição respeitadora dos Direitos Humanos, mas promotora desses direitos.

Os Direitos Humanos não podem ser só ensinados pela instituição universitária, o que, aliás, já não é mais nenhuma inovação na medida em que as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (DNCEDH) do Conselho Nacional de Educação (CNE) torna esse conteúdo obrigatório em todos os níveis da educação, inclusive, no ensino superior: “Art. 2º, § 2º Aos sistemas de ensino e suas instituições cabe a efetivação da Educação em Direitos Humanos, implicando a adoção sistemática dessas diretrizes por todos(as) os(as) envolvidos(as) nos processos educacionais”[2]. Ela também precisa praticá-los como nas palavras do saudoso professor e militante André Franco Montoro: “Não basta ensinar direitos humanos. É preciso criar uma cultura prática desses direitos. As palavras voam. Os escritos permanecem. Os exemplos arrastam. O caminho é avançar no exercício da solidariedade.”[3]

A Comissão da Verdade instalada pela UNEB, nesse sentido, terá um papel importante a desempenhar se, cumprindo o que a legislação nacional estabelece e considerando a rede multicampi da instituição, souber como, nas palavras de Rocha: mobilizar os atores locais e nacionais; integrar os parceiros de forma tópica e permanente aos projetos da Comissão da Verdade; integrar às áreas de educação, ciência e cultura; fortalecer o programa de reparação e incentivar o fortalecimento dos mecanismos de Justiça de transição em escala local, nacional e global; disseminar informações dos planos nacionais e internacionais e difundir conhecimento para o Estado e a Sociedade Civil na perspectiva de que esse conhecimento complemente os currículos escolares e universitários[4].

Deste modo, é fundamental que a UNEB como um todo, principalmente, o Conselho Universitário (CONSU), não faça tabula rasa dessa conquista da sociedade civil e apoie o trabalho da Comissão, para que esta não se torne mais uma entre muitas comissões criadas com boas intenções, mas sem as condições materiais para realizar seus objetivos. Os Direitos Humanos são hoje a principal plataforma de luta dos movimentos sociais no planeta, mas não podemos deixar de enxergar que esses direito foram duramente atacados pelo regime militar com o viral “Quem defende direitos humanos defende bandidos” que até hoje ecoa na cabeça e nas palavras de muitos intelectuais na academia e da população em geral.

Nas aulas na pós-graduação na disciplina Políticas Públicas, Educação e Direitos Humanos[5] essa questão é invariavelmente levantada no primeiro dia de aula. Esse preconceito contra os direitos humanos foi construído no Brasil pelo regime militar num momento em que a única forma de defender presos políticos encarcerados e torturados era argumentar em favor de seus direitos humanos. A imprensa a serviço dos militares apresentava a sociedade que os ativistas de direitos humanos eram na verdade defensores de bandidos. Essa visão tem duplo objetivo, primeiro o de reduzir as questões de direitos humanos a questões policiais, e segundo de estigmatizar os militantes como defensores de bandidos.

Nesse sentido, ainda é preciso esclarecer a população que os direitos humanos são direitos fundamentais da pessoa humana, como afirma o mestre Cançado Trindade:

 

O Direito dos Direitos Humanos não rege as relações entre iguais; opera precisamente em defesa dos ostensivamente mais fracos. Nas relações entre desiguais, posiciona-se em favor dos mais necessitados de proteção. Não busca um equilíbrio abstrato entre as partes, mas remediar os efeitos do desequilíbrio e das disparidades. Não se nutre das barganhas da reciprocidade, mas se inspira nas considerações de ordre public em defesa dos interesses superiores, da realização da justiça. É o direito de proteção dos mais fracos e vulneráveis, cujos avanços em sua evolução histórica se têm devido em grande parte à mobilização da sociedade civil contra todos os tipos de dominação, exclusão e repressão. Neste domínio de proteção, as normas jurídicas são interpretadas e aplicadas tendo sempre presentes as necessidades prementes de proteção das supostas vítimas ". Leia mais: http://jus.com.br/artigos/9225/direitos-humanos#ixzz3X3G8q7DE[6]

 

            Resgatar essa verdade, de que os direitos humanos em síntese são os direitos que representam a ideia de dignidade humana de todos e todas talvez seja a primeira grande ação da Comissão da Verdade. A paradoxo da situação atual dos Direitos Humanos, é que nunca antes vimos tantos institutos de defesa desses direitos em vigor, mas também é crescente o processo de desumanização e coisificação do ser humano, situação que antecede as violações a esses direitos. Por este motivo, compreendo ser papel desta Comissão cooperar no processo de educação em e para os Direitos Humanos, numa perspectiva de Justiça Restaurativa.

            Dando continuidade a este comentário outro importante ponto para o qual chamo a atenção é a ausência das mulheres na Comissão. Sei das dificuldades em formar comissões dessa natureza, mas, não se pode esquecer – tratando-se de uma comissão de Direitos Humanos – das preocupações em relação às questões de gênero, raça e classe social, que são base fundamental dos direitos humanos. O Estado no Brasil e na América Latina tem sua formação com base nos preconceitos de gênero, raça e classe social e uma atitude emancipatório pressupõe a atenção a essa questão. Tanto isso é verdade que entre as ações sugeridas como mecanismos de Justiça de Transição no mundo estão às políticas de gênero, que têm uma relação direta inclusive com a EDH.

Nos países em processo de Justiça de Transição, já se chegou à conclusão de que as políticas de gênero devem ser voltadas não só para a organização das mulheres, mas para os homens que precisam ser educados para as relações de gênero. Além disso, vale a pena ressaltar a campanha que vai ser iniciada pelo Ministério Público do Estado da Bahia que tem como base a existência de preconceito institucional em nosso Estado.

            Uma comissão da Verdade não é a representação de um segmento ou de uma ideologia, mas a união de diversas vozes, de milhares de vozes que assim podem construir a memória, a verdade e a justiça. Esse conhecimento deve ser produzido de forma coletiva, pelos depoimentos das vítimas e testemunhas de vítimas nas audiências públicas que deverão ser realizadas.

Conhecendo um pouco da trajetória dos membros da Comissão não tenho dúvidas que essas questões já devem estar sendo pensadas e é desejo da Comissão engajar no processo não só as mulheres, mas todos os segmentos da universidade e a sociedade como um todo. A UNEB conta com excelentes pesquisadoras que poderão colaborar com o trabalho da Comissão.

Essa perspectiva é fundamental porque é papel de uma Comissão da Verdade é dar vez e voz às pessoas que sofreram violações aos direitos humanos.

O objetivo de uma comissão da verdade não é simplesmente pensar na justiça retributiva, visão largamente ocidental, onde há uma preocupação apenas com a reparação das vítimas e punição dos acusados. O papel de uma comissão da verdade está em realizar a justiça restaurativa, que tem como objetivo restaurar a dignidade das pessoas, daquelas que tiveram seus direitos violados e de toda a comunidade, já que uma ofensa aos direitos humanos de um cidadão é uma ofensa a toda a coletividade. A Justiça restaurativa prega a restauração do equilíbrio.

Nesse sentido, espero que a comissão da verdade da UNEB não siga uma linha jurídica positivista, preocupada tão somente com a leitura de documentos e peças processuais como num tribunal, onde as vítimas das violações podem falar apenas o essencial ao processo. Segundo o jurista Baltasar Garzón, a ética da Justiça de Transição requer a realização de fato audiências públicas, com a escuta das pessoas, fazendo emergir a verdade dos depoimentos de vítimas e familiares de vítimas de violações aos direitos humanos. Nesse sentido, serve de exemplo a Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul conduzida pelo Bispo Anglicano Desmond Tutu que juntamente com o presidente Nelson Mandela coordenou de forma hábil a Comissão em prol da reconstrução da identidade nacional do país.

O direito à verdade tem como princípio de que a reconciliação depende do perdão e que este só pode ser alcançado se as violações aos Direitos Humanos forem devidamente esclarecidas. A revelação da verdade surge como fundamento para a reconciliação, restaurando a dignidade das vitimas e familiares de vítimas, que viram sonegado o direito de expor seu sofrimento. No direito à verdade está o pressuposto de que às vitimas e seus familiares têm o direito e precisam de atenção, respeito e que sua dor seja revelada. Esse é um princípio da justiça restaurativa que busca restaurar uma harmonia que foi quebrada.

A essência da justiça restaurativa é a resolução de problemas de forma colaborativa, a Educação em Direitos Humanos entra como processo fundamental e complementar para educar as pessoas para o convívio, para a paz e para respeito aos direitos humanos.  Nesse sentido, a pesquisadora Donna Hicks, no livro Human Rights Education for the Twenty-first Century apresenta no artigo Resolução de Conflitos e Educação em Direitos Humanos: Ampliação da Agenda uma pesquisa realizada no processo de Justiça de Transição restaurativa no Camboja, em que confirmar a complementaridade entre as estratégias de resolução e prevenção de conflitos e a educação em direitos humanos[7].

 

  1. Comissões da Verdade – Mecanismos de Justiça de Transição

 

As Comissões da Verdade, como a que a UNEB acaba de instalar, são um mecanismo comum a Justiça de Transição, instituto do direito internacional que tomou força no final dos anos 80 e início dos anos 90 que pode ser conceituada, segundo Soares (2015) como um conjunto de abordagens, mecanismos judiciais e extrajudiciais, estratégias para enfrentar o legado de violência do passado, para atribuir responsabilidades, para exigir a efetividade do direito à memória e á verdade, para fortalecer as instituições com valores democráticos e garantir a não repetição das atrocidades (conforme documento produzido pelo Conselho de Segurança da ONU).

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Influenciadas pelas experiências que se desenvolveram após a metade do século XX em diversos Estados (entre eles a África do Sul que teve como protagonistas o presidente sul-africano Nelson Mandela e o bispo Desmond Tutu), a concepção de justiça de transição como um novo campo interdisciplinar baseado nos pilares da Justiça, Verdade, Reparação das Vítimas e Reformulação das Instituições é consolidada como resposta a redemocratização dos Estados e as reivindicações por Justiça e Verdade em países Latino-americanos, Europeus e Africanos[8].

Em toda a doutrina, há consenso de que não existe um único modelo de Justiça de transição, cada país, cada sociedade, deve buscar constituir seu modelo de Justiça, com a implantação de Comissões da Verdade e outras medidas como ações penais; programas de reparação; justiça de gênero; e reformas institucionais. No caso brasileiro a Comissão Nacional da Verdade foi instalada pela presidenta Dilma Rouseff com a Lei 12.528 de 18 de novembro de 2011, com o objetivo de investigar e esclarecer as graves violações aos direitos humanos praticadas no perído de 1946 a 1988, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. 

Atualmente a Justiça de Transição tem parâmetros internacionais comuns que a identificam como instituto típico da passagem de um regime político no qual houve violações dos Direitos Humanos, para outro, cuja a expectativa é de paz e de consolidação de valores democráticos[9].    

As Comissões de Verdade surgem como uma tentativa de revelar os fatos e de tratar, em um nível mais profundo, a ferida social em sociedades que emergem de governos totalitários ou de guerras que deixam um rastro de opressão e mentira. As comissões de verdade são um novo instrumento capaz de fortalecer a sociedade civil e promover uma justiça restaurativa porque elas têm um papel investigativo, judicial, político, educativo e terapêutico, simultaneamente. Elas podem alcançar ambições morais, de restauração de valores em uma sociedade em transição, influenciando a reconstrução sadia da identidade dos grupos atingidos[10].

  Em conclusão, é importante a medida tomada pela UNEB no sentido de instalação de uma Comissão da Verdade que deve interagir com outras comissões que existem no Estado visando esclarecer as violações aos direitos humanos, promovendo o direito à Justiça, à Verdade e a Memória. Isso é muito importante, vítimas de violência conseguem superar mais facilmente esse fato se conseguem relatar o ocorrido. Essa é uma forma importante para superar o problema. Desejo que a Comissão da Verdade da UNEB não caia nas armadilhas da burocracia e consiga cumprir os seus objetivos numa perspectiva de justiça restaurativa. Espero também em se tratando de uma instituição de ensino superior que essa verdade chegue aos currículos dos estudantes e seja disseminada para toda a sociedade. Que o espírito Ubuntu esteja presente nos membros da Comissão.

 

Mboté !

 

 

 

 

 


[1] José Cláudio Rocha é advogado, economista e professor titular da Universidade do Estado da Bahia. Mestre e Doutor faz pós-doutorado no Grupo de Direito Internacional e Relações Internacionais EIRENE, Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) onde estuda a justiça de Transição e Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul. É militante de direitos humanos e ex conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

[2] Resolução CNE/CP nº 1, de 30 de maio de 2012 - Estabelece Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos.

[3] MONTORO, André Franco. Cultura de Direitos Humanos. Disponível em Biblioteca Virtual do Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. HTTP://www.pge.sp.gov.br.

[4] ROCHA, José Cláudio. Educação em Direitos Humanos e Conflitos Internacionais: Um Estudo sobre Mecanismos de Apoio à Justiça de Transição. In: Direito Internacional em Expansão. Volume V, Editora Arraes: Belo Horizonte, Minas Gerais, 2015.

[5] Disciplina ministrada no Programa de Pós-Graduação em Gestão e Tecnologia aplicada à Educação (GESTEC);

[6] Antônio Augusto Cançado Trindade na apresentação do livro de Flávia Piovesan. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7 ed. rev. ampl.. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.p.XXXI/XXXII.Leia mais: http://jus.com.br/artigos/9225/direitos-humanos#ixzz3X3GUucLm

[7] Educação em Direitos Humanos para o Século XXI/ Organizado por George Andreopoulos; Pierre Claude; traduzido por Ana Luiza Pinheiro – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 2007. Série Direitos Humanos.

[8] SOARES, Justiça de Transição. Dicionário on line da Escola Superior do Ministério Público da União. Disponível em escola.mpu.mp.br.

[9] Idem.

[10] PINTO, Simone M. R. Justiça Transicional na África do Sul: Restaurando o passado, construindo o futuro. Contexto int. Vol 29, RJ, July/Dec., 2007.

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Sobre o autor
José Cláudio Rocha

Advogado, economista, analista e desenvolvedor de sistemas e professor pleno da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Docente na graduação presencial e EAD e pós-graduação (mestrado e doutorado) é pesquisador público com base na Lei Federal 13.243/2016 e Lei Estadual 14.315/2021. É coordenado do Centro de Referência em Desenvolvimento e Humanidades (CRDH/UNEB) Portaria 231/2023. É expert em Direitos Da Natureza para a Organização das Nações Unidas (ONU), Programa Harmony With Nature.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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