1. Caso Mensalão: o esquema
O caso do mensalão, denunciado em 2006, foi o maior escândalo do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. O processo tem 38 réus – um deles, contudo, foi excluído do julgamento no STF, o que fez o número cair para 37 – e entre eles há membros da alta cúpula do PT, como o ex-ministro José Dirceu (Casa Civil). No total, são acusados 14 políticos, entre ex-ministros, dirigentes de partido e antigos e atuais deputados federais.
A Procuradoria-Geral da República descreve o mensalão como um esquema clandestino de financiamento político organizado pelo PT para garantir apoio ao governo Lula no Congresso em 2003 e 2004, logo após a chegada dos petistas ao poder. Segundo a Procuradoria, três grupos organizaram e puseram o esquema para funcionar.
1.1 Esquemas dentro do esquema
NÚCLEO POLÍTICO
Segundo a Procuradoria, o esquema foi organizado por um núcleo político chefiado pelo então ministro da Casa Civil, José Dirceu, e integrado por outros três dirigentes partidários que integravam a cúpula do PT no início do governo Lula.
NÚCLEO OPERACIONAL
O empresário Marcos Valério Fernandes de Souza, dono de agências de publicidade que tinham contratos com o governo federal, é acusado de usar suas empresas para desviar recursos dos cofres públicos para os políticos indicados pelos petistas.
NÚCLEO FINANCEIRO
Segundo a Procuradoria, o banco Rural deu suporte ao mensalão, alimentando o esquema com empréstimos fraudulentos, permitindo que os políticos sacassem o dinheiro sem se identificar, e transferindo parte dos recursos para o exterior.
2. O Julgamento
2.1 ) O inquérito chega ao STF
O então procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, pede ao STF que assuma a condução do inquérito do mensalão. O caso havia sido aberto na Justiça de Minas Gerais, sede das empresas de Marcos Valério, mas foi reencaminhado ao Supremo em razão dos indícios de participação de políticos com foro privilegiado – deputados e ministros.
O então presidente do Supremo, Nelson Jobim, recebeu o inquérito pessoalmente do juiz Jorge de Macêdo Costa, da 4ª Vara da Justiça Federal, acolheu o pedido da Procuradoria e determinou uma série de diligências à Polícia Federal. Em 1º de agosto, Joaquim Barbosa foi sorteado o relator do caso.
2.2) Os acusados
O procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, denuncia 40 pessoas por envolvimento no mensalão. Estão lá: a cúpula do PT e o homem-forte de Lula, José Dirceu, compondo o que foi chamado de núcleo político da quadrilha; Marcos Valério e seus sócios, integrando o núcleo operacional; a diretoria do Banco Rural, compondo o núcleo financeiro; e os deputados, assessores, servidores e empresários que se beneficiaram do valerioduto. O STF levaria mais de um ano para estudar a denúncia - e aceitá-la contra todos os acusados.
2.3) O desmembramento
STF discute se o processo do mensalão deve ou não ser desmembrado. Isso porque apenas parte dos réus tinha foro privilegiado – a minoria.
Houve três tipos de voto. Joaquim Barbosa queria manter no STF apenas os processos de quem tinha foro privilegiado, mesmo reconhecendo a possibilidade de decisões contraditórias entre o STF e as instâncias inferiores da Justiça. Ricardo Lewandowski, Ayres Britto, Cezar Peluso e Marco Aurélio seguiram o relator. Já Cármen Lúcia defendeu a manutenção no STF das investigações contra os 40 denunciados, e com ela votaram Eros Grau, Ellen Gracie, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Para eles, as denúncias de irregularidades compunham uma teia de fatos complexos que não poderiam ser analisados em separado. Com o placar empatado em 5 a 5, Sepúlveda Pertence propôs o voto médio: desmembrar apenas os casos em que não houvesse coautoria do titular do foro privilegiado.
2.4) Ordem do Julgamento e Condenações
I) Desvios no Banco do Brasil e na Câmara dos Deputados: o julgamento começou pelos capítulos em que são analisados crimes associados ao desvio de recursos do Banco do Brasil e da Câmara dos Deputados para o mensalão.
Condenações (corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e peculato):
- Núcleo Câmara dos Deputados: João Paulo Cunha, Marcos Valério Fernandes de Souza, Ramon Hollerbach e Cristiano Paz.
- Núcleo Banco do Brasil: Henrique Pizzolato, Marcos Valério Fernandes de Souza, Ramon Hollerbach e Cristiano Paz.
- Núcleo Fundo Visanet: Henrique Pizzolato, Marcos Valério Fernandes de Souza, Ramon Hollerbach e Cristiano Paz.
II) A operação financeira do esquema: a segunda parte a ser julgada é a que trata sobre os crimes de gestão fraudulenta no Banco Rural, que teria emprestado R$ 32 milhões ao PT e às agências de Valério sem garantias, e ainda renovado os empréstimos, sem cobrá-los.
Condenações (todos por gestão fraudulenta):
- Núcleo Banco Rural: Kátia Rabello, José Roberto Salgado e Vinícius Samarane.
III) A participação do Banco Rural: os ex-dirigentes do Rural também são acusados por usarem o banco para lavar o dinheiro do esquema, junto com Marcos Valério e seus ex-sócios.
Condenações (todos por lavagem de dinheiro):
- Núcleos empresários e Banco Rural: Marcos Valério Fernandes de Souza, Ramon Hollerbach, Cristiano Paz, Rogério Tolentino, Simone Vasconcelos, Kátia Rabello, José Roberto Salgado, Vinícius Samarane.
IV) A compra de apoio político no Congresso: pela ordem, a quarta parte da denúncia a ser julgada trata sobre as acusações de compra de apoio de parlamentares na Câmara, segundo a denúncia, orquestrado pelo ex-ministro José Dirceu e o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares.
Condenações (Corrupção passiva, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro):
- Núcleo Político (PL, PTB, PP e PMDB): Pedro Correa, Pedro Henry, João Cláudio Genu, Enivaldo Quadrado, Breno Fischberg, Valdemar Costa Neto, Jacinto Lamas, Carlos Rodrigues, Roberto Jefferson, Emerson Palmieri, Romeu Queiroz e José Borba.
V) Os petistas que receberam dinheiro do esquema: os deputados do PT que receberam dinheiro do esquema também serão julgados.
VI) Os pagamentos feitos ao publicitário Duda Mendonça: o publicitário Duda Mendonça recebeu seu pagamento pelas campanhas que realizou para o PT com dinheiro do valerioduto e usou o esquema de lavagem do Banco Rural para mandar o dinheiro ilegalmente para o exterior, diz a denúncia.
VII) A participação do ex-ministro José Dirceu: por fim, os ministros analisam as acusações de quadrilha contra os principais réus do processo. Nesta parte, o STF decidirá se Dirceu realmente era o chefe da quadrilha, como diz o Ministério Público.
3. O Princípio do Juiz Natural
De acordo com Fernando da Costa Tourinho Filho, Juiz Natural é aquele cuja competência resulta, no momento do fato, das normas legais abstratas. É, enfim, o órgão previsto explícita ou implicitamente no texto da Carta Magna e investido do poder de julgar. Não basta, assim, que o órgão tenha o seu poder de julgar assentado em fonte constitucional para que se alce a Juiz natural. É preciso, também, que ele atue dentro do círculo de atribuições que lhe ficou a lei, segundo as prescrições constitucionais.
Da mesma maneira, Guilherme de Souza Nucci ensina que o estado, na persecução penal deve assegurar às partes, para julgar a causa, a escolha de um juiz previamente designado por lei e de acordo com as normas constitucionais (art. 5º. LIII, CF: “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”). Evita-se, com isso, o juízo ou tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII, CF), que seria a escolha do magistrado encarregado de analisar determinado caso, após a ocorrência do crime e conforme as características de quem será julgado, afastando-se dos critérios legais anteriormente estabelecidos. A preocupação maior desse princípio é assegurar a imparcialidade do juiz, visto que, num Estado Democrático de Direito, é inconcebível que os julgamentos materializem-se de forma parcial, corrupta e dissociada do equilíbrio que as partes esperam da magistratura.
4. O Princípio do Duplo Grau de Jurisdição
Nucci diz que tem a parte o direito de buscar o reexame da causa por órgão jurisdicional superior. O princípio é consagrado na própria Constituição quando se tem em mira a estrutura do Pode Judiciário em instâncias (...)
Por outro lado, há expressa disposição no Pacto de São José da Costa Rica (art. 8, item 2, h) a respeito do direito de recurso contra sentença a juiz ou tribunal superior. Os tratados internacionais, visando sobre direitos humanos, devem ingressar no ordenamento jurídico brasileiro com status de norma constitucional, como autorizam os §§ 2º e 3º do art. 5º, da Constituição Federal.
Complementando esse pensamento, Tourinho Filho apregoa: “Cumpre observar, por derradeiro, que o fato de as partes poderem interpor recurso extraordinário das decisões de quaisquer Tribunais para o STF, ou interpor recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça das decisões de Tribunais Estaduais ou Federais, não ilide a afirmação de que realmente não temos o duplo grau nos processos da competência privativa dos Tribunais, mesmo porque, quando se interpõe o recurso extraordinário, a Suprema Corte cinge-se ao exame da possibilidade de a decisão recorrida afrontar a Constituição, e quando se interpõe recurso especial para o STJ objetiva-se o respeito à lei federal ou tratado, não se apreciam as questiones facti (questões de fato). Procura-se simplesmente constatar se a Constituição foi desautorada, se à lei federal foi ou tratado foi negada vigência, se houve desrespeito a este ou àquela, ou se sobre o assunto há dissídio jurisprudencial, quando, então, o STJ procura manter a uniformidade da interpretação. Assim, se as questões fáticas, as provas colhidas, não podem ser objeto daqueles recursos, logo, podemos afirmar que entre nós não há o duplo grau nas hipóteses de foro pela prerrogativa de função, embora devesse haver.”
5. Da competência pela prerrogativa de função
Segundo Tourinho Filho, consiste no poder que se concede a certos órgãos Superiores da Jurisdição de processar e julgar determinadas pessoas.
Há pessoas que exercem cargos de especial relevância no Estado, e em atenção a esses cargos ou funções que exercem no cenário político-jurídico da nossa Pátria gozam eles de foro especial, isto é, não serão processadas e julgadas como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas pelos órgãos superiores, de instância mais elevada.
6. Da Continência em razão do Concurso de Pessoas
Justifica-se a junção de processos contra diferentes réus, desde que eles tenham cometido o crime em conluio, com unidade de propósitos, tornando único o fato a ser apurado. É o que a doutrina chama de continência por cumulação subjetiva, tendo em vista tratar-se de vários autores praticantes do mesmo fato delituoso (art. 77, I, CPP). Não se trata somente de uma causa inspirada na economia processual, mas também na tentativa de evitar decisões contraditórias, que nada contribuem para a credibilidade da Justiça.
Evidente que, nas hipóteses de conexão e continência, como deve haver um simultaneus processus, é preciso que uma infração exerça uma vis attractiva sobre as demais, prorrogando, assim, a competência do juízo da atração. Para determinar o forum attractionis, o art. 78 do CPP estabelece várias regras:
3ª regra: no concurso de jurisdição de diversas categorias, predominará a de maior graduação.
A jurisdição do Tribunal de Justiça é superior à do Juiz de Direito. São, pois, jurisdições de diversas categorias, sendo que a do Tribunal de Justiça é de maior graduação, porquanto se trata de órgão de 2º grau ou de 2ª instância. Desse modo, se um Promotor de Justiça e um alfaiate, na comarca, forem acusados de prática de estelionato (coautoria), será evidente a continência, devendo haver um só processo perante um único Órgão Jurisdicional. O Promotor de Justiça, pela prerrogativa da função, deverá ser processado e julgado pelo Tribunal de Justiça (CF, art. 96, III), enquanto o corréu, por não gozar dessa prerrogativa, deveria ser processado e julgado pelo Juiz singular. Contudo, havendo, como há, na hipótese, um concurso de jurisdições de diversas categorias e devendo predominar a de maior graduação, segue-se que os responsáveis – Promotor e alfaiate- deverão ser processados e julgados pelo Tribunal de Justiça, tal como previsto no art. 78, III, do CPP, mesmo porque a expressão “categoria de maior graduação” refere-se a órgãos de uma mesma Justiça.
Indaga-se: nesse exemplo, o alfaiate não deveria ser julgado pelo Juiz de Direito? Sim. O Juiz de Direito não seria o seu Juiz natural? Sim. Em virtude de dever ele, juntamente com o Promotor de Justiça, ser Processado pelo Tribunal de Justiça, não haveria lesão ao princípio do Juiz natural? Não. Em primeiro lugar porque a própria lei, antes do fato, já está dizendo qual o órgão competente, e, como reforço, aí está a Súmula 704 do STF: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”.
Assim, havendo concurso entre as jurisdições superior e inferior é natural que a superior – que possui poder revisional sobre as decisões da inferior – termine por avocar os feitos conexos ou continentes. Exemplificando: se determinado réu, por prerrogativa de função, deve ser julgado no Superior Tribunal Federal, mas cometeu o delito em coautoria com outra pessoa, que não detém a mesma prerrogativa, ambos serão julgados no Pretório Excelso, em face da continência.
7. Reflexões sobre o caso mensalão
Examinando os procedimentos aplicados no julgamento do caso mensalão, bem como as doutrinas ora expostas, podemos expor as seguintes conclusões sobre o objeto estudo do presente trabalho, à luz dos princípios do Juiz Natural e do Duplo Grau de Jurisdição:
I) O julgamento do caso mensalão não afronta o Princípio do Juiz Natural. Muitos advogados de defesa tentaram obstar a aplicação do foro por prerrogativa de função para seus clientes que não o possuem constitucionalmente em razão de suas funções, como o fazem os Deputados Federais e Ministros que figuram como réus no processo. Porém, houve o caso de continência pelo concurso de pessoas: os corréus, atuando de forma ativa ou passiva, contribuíram para a mesma finalidade do esquema mensalão, de modo que devem ser julgados juntos. Se há, entre eles, ao menos um que possua foro por prerrogativa de função, esse foro prevalecerá em detrimento de outro de instância inferior. É o que dispõe o Art. 78 do CPP, baseado no forum attractionis. Para corroborar o disposto nesse artigo e eliminar qualquer dúvida que possa surgir quanto à lesão ao Princípio do Juiz Natural, o STJ editou a Súmula 704 que dispõe que “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”. Portanto, podemos concluir que o julgamento do caso mensalão foi instaurado de acordo com as regras constitucionalmente estabelecidas.
II) Quanto ao direito ao Duplo Grau de Jurisdição, o tema merece maior reflexão. O Brasil, sendo signatário de Pacto de São José da Costa Rica, um Tratado Internacional que versa sobre Direitos Humanos, o incorporou na Carta Magna, de modo que deve-se cumprir o disposto no Tratado com a mesma rigidez que a Constituição Federal se faz cumprir. O direito ao Duplo Grau de Jurisdição é um Princípio constitucional implícito, que garante às partes o reexame da questão por um órgão hierarquicamente superior. No caso em questão, tendo sido o processo de competência originária do Supremo Tribunal Federal, não há o que se falar em fase recursal em quesito de mérito. Não há órgão hierarquicamente superior ao STF para o reexame da decisão. Como bem pontua a questão Tourinho Filho: “podemos afirmar que entre nós não há o duplo grau nas hipóteses de foro pela prerrogativa de função, embora devesse haver.” Concluímos, portanto, que o único instrumento recursal do qual os condenados no caso mensalão poderão se valer, será os Embargos de Declaração, opostos somente em caso de obscuridade ou contradição da sentença proferida, ou de ponto omitido pelo Pretório Excelso, mas jamais abrangendo as questões de mérito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 8 ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.
FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de Processo Penal. 15 ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2012
<http://www1.folha.uol.com.br/especial/2012/ojulgamentodomensalao/ojulgamento/o_esquema.shtml> Disponível em : 23.09.2012. Acesso em: 23.09.2012
<http://veja.abril.com.br/o-julgamento-do-mensalao/hora-da-sentenca/> Disponível em : 30.09.2012. Acesso em: 30.09.2012