Dos castros de 1500 aos castristas de 2015: uma versão plausível da história urbanística neurótica do Brasil

13/04/2015 às 09:18
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A persistência da memória colonial é um fato que conspira contra a normalidade democrática do país.

Gosto de refletir sobre a sociedade brasileira. Mas não faço isto de uma maneira convencional ou estritamente científica. Sou um provocador, como tal me permito certas liberdades metodológicas e retóricas. Há algum tempo publiquei um texto na internet e hoje o recupero para poder desdobrar algumas idéias que esbocei:

“Há uma verdadeira remedievalização das relações sociais. A mídia é a principal arma empregada nesta verdadeira reação do culto contra o mundo secular criado pelos jacobinos e girondinos no século XVIII.

A proliferação de condomínios de luxo murados e guardados por verdadeiros exércitos privados marcou o nascimento deste processo. O culto das celebridades é apenas um desdobramento desta nova idade das trevas.

As celebridades habitam condomínios de luxo e vivem dentro dos minúsculos castelos que iluminam nossas salas. Os servos da gleba habitavam as cercanias do castelo, onde o senhor da terra decidia seus destinos. Os telespectadores, tangidos pelas celebridades, são incapazes de criar seus próprios modelos e programas. A servidão foi renovada, agora cada servo escolhe o senhor que servirá.”

http://brazil.indymedia.org/content/2005/12/340007.shtml

O conceito de “remedievalização” remete diretamente ao de “medievalização”. Entretanto, para alguns não se pode dizer que houve uma Idade Média no Brasil. Certamente não tivemos nada parecido com a Idade Média européia. O que tivemos foi algo diferente e, paradoxalmente, parecido, pois:

“O solar da fazenda, a mansão do engenho, mesmo a habitação urbana nos dois primeiros séculos reunem as condições de defesa, do refrigerio, da dominação e da comodidade do colono; porisso têm um traço oriental, uma solidez militar, uma topografia invejável, uma amplitude caracteristica. Para evitar o indio, o morador, fortificou-se. Fez Duarte Coelho, ao chegar em Olida, ‘uma torre de pedra e cal...’ (75). Ao próprio indio pediu a palissada; mandou Tomé de Souza fazer ‘primeiro uma cerca muito forte de pau a pique’ (76); só mais tarde, com a fixação prospera, a substituiu pela muralha. As cadas da Baía, em 1549, foram ‘cobertas de palma, ao modo do gentio...’

Diogo Dias, ‘que era o derradeiro que estava nas fronteiras da capitania de Tamaracá’, ‘tinha muita gente e escravos e uma cerca muito grande feita com uma casa forte dentro, em que tinha algumas peças de artilharia...’ Os potiguares destruiram-na em 1574 (77). O filho daquele levantou em Guiana o seu engenho, com ‘uma casa forte de madeira de taipa e mão dobrada, donde, com arcabuzes que os brancos dentro tinham e o seu gentio com arcos e frechas’ se defendeu dos barbaros até lhe queimarem a propriedade.

Expulso o selvagem e florescentes as lavouras, o reduto, ou a ‘torre’, cedeu lugar a casa grande.

A colonização, passando da fase heróica á econômica, trocou o fortim artilhado, feito para repelir, pelo sobrado vasto e patriarcal, feito para reunir. Foi o provedor mór Pero de Góes quem construiu a melhor casa da Baía ao tempo de Tomé de Souza: comprou-lha o governador, para moradia do bispo D. Pero Fernandes Sardinha, por 80$000, pagos metade em 1552, metade em 53 (79).”  (Espirito da Sociedade Colonial, Pedro Calmon Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1935, p. 52/53)

Os feudos medievais eram amplas possessões territoriais nas cercanias de um castelo fortificado, dentro do qual se encerrava o “senhor da guerra”, seus soldados, as famílias deles, alguns cortesãos e, é claro, padres para o serviço religioso. Em volta do castelo viviam os servos da gleba que, em troca de proteção, lavraram as terras do suserano, ajudavam a conservar pontes, estradas e as muralhas dentro das quais se refugiariam em caso de guerra.

No Brasil, a posse das capitanias (imensas glebas de terras) era uma ficção legal que conferia imensos poderes aos donatários. De fato, porém, os donatários nunca poderiam ser comparados aos suseranos medievais, pois eles somente tinham o controle da casa fortificada e das cercanias. Seu poder se estendia mediante a cessão de terras aos colonos submetidos ao seu poder e às campanhas para conquistar novas terras aos índios. Donatários e colonos defendiam como podiam suas casas mais ou menos fortificadas. Os mais abastados contratavam soldados, os demais lideravam minúsculas tropas constituídas de parentes, amigos, agregados e alguns índios.

A mentalidade do colono, entretanto, era a mesma do suserano. Dentro do seu pequeno domínio ele era a Lei. Sua casa era um castrum (Pedro Calmon também usa este termo, que remete aos minúsculos fortins redondos de pedra construídos pelos povos bárbaros que habitavam a Lusitânia antes da conquista romana). O medo que o colono português sentia em razão de estar cercado por índios potencialmente hostis era abrandado pelo fato de que, apesar de serem muitos, seus inimigos não tinham arcabuzes, peças de artilharia e espadas de aço. A guerra entre os suseranos medievais europeus era feita em condições de igualdade tecnológica. No Brasil o desequilíbrio militar entre o colono e o índio sempre foi a regra.

Os costumes mudam, a realidade se transforma, mas alguns traços da mentalidade colonial ainda podem ser encontrados aqui e ali na sociedade brasileira. Os brasileiros abastados se trancam nas suas casas fortificadas (com cercas elétricas, fechaduras eletrônicas, sistemas de segurança sofisticados e câmeras de vigilância conectadas à internet), as melhores casas deles estão trancadas dentro dos condomínios murados e defendidos por seguranças particulares.“Aqui é o Brasil, lá fora estão os ‘outros’” parece ser um imperativo categórico da ideologia dominante em nosso país, pois a obsessão por segurança e separação estão presentes na urbanização do Brasil desde os primeiros castros até os modernas mansões fortificadas em condomínios murados .

Os “outros”, os que moram em “pauerperculas domos” nas periferias das grandes cidades do Brasil, também são cidadãos brasileiros, tem direitos políticos e não podem ser discriminados. Não podem ser, mas são discriminados diariamente pelos “senhores da guerra” que saem de seus domínios em carros blindados para levar consigo o Brasil da exclusão e da separação onde quer que pretendam ir. As mentalidades fortificadas destes brasileiros se tornaram mais e mais castristras nos últimos anos. Derrotas eleitorais legítimas, eles consideram absurdas e inadmissíveis.

“Os bárbaros não podem governar o Brasil”. “O país é nosso e não ‘deles’.” “Somos melhores que estes miseráveis que recebem bolsa família para votar no PT”. “Precisamos demonstrar nossa inconformidade com este desgoverno que assola o país”. “Fora Dilma Rousseff”. "No tempo da Ditadura não tinha corrupção". "Queremos uma intervenção militar". "Vai prá Cuba." “O povo brasileiro não aceita mais a ditadura do PT.” “O povo não aceitará uma nova eleição de Lula”.  

Castro, castro, castro, castro… Percorrendo os websites que convocam passeatas para amanhã (12/04/2015) a única coisa que encontrei foi uma mentalidade castrada, castrante e castrista. A mesma ideologia medieval que existia nos colonos pode ser encontrada cinco séculos depois em alguns de seus descendentes. Está presente nos telejornais e nos jornais que atacam sistematicamente Dilma Rousseff como se ela não tivesse sido eleita, como se os “outros” não tivessem direito a voto, como se o voto “deles” não tivesse o mesmo valor que os votos dos habitantes das mansões fortificadas nos condomínios murados, como se o Brasil fosse o país onde eles habitam e o território onde os “outros” estão apenas uma terra de ninguém que pode ser invadida e, eventualmente, devastada.

Toda vez que a PM mata uma criança numa favela, que um soldado executa um suspeito na rua, toda vez que uma jornalista fala em “legítima defesa coletiva” e outro glorifica a ação policial contra os “vândalos”, a ideologia por traz do crime é a mesma. O medo pavor dos descendentes dos colonos, suponho, é maior. Os “outros” não são apenas índios; em caso de guerra não usarão apenas arcos, flechas e bordunas.  Os “outros” não devem ter direitos trabalhistas, por isto os senhores dos castros apóiam o PL 4.330/2004. “Apenas nós somos verdadeiros brasileiros” e devemos ter o direito de controlar o Pré-sal e a Petrobrás, portanto, ambos devem ser privatizados; se forem públicos poderão ser controlados pelos “outros”.

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A ideologia do castro, da casa fortificada que separava seus habitantes dos inimigos em potencial, era uma necessidade imposta pela realidade da colônia no século XVI. Cinco séculos depois esta ideologia, presente nas relações sociais cotidianas, impregnada no discurso jornalístico e na prática política da oposição tucana/demoníca/evangélica, se tornou verdadeira neurose urbanística, política e cívica. Os primeiros castros permitiram e possibilitaram a construção do Brasil, a mentalidade castrista destruirá o país. Antes disto, porém, podemos recorrer à nossa própria história para tentar iluminar os rincões de repulsa, segregação, racismo e separação social. Ao tempo de D. João:

“As moradas mais faustosas gradearam-se apenas de rotulas conventuais; o comum do casario ajustou ás padieiras as ‘urupemas’ de taquara. Alexandre Rodrigues Ferreira achou-as no Pará, no fim do seculo III, ‘malditas urupemas de um tecido de palha tão junto que nem se conhece quem está por dentro…’ Mascaravam a casa, como a capona e a mantilha mascaravam a mulher, como a capa de volta rebuçava o homem. Vedava o sol, a aeração, a alegria exterior. Condensava a umidade, conservava a penumbra, habituava á tristeza. Porisso os dous gráus da urbanização da vida brasileira foram atos violentos do marques de Lavradio e de D. João regente (84), mandando aquele arrancar a urupema do Rio, fazendo o outro substituir as adufas pelas vidraças. A cidade transformou-se, quando lhe meteram em casa o sol. A sociedade modificou-se com a luz que lhe banhou a alcova: começou a sentir o prazer civilizado de viver, rasgando á natureza as suas janelas e sorvendo um trago sadio de ar. A ‘urupema’ foi o simbolo da primitiva melancolia e da pobreza da colonia." (Espirito da Sociedade Colonial, Pedro Calmon Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1935, p. 57/58)

Pedro Calmon foi um otimista. Ele aplaudiu a inovação urbanística imposta à Colônia por D. João e pelo marques de Lavradio, mas não percebeu a persistencia neurótica da ideologia do castro colonial. O sol entra nas casas brasileiras desde a abolição da urupema, mas as cabecinhas de alguns brasileiros, daqueles que se consideram os “verdadeiros brasileiros”, os “melhores brasileiros”, a “elite que deve governar o país”, continuam povoadas pelos fantasmas dos castros e aferradas às trevas medievais. Nem mesmo Platão seria capaz de tirar estas bestas feras das cavernas escuras que elas pretendem desdobrar e expandir pelas ruas brasileiras neste domingo.

Em algum momento os ilustres “cabeças de castros” que se sentem “politicamente castrados” porque são incapazes de aceitar o mais refinado princípio civilizatório (a igualdade jurídica de todos perante as urnas) terão que ser submetidos ao mesmo tratamento que Cunhambebe dava aos seus prisioneiros antes de submete-los ao moquém. E então, o porrete (símbolo maior da barbárie combatida pelo colono) se transformará no instrumento pacificador e civilizador dos seus descendentes. Pau neles Dilma e sem dó...

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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