Crime e Castigo: uma visão da Literatura sobre o Direito

Resumo:


  • Dostoiévski explora a redenção através da dor em "Crime e Castigo", enquanto Nietzsche desenvolve o conceito de "Übermensch" (além-do-homem), que transcende a moral tradicional.

  • O personagem Raskólnikov de Dostoiévski luta com a culpa e a redenção, contrastando com o Übermensch de Nietzsche, que opera além do bem e do mal.

  • A noção de culpa é central tanto para Dostoiévski quanto para Nietzsche, mas eles a abordam de maneiras distintas, refletindo sobre a moralidade e a ética de suas respectivas épocas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Análise em apertada síntese, sobre a visão da punição, crime e castigo em Dostoiévski.

O Crime e o castigo em Dostoiévski e a noção de übermensch em Nietzsche

            O gênio da literatura universal, Fiódor Mikháilovich Dostoiévski, nasceu em 30 de outubro de 1821 e faleceu  28 de janeiro de 1881. Dono de uma profunda visão psicológica dos fatos da vida real, admirado por Nietzsche, Dostoièvski se confunde muito com seus brilhantes personagens.

Crime e  castigo[1] foi lançado em 1866 com um enfoque especialmente espiritual e existencialista, que privilegia particularmente a conquista da redenção através da dor, sem, no entanto, excluir o debate sobre os inevitáveis temas do regime socialista e da filosofia niilista, a novela aborda a trajetória de Rodion Românovitch Raskólnikov.

Dono de uma personalidade dual, Raskólnikov apresenta a Europa do final do século XIX, época de avanços nas ciências e de forte produção científica e literária. O personagem beira o niilismo e se atormenta com a razão capaz de oferecer possibilidades.

É difícil traçar um paralelo entre Dostoiévski e Nietzsche, no sentido de quem influenciou o outro. Todavia, é bem sabido que Nietzsche produz com maior originalidade após a década de 1870. A idéia do “ homem grandioso” que críticos literários atribuem a  Raskólnikov , aparece em Georg Hegel e aparecerá no Além-do-homem[2] de Nietzsche.  Nietzsche, em seu livro de 1888, ECCE HOMO[3] , último livro escrito pelo filósofo alemão, reflete o seguinte sobre o além-do-homem:

“Das Wort »Übermensch« zur Bezeichnung eines Typus höchster Wohlgeratenheit, im Gegensatz zu »modernen« Menschen, zu »guten« Menschen, zu Christen und andren Nihilisten – ein Wort, das im Munde eines Zarathustra, des Vernichters der Moral, ein sehr nachdenkliches Wort wird – ist fast überall mit voller Unschuld im Sinn derjenigen Werte verstanden worden, deren Gegensatz in der Figur Zarathustras zur Erscheinung gebracht worden ist: will sagen als »idealistischer« Typus einer höheren Art Mensch, halb »Heiliger«, halb »Genie« … Andres gelehrtes Hornvieh hat mich seinethalben des Darwinismus verdächtigt; selbst der von mir so boshaft abgelehnte »Heroen-Kultus« jenes großen Falschmünzers wider Wissen und Willen, Carlyles, ist darin wiedererkannt worden. Wem ich ins Ohr flüsterte, er solle sich eher nach einem Cesare Borgia als nach einem Parsifal umsehn, der traute seinen Ohren nicht.“[4]

O Além-do-homem foi contrastado com a ideia do "último homem", que é a antítese do Übermensch. Visto que Nietzsche não era considerado um exemplo de Super-homem em seu tempo, (através do “porta-voz” de Zarathustra), ele declarou que havia muitos exemplos de últimos homens. Zarathustra atribui à civilização de seu tempo a tarefa de preparar a vinda do Übermensch. Na compreensão deste conceito, entretanto, tem-se que recordar a crítica ontológica de Nietzsche quanto ao assunto individual que reivindicou “uma ficção gramatical”.

Rodion Românovitch Raskólnikov, ex-estudante de Direito assassina uma senhora velha que faz agiotagem, ao fugir da cena do crime, comete outro assassinato, de Lizavéta, irmã da velha agiota.

A trama se passa dentro de um quadro de angústia profunda e de um sentimento de religião que conflita culpa e ação, presentes em quase toda a obra de Dostoiévski.

O contraste de Dostoiévski e Nietzsche se dá no fato de  Raskólnikov desejar ser  “o homem grandioso”, todavia, a culpa e o sentimento profundo que o angustia, fazem-no fraco e abatido. O übermensch de Nietzsche não conhece a moral no sentido filosófico de 2.400 anos de filosofia ocidental, ao contrário, para Nietzsche a moral está além do bem e do mal, jenseits von gut und böse, titulo de um livro de Nietzsche de 1886.

CULPA

Necessário se faz uma análise primeira do conceito de culpa que tanto se aplica nas obras de Dostoiévski quanto nas obras de Nietzsche, uma vez que o conceito é talhado por Sigmund Freud a partir das análises literárias destes autores, especialmente Nietzsche. Que é culpa para Freud?

 “Em que isto nos interessa para a compreensão do sentimento de culpa? De início é importante considerar que para Freud a origem do sentimento de culpa está no desamparo primordial (Hilflosigkeit), onde localiza a angústia primária relacionada ao trauma originário, como puro excesso econômico, tomando como protótipo o trauma do nascimento, primeiro momento avassalador e excessivo, de radical desamparo.”[5] Doris Rinaldi.

            Freud, como fundador da psicanálise, ataca a questão da culpa como decorrência de circunstâncias ligadas ao convívio parental na chamada primeira infância. Na obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari “O Anti-Édipo”[6] de 1972, os autores atacam o “sentimento” de culpa entre outros , incluindo-os na forma de saber/poder que foi denunciado por Michel Foucault na década de 1960 e ainda, os autores ao escreverem o livro, tinham em mente o caráter libertador/repressor de maio de 1968 na Europa. 

            A psicanálise permanece inexorável quanto ao DOGMA de culpa, não pode ser todo descartado, todavia, estudos de outros pesquisadores além dos citados, são fundamentais para um BOA compreensão do fenômeno da existência.

            Friedrich Nietzsche diz não haver culpa por causa da noção de moral fundamentada nas lições de Platão e Sócrátes e dogmatizada pelo cristianismo. Para Dostoiévski, a culpa é inerente às desesperanças de um século XVIII e XIX repleto de situações sociais como a Revolução Francesa, a decapitação de um rei e de uma rainha frente ao apelo de sangue dos pobres agricultores franceses que promoveram uma revolução calcada nas idéias dos Iluministas , dos quais, sem sombra de dúvida, não leram uma página sequer.

            Os franceses do período do terror de 1791 a 1793, os Jacobinos, não ficaram com culpa pelo sangue escorrido pelas ruas de Paris. O alarde de um rei e de uma rainha decapitados na França, varreu a  alquebrada Europa e encontra pobreza e distúrbios em vários lugares. O levante de 1848 na mesma França, foi retratado por Victor Hugo, Dostoiévski disseca uma Rússia muito atrasada em evolução industrial e a falta de perspectiva para o futuro.Dostoiévski é o reflexo desta situação de adaptação daquilo que chegava do oeste europeu. O escritor russo espelha-se em Raskólnikov e Nietzsche se refugia em Zarathustra. A evolução do humano não desconsidera os fatos do tempo, naquilo que Hegel chama de ZEITGEIST e o excelente jurista Friedrich Carl von Savigny que foi docente na Universidade de Berlim quando Hegel era o reitor, chama de VOLKSGEIST.

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            Os problemas possuem o seu tempo e o povo possui suas necessidades. Na dicotomia entre o homem amargurado pela culpa de Dostoiéski e o homem além da culpa de Nietzsche, seja possível, sem ser sacrílego, dizer que há espaço para o homem sem caráter, Macunaíma, um herói sem caráter , como define seu criador, Mário de Andrade, um “Anti-herói”. Nas primeira páginas  de Mário de Andrade encontramos quem é Macunaíma: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite." Macunaíma : Der Held ohne jeden Charakter. Em um belo texto de Arnaldo Moraes Godoy, encontramos uma passagem de boa reflexão que nos faz pensar o quanto de nós se espelha nas páginas da criação de tantos autores e de tantos clássicos literários. Somos o produto do nosso tempo e da construção daquilo que temos como sagrado e daquilo que compreendemos como certo e/ou errado. Leiamos:

“É o individualismo triunfante de Robinson Crusoé, mito típico da liberalidade burguesa, ao lado de Fausto, de Don Juan , de Don Quixote . O choque entre republicanos e monarquistas em Esaú e Jacó , de Machado de Assis. A burocracia do Sr. K, no Processo , de Franz Kafka. Temas de bioética no Frankenstein de Mary Shelley e no Dr. Jekyl e Mr. Hide , de Robert Louis Stevenson. O bacharelismo oco no Conselheiro Acácio, personagem de O Primo Basílio , de Eça de Queiroz”[7].

           

                A culpa que atormenta as páginas de Dostoiévski em toda a sua colossal obra é o somatório do curso da civilização ao longo de milênios. Nós não fugiremos à responsabilidade ética que nos legaram costumes e tradições milenares. O embate final entre o homem atormentado e o homem assassino de Deus, na concepção de Nietzsche,  pode levar ao reconhecimento da própria morte do homem de acordo com Foucault. A literatura é uma forma de expressar essa luta humana que encontrou seu campo de batalha propício no século XX e sua hora marcada no século XXI. A civilização se fragiliza por si, a construção de todas as formas de saber foram as alquimias utilizadas à procura da PEDRA FILOSOFAL, erramos, encontramos , todavia, o homem agonizante a querer ser mais que sua condição, não sem aviso. Dom Quixote, o velho impregnado de moral e justiça, todavia, alucinado pela velhice, enfrentou moinhos como se enfrentasse dragões e monstros atormentadores. Sancho Pança, a velha voz da consciência, nada podia fazer senão cá e acolá, tentar trazer o seu MESTRE à realidade da existência. Monstros há, reais ou irreais, a literatura nos ajuda a compreendê-los.

Sérgio Ricardo de Freitas Cruz  


[1]DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo, Nova Cultural , São Paulo 2003.  

[2] Comungo e entendo a tradução de Übermensch conforme Rubens Rodrigues Torres Filho faz ao termo(ver seus comentários no volume dos “Pensadores”, p. 236,313,383.  A idéia do parágrafo IV do Zarathustra nos remete a uma superação horizontal, ou seja, um alcance além de si mesmo (N.A).

[3] NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo.  COMPANHIA DE BOLSO. Tradutor: Paulo Cesar de Souza.

[4] ” A palavra “super-homem”, para designação de um tipo que vingou superiormente, em oposição a homens “modernos”, a homens “bons” , a cristãos e outros niilistas- palavra que na boca de um Zaratustra, o aniqulidador da moral , dá o que pensar- foi entendidaem quase toda parte, com totalinocência, no sentido daqueles valores cuja antítese foi manifesta na figura de Zaratustra: quer dizer, como tipo “idealista” de uma mais alta espécie de homem, meio “santo” , meio”gênio”...Uma outra raça de gado erudito acusou-se por isso de darwinismo. Reconheceu-se nisso até mesmo o “culto do herói”, por mim tão desdenhosamente rejeitado, daquele grande falsário inconsciente e involuntário, Carlyle. A quem sussurrei que deveria procurar em torno por um Cesare Borgia, não por um Parsifal, este não confiou em seu ouvido”. Tradução feita a partir do livro ECCE HOMO de Nietzsche, por PAULO CÉSAR DE SOUZA- Companhia das Letras 2ª edição.   Peço ao leitor que considere a nota de rodapé nº 2 com relação à tradução do termo ÜBERMENSCH. O excelente Paulo César de Souza nasceu em Salvador, em 1955. Licenciado em história pela Universidade Federal da Bahia, doutorou-se em literatura alemã na USP. É editor e tradutor, tendo recebido dois prêmios Jabuti, pela tradução das obras de Nietzsche e de Brecht. Coordena a coleção do filósofo alemão publicada pela Companhia das Letras desde 1992. É ele que mesmo ao traduzir Übermensch como super-homem, remete a Rubens Rodrigues Torres Filho.

[5]  Psicanalista, doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ, professora adjunta da UERJ integrada ao Programa de Pós-graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia, membro da Intersecção Psicanalítica do Brasil, autora do livro “A ética da diferença: um debate entre psicanálise e antropologia”, Rio de Janeiro , Eduerj /Jorge Zahar Ed., 1996.

[6]  Gilles Deleuze e Félix Guattari. O anti-Édipo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi . Coleção Trans. 2010

[7] DIREITO E LITERATURA. Arnaldo Moraes Godoy. In: http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/573/753(Consulta em 29/03/2015 às 19h49)

Sobre o autor
Sérgio Ricardo de Freitas Cruz

Mestre e doutorando em Direito. Membro do IBCCRIM e do IBDFAM.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

A questão da punição no século XIX envolta na idéia de culpa como forma de expiação.

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