O conhecimento de carga eletrônico no transporte marítimo

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21/04/2015 às 20:22
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O conhecimento de carga eletrônico no transporte marítimo é tema que desperta profundo interesse, eis que envolve o comércio marítimo internacional e as problemáticas ligadas ao instrumento, como o "hackeamento" de informações contidas no novo modelo.

Lista de siglas:

BOLERO - Bill of Lading Electronic Registry Organization

UNCITRAL – United Nation Commission on International Trade Law

EDI – Electronic Data Interchange

BIMCO – Baltic and International Maritime Council

UNNExt – United Nations Network of Experts for Paperless Trade in Asia Pacific

ESCAP - United Nations Economic and Social Commission for Asia and the Pacific

UNECE - United Nations Economic Commission for Europe

EssDOCS – Electronic Shipping and Trade Document

INTRODUÇÃO

            O tema desperta profundo interesse a partir do momento em que se trata de um instrumento fundamental nas operações que envolvem o comércio marítimo internacional, atividade das mais antigas do mundo e que em muito contribuiu para a expansão da sociedade.

             Atrai ainda mais atenção o fato de ser ligado à evolução tecnológica recente e que ainda busca afirmação diante do panorama de transição entre o modelo anterior, efetivamente consolidado, mas que se mostra obsoleto em alguns aspectos, ante o desenvolvimento da atividade e a dinamização das relações mercantis.

            Nesse sentido, o presente estudo visa revelar os projetos em que está inserido o conhecimento de carga eletrônico, trazendo, pois, a sua análise conceitual, abordagem quanto à sua natureza, e aspectos relevantes que favorecem a implantação do instrumento, bem como aqueles que fragilizam sua perpetuação, e que geram a desconfiança de vendedores e compradores quanto à transição do documento baseado em papel para o documento virtual, assim como proposto pela Convenção de Roterdã de 2008.

            Destarte, far-se-á uma análise mais detida quanto às dificuldades de aplicabilidade do instrumento no processo de substituição dos modelos, sugerindo-se eventuais reflexões e soluções, bem como se apreciarão as questões atinentes à insegurança gerada pelas fraudes e “hackeamento” de informações em trânsito na rede, com o plano do estado da arte no que se refere à proposição de alternativas à problemática, evoluindo-se, pois para uma reflexão que alcance a melhor direção para contribuir com a consolidação do instituto.

1.         O CONHECIMENTO DE CARGA ELETRÔNICO NO TRANSPORTE MARÍTIMO

            O conhecimento de carga eletrônico (electronic bill of lading) é um documento crucial na realização de transporte de mercadorias por via marítima e nasce da modernização e evolução tecnológica atinente ao mundo hodierno. Assim como se vê em todos os campos de atuação mercantil existentes no planeta, o transporte de mercadorias por via marítima não deixaria de se desenvolver para que a relação entre transportador e embarcador se desse de forma mais dinâmica e segura. Entretanto, isto gera a necessidade de se adotar novos procedimentos baseados em tecnologias desenvolvidas para acelerar o controle do processo de transporte e, por conseguinte, aumentar a capacidade produtiva, gerando, pois, mais lucros. 

            Nesse mister, passa-se a analisar as algumas das mais notáveis características do conhecimento de carga na via eletrônica, notadamente quanto aos principais projetos lançados, às regras de substituição em relação ao modelo anterior, bem como para que se debruce sobre algumas das principais problemáticas nascidas com o modelo, como por exemplo, o conflito decorrente desta substituição, as dificuldades quanto à exclusividade de controle e a participação de uma terceira parte, as garantias criadas para proteção da informação e, notadamente, as dificuldades com o “hackeamento” de dados.

1.1.    Conceito

            Ao se iniciar a abordagem da temática, mister destacar-se brevemente alguns aspectos quanto à conceituação do conhecimento de carga e sua importância no transporte de mercadorias por via marítima.

            Com efeito, o conhecimento de carga também chamado de conhecimento de embarque, conhecimento de transporte ou documento de transporte é o principal documento utilizado para formalizar um contrato de transporte marítimo de mercadorias. Neste estão especificadas todas as informações referentes à carga transportada e também todas as responsabilidades atinentes às partes envolvidas no contrato, vendedor e comprador, bem como seus intermediários, transportadores e embarcadores, seguradoras, dentre outros.

            Segundo WERNECK[1], cabe ao conhecimento de carga descrever o que é a mercadoria - incluindo-se o peso, quantidade de volumes, características físicas e marcas; definir o proprietário da mercadoria – o documento pode ser nominal ou à ordem, sendo neste segundo caso o dono aquele que possuir o conhecimento de embarque; informar quem deve ser avisado quando a carga chegar ao seu destino e definir o próprio transporte, desde o local em que é embarcada até o local de saída e o valor pelo transporte.

            Assim, o conhecimento de carga representa o próprio contrato, tem função de recibo e característica de título de crédito[2] – define a titularidade e pode ser transferido de mãos -, sendo o que autoriza o resgate da carga ao final do transporte marítimo.

            Nesse sentido, vê-se que o conhecimento de carga passa por diversos intermediários antes de chegar ao destinatário final, o comprador ou importador da mercadoria transportada.

            Por este motivo, gera uma série de obrigações em cada ente intermediário da cadeia de transporte e ainda podem surgir problemáticas quanto à questão procedimental e segurança.

            Sendo assim, sua versão eletrônica nasce como forma de suprir as necessidades surgidas com a aceleração das relações mercantis, em que o modelo baseado no papel se tornou demasiadamente lento e custoso. Vê-se como característica fundamental a transmissão de informações (por vezes sigilosas) não mais via papel, mas por via eletrônica através de mensagens enviadas e recebidas principalmente entre transportador e embarcador.

            E diante desta tecnologia, observar-se-ão implicações[3] que podem gerar a fragilidade do modelo e que devem ser analisadas com cautela, para que se proponham soluções à insegurança identificada, como forma de consolidar sua aplicação no cotidiano das relações comerciais marítimas.

1.2.    Principais Projetos

            Ab initio, impende enfatizar que o conhecimento de carga eletrônico remonta uma história recente, desde o Protocolo de Montreal de 1975 que previa norma aberta no sentido de gerar a possibilidade de se utilizar qualquer outro meio no qual se preservasse o registro de mercadoria negociada, bem como a Convenção de Hamburgo de 1978 que já previa em seu art. 14, 3, a utilização de meios eletrônicos na assinatura do conhecimento de carga[4].

            No entanto, busca-se a seguir realizar um sobrevoo quanto aos principais projetos que trataram e desenvolveram o conhecimento de carga eletrônico, tendo em vista o prisma central do tema.

            Com efeito, o projeto que precedeu efetivamente o conhecimento de carga eletrônico foi o The Seadocs Systems de 1986, sistema que previu a administração de um conhecimento de carga eletrônico baseado no depósito em uma central de registros do original em papel.

            Segundo SENEKAL[5], o projeto não era totalmente automatizado e o seu objetivo era proteger as partes envolvidas no negócio de alterações fraudulentas no curso do transporte da mercadoria negociada.

            Outro modelo com características de sistema é aquele conhecido como The BOLERO System de 1998, criado a partir de um clube fechado de transportadores, com o objetivo de criar maior interação operacional entre as áreas de negócio e a indústria de comércio internacional.

            O sistema era baseado no intercâmbio eletrônico de dados (EDI) entre a central de controle e seus usuários, sendo que aquela tinha acesso a todos os dados referentes ao conhecimento de carga, realizando, pois, a governança das informações e validação das mensagens trocadas.

            Neste modelo não se fala em electronic bill of lading, mas em bolero bill of lading, o que representa a especificidade do sistema, a ponto de dar nome diverso ao conhecimento de carga eletrônico[6], como forma de padronizar e caracterizar as operações realizadas sob a égide do referido projeto, que segundo MARTIUS[7] reclama fundamento em um contrato avençado entre as partes, com acordo de utilização do regramento analisado.  Tal sistema também é dotado de um livro de regras chamado Rulebook, que é parcialmente baseado nas regras para conhecimento de carga eletrônico apresentadas pelo Comitê Marítimo Internacional[8], sobre o qual falar-se-á a seguir.  

            Destarte, há as regras publicadas pelo Comitê Marítimo Internacional[9] em 1990 acerca da direção e regulamentação das transações que envolvessem o conhecimento de carga eletrônico (CMI Rules For Electronic Bills of Lading).

            Destaque-se que estas regras também têm aplicação quando incorporadas no contrato de transporte da mercadoria vendida – assim como no projeto anterior -, e não se sobrepõem ou substituem as leis nacionais vigentes sobre o tema, bastando para tanto que as partes possuam a tecnologia adequada para adotar o modelo, sem que seja necessária a participação em algum grupo ou clube que exija o pagamento de taxas.

            Neste modelo, substitui-se o conhecimento de carga por uma chave de segurança privada (private key), a qual garante o controle das informações sobre a mercadoria transportada. Aqui se identifica uma proximidade quanto aos projetos anteriores no que toca à existência de uma figura central que exerce o controle do conhecimento de carga, sendo naqueles um órgão central e in casu o embarcador o próprio administrador[10].

            Relevante é observar que neste regramento o que se prevê é a transmissão de informações diretamente entre transportador (carrier) e embarcador (shipper), criando, pois, um sistema privado de transmissão de dados.

            Assim, não há a exigência de que se passe por uma central de registro de conhecimento de carga eletrônico, como nos dois modelos anteriores.

            Outra normatização a ser apontada quanto ao conhecimento de carga eletrônico é a lei modelo da UNCITRAL (UNCITRAL Model Law on Electronic Commerce) sobre comércio eletrônico[11], apresentada em 1996 e que tem como escopo dar o direcionamento através de um conjunto de normas para aqueles países que pretendam criar leis próprias no que se refere ao comércio eletrônico.

            Interessante observar que este conjunto de regras não prenuncia especificamente normas atinentes ao conhecimento de carga eletrônico, porém ao delimitar seu objetivo trata de manter um campo amplo de aplicação das regras ali previstas, ao mencionar em seu art. 1° que “aplica-se a qualquer tipo de informação na forma de mensagem de dados usada no contexto de atividades comerciais”, o que permite incluir aquelas informações provenientes de comércio marítimo de mercadorias.  

            Outrossim, diante da diversidade de projetos existentes quanto ao conhecimento de carga eletrônico e notadamente quanto à evolução tecnológica e comercial aplicada ao transporte de mercadorias (o que já não era atendido pelas Convenções anteriores – Hamburgo e Haia), foi apresentado regramento proposto na Convenção para comércio internacional de mercadorias parcialmente ou totalmente pelo mar adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 11 de dezembro de 2008, conhecido como Regras de Roterdã[12] ou Convenção de Roterdã, a qual aglutinou e uniformizou[13] as regras quanto ao comércio total ou parcial de mercadorias pelo mar , as normas quanto ao conhecimento de carga eletrônico (em seu texto de forma descompactada, diga-se a priori).

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            Com efeito, vê-se em seu art. 1° a definição de conhecimento de carga eletrônico (denominado electronic transport record), sendo que o tratamento dado ao instrumento somente se faz presente no capítulo 3, sem que se perca de vista as previsões do capítulo 8 que também se estendem ao modelo objeto do estudo e dos capítulos 10 e 11 que versam sobre transferência do direito de controle e de direitos incorporados, respectivamente[14].

            O conjunto normativo nasceu em vias de unificar o regramento previsto nos demais projetos e alcançou o mínimo de 20 países signatários (hoje conta com 25 países signatários, dentre eles Estados Unidos, Holanda, Suécia, Noruega, Dinamarca e Suíça), tendo sido ratificado, pois, apenas por Togo, Congo e Espanha[15]. Portugal e Brasil não são signatários da Convenção.

            É sobre este último diploma, que traz em seu bojo regras mais claras sobre as responsabilidades legais em todas as etapas do transporte marítimo de mercadorias, incluindo-se, pois, as normas referentes ao conhecimento de carga eletrônico nosso objeto de análise a seguir.

1.3.      Natureza e modus operandi aplicadas nas Regras de Roterdã

            Antes da existência das Regras de Roterdã, não existia uma unificação quanto ao procedimento adotado na utilização do conhecimento de carga eletrônico. Cada projeto geria um processo específico, como se pôde identificar ao se analisar o sistema adotado pelo The Seadocs System, BOLERO System, ou CMI Rules.

            Evidentemente que existiam semelhanças dentre estes projetos destacados, como a figura de um terceiro gestor da informação e do tráfego de mensagens enviadas entre as partes, sendo diferenciado neste último por ser incumbido o embarcador deste papel, enquanto que nos dois primeiros essa função é realizada por centrais de registro ou centrais de controle, como destacado anteriormente.

            No entanto, sem que se tenha a pretensão de exaurir o tema, eis que possui previsões extensas e de diversas naturezas quanto ao conhecimento de carga eletrônico, e que, portanto mereceriam detida análise, convém destacar sucintamente alguns dos aspectos relevantes das Regras de Roterdã, como a análise do escopo dado à Convenção pelo legislador, e, notadamente às normas que versam sobre a substituição do conhecimento de carga para o modelo eletrônico, tendo em vista as problemáticas surgidas com a sua aplicação no comércio marítimo, bem como as dificuldades quanto à exclusividade do controle e quanto às exigências descritivas do documento, que por lapso podem gerar enormes prejuízos a um negócio.

            Com efeito, à luz do que prevê o art. 1°, 18, é denominado por registro eletrônico de transporte (electronic transport record[16]), aquele fundamentalmente composto por informação em uma ou mais mensagens emitidas por comunicação eletrônica realizada pelo transportador ou pela parte executante do contrato que baseia a relação estabelecida, informação que pode estar anexa ou de outra forma vinculada ao registro eletrônico de transporte, seja simultânea ou subsequentemente à emissão do documento, com o escopo de se tornar a comprovação do recebimento da carga pelo transportador ou embarcador e também como evidência do próprio contrato de transporte[17].

            Assim, nota-se no registro eletrônico de carga a natureza contratual e de recibo amparado por contrato de transporte, além de ser um título de crédito, eis que pode trocar de mãos, assim como se dava com o modelo baseado em papel[18][19].

            Destarte, note-se que a Convenção apresenta uma preocupação com a existência do consentimento entre as partes quanto à utilização das regras para o registro eletrônico de transporte, na medida em que não obriga, mas cria a possibilidade de utilização do instrumento no negócio celebrado. Veja-se que na alínea “a” do art. 8° o legislador utiliza o termo “may”[20] como forma de elidir a aplicação compulsória do instrumento, entretanto surge como facilitadora de sua utilização.

            E exatamente neste mister, vê-se a intenção de equiparação quanto a vários aspectos atinentes ao registro de carga comum, modelo anterior baseado no papel, como se ilustra no texto da alínea “b” do art. 8°, segundo o qual a emissão, controle exclusivo ou transferência do instrumento eletrônico têm os mesmos efeitos que a emissão, posse ou transferência do documento de papel[21].

            Neste sentido, pode-se dizer que a Convenção abarca um propósito de transição entre os modelos, formalizando, pois, uma alternativa ao modelo de papel tradicional e incentivando a utilização do modelo eletrônico, mas sem deixar de ter atenção aos impactos que uma mudança brusca de modelo poderia causar à sistemática operacional standard habitualmente utilizada por séculos[22].

            Por outro lado, deve-se dar atenção à permissão de alguns procedimentos passíveis de crítica por gerarem problemáticas como exemplo àquela vislumbrada no art. 10 do regramento estudado.

            Neste artigo e suas alíneas, crê-se que o legislador optou por relativizar o procedimento operacional, facultando a substituição de um registro de transporte por um registro eletrônico de transporte, tendo em vista a ideia de transição aplicada à Convenção, com a suspensão do primeiro e sua invalidade a partir do momento em que o segundo for emitido, desde que este contenha expressamente a opção pela substituição do primeiro.

            Com efeito, o que pode correr in casu é que por um erro procedimental ou má equação logística desta operação, 1) pode deparar-se com a repartição de poderes de duas partes sobre a mesma carga, ou 2) pode entender-se pela existência de poderes idênticos de duas partes sobre os mesmos produtos, ou ainda 3) deparar-se com o fato de que o domínio sobre a mercadoria está nas mãos de quem já deveria ter o documento invalidado, mas que por ser físico e ter natureza de título de crédito, pode ser transferido com facilidade, gerando uma possível fraude.

            É de se dar atenção ao fato de existirem diversas problemáticas decorrentes de uma mesma situação. Fala-se de dificuldades quanto à exclusividade de controle e problemas colaterais como o de responsabilidade pelos bens transportados[23].

            Neste sentido, parece oportuno que prima facie seja regulada de forma mais adstrita essa operação de substituição ocorrida do papel para o meio eletrônico, sendo, pois, registrada neste a impossibilidade de coexistência dos dois modelos e a soberania do mais moderno, como via de se dirimir a problemática surgida, desde que esta tenha sido a intenção de ambas as partes quando acordaram pela transição de instrumentos.

            Assim, a substituição geraria automaticamente a invalidade permanente do instrumento anterior, evitando a coexistência de ambos e a perda da exclusividade do controle.

            No entanto, pode se levantar a questão do momento em que poderia se legitimar essa cláusula expressa de invalidade. Neste viés, quando o registro eletrônico de transporte então começaria a produzir efeitos quanto à declaração de invalidade do documento de transporte?

            Como a Convenção não regulamenta esse procedimento, mas apenas dirige o processo de substituição, seria oportuno então que se estabelecesse um “marco inicial”, que poderia se dar com o envio de uma mensagem e recebimento de sua resposta, validando, pois, a substituição. Assim, também se valeria da tecnologia para transmissão de mensagens em tempo real e prontamente se teria dirimida a questão, pelo menos em tese.

            Aliás, a questão do controle exclusivo gera reflexos quanto à questão que envolve a segurança do documento eletrônico e, obviamente, das informações que são transmitidas virtualmente, mister que será analisado mais detidamente no tópico a seguir.

            Outra questão que pode suscitar um imbróglio é quanto à diferenciação feita entre registro eletrônico negociável (aquele em que se enquadra o conhecimento de carga) e não negociável, eis que se exige aposição da palavra expressão “à ordem” ou “negociável” no primeiro, como forma de se diferenciar do segundo.

            Assim, se por acaso não houver esta diferenciação aposta no documento eletrônico, pode-se elidir a sua característica de possível negociação, o que gera prejuízos ao negócio.

            Neste sentido, salutar entendimento enunciado por SOVERAL MARTINS[24] quanto à reflexão da doutrina sobre o assunto, quando leciona que parece mais factível então analisar-se o critério da negociabilidade pelo contexto do documento e não apenas a descrição aposta em seus termos.

            Não parece haver solução mais adequada para a questão, tendo em vista que pela análise contextual dos termos do documento eletrônico se podem alcançar as propriedades da avença quanto a sua negociabilidade ou não.

            Como se vê, uma série de peculiaridades e certas fragilidades surgem a partir do nascimento de um regramento de caráter inclusivo no que se refere à facilitação do processo de aplicação do registro eletrônico de transporte.

            Preocupação constante quanto a esta gradativa substituição do modelo baseado em papel é quanto à segurança do modelo virtual, à confiabilidade de sigilo na transmissão de dados via internet e notadamente quanto ao “hackeamento” de informações que gerem operações fraudulentas, pondo em risco a relação entre vendedor e comprador, além de todo o sistema de comércio marítimo de mercadorias.

            E sobre esses aspectos far-se-á breve abordagem a seguir.

1.4.      O ataque de hackers e as alternativas para o tráfego de dados

            O tema revela grande interesse, pois sabe-se das dificuldades em manter sigilo com a vida conectada ao mundo virtual, em que as informações estão disponíveis para consulta em tempo real, mesmo que se restrinja o acesso, e este é um dos enormes desafios da segurança digital.

            Evidentemente, tais questões também se estendem e adquirem ainda maior envergadura quando tratadas na vida negocial e na aplicabilidade de novas tecnologias para dinamização do comércio internacional.

            Nesse viés, está situada a questão atinente ao objeto de estudo do presente trabalho, porquanto o conhecimento de carga na modalidade eletrônica está sujeito a esta insegurança recorrente vislumbrada nos meios virtuais por onde trafegam as informações sigilosas e também especialistas em conseguir acessá-las[25].

            Como então garantir a exclusividade do domínio da informação?

            Primeiramente, como bem leciona SOVERAL MARTINS[26] em seu estudo, há que se garantir que o documento eletrônico emitido seja aquele e que não seja alterado, para que daí se fale em controle exclusivo do documento.

            No âmbito dos projetos aqui já brevemente apresentados em tópico anterior, vislumbram-se diferentes propostas no mister de tornar o documento eletrônico mais confiável e o tráfego de dados mais seguro.

            Com efeito, podem-se mencionar as regras do BOLERO System, onde há uma terceira figura na relação operacional representada por uma central que controla os registros eletrônicos levados a cabo durante a realização do negócio avençado, relação esta governada pelo Rulebook que deve ser seguido durante todo o procedimento operacional.

            Em sentido semelhante, há a CMI Rules em que a terceira parte responsável pelo controle de informações eletrônicas do negócio é o próprio intermediário, exercendo o papel de possuidor do conhecimento eletrônico e de uma chave privada que é repassada ao vendedor e a partir daí realizam-se transmissões de mensagens por via eletrônica, sendo, pois, produzida nova chave quando as tratativas tiverem vez com o adquirente.

            Assim, no que concerne aos sistemas operacionais sem papel, conhecidos como paperless trading systems, importante aduzir duas caraterísticas amplas de responsabilidades que podem emergir e, portanto devem ser analisadas, tendo em vista as vantagens e desvantagens nascidas com a nova sistemática proposta.

            Com efeito, a primeira delas é aquela que decorre particularmente de falhas encontradas no próprio sistema, sejam referentes à administração do modelo operacional eletrônico ou mesmo do próprio software[27], o que resulta em algum risco pelo tráfego virtual de informações.

            A segunda se refere ao risco natural de utilização normal dos meios eletrônicos, a qual é passível de falhas intrínsecas à vida pessoal ou profissional ligada ao mundo virtual de tráfego de informações[28].

            A pergunta que se deve fazer quanto aos dois casos é se este risco é justificado ante a evolução tecnológica e sua demanda por mais dinamismo no mercado de transporte marítimo de mercadorias.

            E quando se fala nestes riscos, abordam-se questões de suma importância para o negócio realizado, como o atraso na entrega da carga que é operacionalizada através de um sistema que foi corrompido ou perdeu informações sensíveis, ou até mesmo a perda do objeto do transporte, o que pode significar aumento de custos ou significativas perdas de mercado[29].

            Inobstante notarem-se riscos severos, parece que a exigência de mercado quanto à aplicação de novas tecnologias que envolvam as vias eletrônicas, como o conhecimento de carga eletrônico, é um caminho sem volta.

            Por outro lado, não se pode deixar de lembrar que qualquer operação de transporte de mercadorias têm seus riscos, mesmo aquelas sob a égide do modelo de papel.

            Destarte, além do apelo ambiental, que na verdade nem se leva tanto em consideração (infelizmente) quando se busca evoluir para um documento eletrônico – mesmo que se pudesse arguir este aspecto em defesa do novo modelo -, há que se mencionar que o conhecimento de carga também carrega consigo suas inseguranças e dificuldades, o que, portanto, sabe-se desde sempre estar inerente ao negócio comercial em questão.

            O fato é que com o apelo ao título eletrônico, carrega-se também o fardo de se manter em constante evolução a busca por alternativas que assegurem o controle e segurança do processo operacional que envolve o conhecimento de carga eletrônico, com a implantação de plataformas de segurança modernas e atualizadas em tempo real.

            De outra banda, ao voltar-se à Convenção de Roterdã, nota-se que esta traz em seu bojo apenas regras norteadoras quanto à utilização do conhecimento de carga eletrônico no que atine a garantia da segurança da informação trasladada.

            É de se dar destaque ao fato da norma efetivamente orientar essa relação jurídica no escopo de se alcançar a segurança, mas convém mencionar que não enumera quais seriam tais procedimentos para se atingir o fim proposto, i.e., a segurança em questão.

            As regras previstas no art. 9° não parecem propor um caminho para esta regulação mais adstrita.

            Nesse sentido, inevitável a reflexão sobre o pensamento de que se a convenção definisse os procedimentos de emissão, controle e transferência, possivelmente sua letra restaria obsoleta em pouco tempo, na medida em que o avanço tecnológico em matéria de procedimentos virtuais é indubitavelmente veloz, o que mataria a letra da lei em pouco tempo[30].

            Nesse sentido, fica a cargo dos contratantes adotarem procedimentos que garantam a segurança exigida pela norma, respeitando-se, pois, seus pressupostos norteadores mínimos, o que parece bem mais perspicaz por parte do legislador, na medida em que permite que a evolução tecnológica também possa servir para evitar possíveis fraudes.

            Por outro lado, há posicionamentos no sentido que essa segurança que é esperada nas relações comerciais eletrônicas com base no conhecimento de carga eletrônico deve ser garantida por leis específicas de segurança para transações[31]. Transfere-se, pois, a responsabilidade para o Estado de elaborar normas que materializem as diretrizes propostas pela Convenção através da regulamentação do instituto[32].

            Inobstante, como ressaltado alhures, há ferramentas no mercado[33] que propõem tecnologia de segurança da informação quanto ao conhecimento de carga eletrônico com a utilização de codificação na transmissão das mensagens, como a criptografia de dados com assinatura digital, a certificação digital, a biometria.

            Nesse sentido, existem empresas[34] no mercado de segurança da informação que possuem a tecnologia para promover essa maior segurança nas relações comerciais estabelecidas entre as partes que estabelecem um contrato com base em um conhecimento de carga eletrônico.

            No entanto, parece que em qualquer dos casos, faz-se necessária a atuação de uma terceira pessoa que seja a portadora dessa fonte de informações lastreada no conhecimento de carga eletrônico, seja um intermediário envolvido na operação de transporte, central de registros, instituição financeira ou empresa especializada contratada para exercer a função.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Diante do aprofundamento da questão estudada no presente artigo, nota-se que o conhecimento de carga eletrônico se faz necessário para que o transporte marítimo de mercadorias continue se dinamizando.

            É patente que o conhecimento de carga não acompanha a dinâmica atual das relações operacionais realizadas na movimentação de bens negociados e transportados por via marítima.

            Nesse sentido, parece absolutamente relevante que se desenvolva um instrumento que seja dotado de toda a versatilidade de que dispõe a tecnologia para que acelere a cadeia de transporte, dê conhecimento às partes em tempo real, em qualquer região do planeta acerca do produto transportado e das características do negócio.

            Isto tudo é clarividente e conveniente.

            Por outro lado, a transição de um modelo consolidado que remonta a Idade Média para um modelo eletrônico que já nasce cercado pelos riscos atinentes às atividades desenvolvidas no mundo virtual seguramente não se dará de forma instantânea.

            Será preciso tempo e aplicabilidade na vida prática[35] pelos próprios comerciantes, paulatinamente, como forma de criarem confiança e se subsidiarem para que a relação comercial se dê envolta de uma bolha protetiva criada seja por um ordenamento jurídico que regule de forma consistente a matéria dirigida pelas Regras de Roterdã, seja pela aplicação concomitante de alguns dos benéficos aspectos normativos existentes em sistemas como da CMI Rules ou BOLERO, ou mesmo seja recorrendo à iniciativa privada através das empresas especializadas em controlar o tráfego de mensagens através da criptografia de dados, biometria, assinatura digital ou certificação digital, sem prejuízos de quaisquer outras alternativas que sejam desenvolvidas.

            Mesmo assim, veja-se que com toda a tecnologia disponível para a segurança, jamais se pode garantir que se está totalmente livre da ação de fraudadores da rede. Como exemplo deve-se mencionar a recém-ocorrida invasão hacker do sistema russo de navegação por satélite chamado GLONASS[36], que mesmo com todo o aparato tecnológico não se viu livre da ação planejada por piratas da rede.

            Destarte, o elemento que parece que não abandonará o conhecimento de carga eletrônico é a sensação de insegurança quanto às informações trafegadas, eis que não parece que haverá mudança quanto ao panorama da velocidade com que se cria uma proteção e em seguida se burla o sistema.

            Resta saber se assim como na vida pessoal, os comerciantes vão se acostumar a viver a mercê dela, e, para além disso, se a dinâmica ditada pelo mercado sustentará os riscos do negócio, assim como o fez até então.

            Fato é que as organizações de cooperação comercial estabelecidas entre as nações vêm investindo na elaboração de estudos conjuntos baseados em casos de sucesso para formação de cláusulas que fomentem a utilização e resolvam problemáticas nascidas com a implantação do conhecimento de carga eletrônico, como é o caso da BIMCO, que se posicionou no sentido de apontar para a essDOCS[37] e BOLERO como plataformas fornecedoras de soluções (em suas palavras, solution providers)[38], e também ao estabelecer cláusulas que igualam em termos de efeitos os dois modelos de conhecimento de carga[39], tudo com o escopo de atender a demanda internacional pela dinamização e evolução das operações comerciais marítimas de transporte de mercadorias.

            Destarte, deve-se observar se todo esse esforço comercial, operacional, político, econômico e jurídico na busca por soluções aos problemas inerentes ao comércio marítimo no mundo virtual será capaz de deter ou antever o esforço empenhado por aqueles que almejam full time fraudar o sistema.

REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Wilson Pantoja Machado

Advogado, pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela FGV, especialista em Direito das Relações de Consumo pela PUC-SP, mestrando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra (email: [email protected]).

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo científico aprovado na disciplina Contratos Comerciais Internacionais, vinculada ao Mestrado em Direito da Universidade de Coimbra, Portugal.

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