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Os princípios reitores do direito público e do direito privado e o princípio da autonomia da vontade regrada

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6. A Feição Moderna do Princípio da Autonomia da Vontade: O Princípio da Autonomia da Vontade Regrada.

            Como visto, o direito brasileiro optou pela adoção do modo capitalista de produção, razão pela qual, primeiramente, encontra fundamento a dicotomia direito público-direito privado, e segundamente, a existência do princípio da autonomia da vontade, que fundamenta este último.

            No entanto, com o afastamento do pensamento liberal-individualista dos séculos XVII e XIX, e mesmo do início do século XX, o Estado se viu obrigado a intervir de forma mais efetiva na economia, seja de forma direta, explorando e produzindo bens e serviços, seja de modo diretivo, como seja, impondo limites ao exercício da liberdade de contratar e à fruição do direito de propriedade.

            Pois bem. A intervenção direta do Estado na economia gera aquilo que pretendemos denominar de princípio da autonomia da vontade regrada, que quer significar, basicamente, a oposição de barreiras, de proibições e limitações ao exercício pleno do direito de propriedade, na concorrência econômica, na formulação dos contratos, em especial no razoavelmente novo ramo do direito, o direito do consumidor.

            Vejamos alguns exemplos na Constituição da República.

            No artigo 5º, incisos XXII e XIII, logo após a Carta Magna prescrever que o direito de propriedade está assegurado, impõe a seguinte limitação: "[...] a propriedade atenderá a sua função social [...]".

            Lembremo-nos que a doutrina liberalista do direito considerava o direito de propriedade como sendo sacro, como seja, ilimitável, manifestado no quadrinômio ius utendi, fruendi, abutendi e reivincatio, ou seja, direito de usar, gozar, dispor e reivindicar o bem objeto de propriedade. Estas formas de expressar o direito de propriedade significavam que o bem poderia ser utilizado da forma que o proprietário bem quisesse, sem que houvesse qualquer forma de limitação a este direito, a não ser aqueles decorrentes da própria moralidade pública e do direito de vizinhança.

            Com o ruir do liberalismo, em especial com o surgimento do welfare state, a propriedade passou a sofrer inúmeras limitações, principalmente aquelas que implicam no seu uso racional e socialmente útil, gerando riquezas em proveito de todos e não somente do proprietário.

            A Constituição dos Estados Unidos do México de 1917 foi uma das primeiras constituições a expressar norma equivalente, in verbis:

            Artigo 27 – A propriedade das terras e águas compreendidas dentro dos limites do território nacional, pertencem originariamente à nação, a qual teve e tem o direito de transmitir o domínio delas aos particulares, constituindo a propriedade privada.

            As expropriações somente poderão ocorrer em caso de utilidade pública e mediante indenização. A nação terá a todo tempo o direito de impor à propriedade privada as características que o interesse público ditar, assim como o de regular, em benefício social, o aproveitamento dos elementos naturais suscetíveis de apropriação, como forma de fazer uma distribuição eqüitativa da riqueza pública, cuidar de sua conservação, obter o desenvolvimento equilibrado do país e o melhoramento das condições de vida da população rural e urbana. Como conseqüência, fixar-se-ão as medidas necessárias para ordenar os assentamentos humanos e estabelecer provisões adequadas, usos, reservas e destinos de terras, águas e bosques, para efeito de executar obras públicas e de planejar e regular a fundação, conservação, melhoramento e crescimento dos centros populacionais; para preservar e restaurar o equilíbrio ecológico; para o fracionamento dos latifúndios; para dispor, nos termos da lei regulamentar, a organização e exploração coletiva dos campos e comunidades; para o desenvolvimento da pequena propriedade rural; para o fomento da agricultura, da pecuária, da silvicultura e das demais atividades econômicas no meio rural, e para evitar a destruição dos elementos naturais e os danos que a propriedade possa sofrer em prejuízo da sociedade [...]

            Desta sorte, a propriedade, no Brasil, sofre inúmeras limitações de ordem pública, seja quando se impõe ao proprietário de imóvel urbano o dever de adequar e utilizar o imóvel em conformidade com o regramento urbanístico da cidade (plano diretor), sob pena de sofrer tributação progressiva sobre a propriedade do imóvel, e depois de vencidos cinco anos, ter o bem imóvel desapropriado por títulos da dívida pública (artigo 182, §§ 2º e 4º da CR c/c artigos 5º 7º e 8º da Lei 10.257/2001, dito Estatuto da Cidade), seja quando se impõe ao proprietário de terras rurais o uso socialmente útil da sua propriedade, que somente ocorre quando ele a explora observando os seguintes requisitos: a) aproveitamento racional e adequado, b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, c) preservação do meio ambiente, d) observância das disposições concernentes ao direito dos trabalhadores rurais, e e) exploração dos recursos naturais de modo que beneficie o proprietário e os seus trabalhadores (artigo 186 da CR). A inobservância destes requisitos acarreta o dever da União desapropriar o imóvel sem que o proprietário tenha direito a prévia indenização em dinheiro, mas antes em títulos da dívida agrária, resgatáveis em até 20 (vinte) anos (artigo 184 da CR), ou mesmo quando se impõe ao proprietário de imóvel ou bem de conteúdo histórico, artístico ou cultural o dever de preserva-lo, havendo ou não tombamento por parte do poder público (artigo 216, inciso V, §§ 2º e 4º da CR c/c artigos 1º e 2º do Decreto Lei nº 25/1937).

            No que diz respeito às limitações à contratação, esta se evidencia de forma muito clara e objetiva nos casos que envolvam o direito de consumidor.

            Com efeito, o artigo 5º, inciso XXXII da Constituição de 1988, prescreve que o "[...] Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor [...]", sendo que no artigo 170, inciso V, constitui-se a defesa do consumidor como um dos princípios gerais da ordem econômica.

            É princípio comezinho da hermenêutica que não existem disposições inúteis na Constituição, devendo o interprete haurir de todas elas o seu conteúdo normativo, pois expressam, em última análise, a vontade soberana do povo manifestada no ato de constitucionalização do Estado. Assim, o que quer expressar o princípio constitucional-econômico da defesa do consumidor?

            Basicamente três coisas: 1) o reconhecimento da hipossuficiência do consumidor no mercado de consumo, 2) como corolário, a manifesta desigualdade entre as partes envolvidas na relação de consumo, havendo, quase sempre, um efetivo exercício do poder econômico por parte do fornecedor e em detrimento do consumidor, e 3) a indispensabilidade de proteção do consumidor como forma de se criar: i) um mercado de consumo racional e eticamente estruturado, ii) a necessidade de se defender, no mercado de consumo, o elemento imprescindível de sua existência, como seja, o consumidor, sob pena de ruir o fundamento estrutural do modo capitalista: a circulação de riquezas, e iii) condicionar a exploração econômica ao ganho lícito, fundado no princípio da boa-fé.

            Acerca deste tema, colhe-se a seguinte lição de José Luiz Quadros de Magalhães:

            O direito do consumidor envolve a interferência do Estado em problemas ligados à qualidade do produto, à relação de consumo, ao preço, aos contratos de fornecimento de produtos e serviços, à publicidade, dentre outras coisas [...] Os direitos individuais do consumidor não se encaixam na teoria dos direitos individuais clássicos, como direitos contra o Estado [...] A necessidade de proteção do consumidor surge da expansão na economia com vultosos empreendimentos industriais, comerciais ou de prestação de serviços, comandada por maciça e atraente publicidade, criando novos hábitos, despertando ou mantendo o interesse da coletividade [...] Essa desigualdade entre consumidor e empresários traz a ocorrência de inúmeras práticas comerciais lesivas, resultantes de um sistema econômico competitivo, que nem sempre respeita os valores éticos, causando danos os mais diversos ao consumidor, conforme o caso, à vida, à saúde, à privacidade [...].

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            Em razão destas circunstâncias, o legislador infraconstitucional, obedecendo ao comando disposto no artigo 48 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, embora intempestivamente, elaborou a Lei nº 8078/90, dito Código de Defesa do Consumidor.

            Na parte normativa que se enquadra ao presente trabalho, o CDC prevê normas e princípios importantíssimos à efetiva proteção do consumidor, como, por exemplo, a) o dever de informação adequada e clara acerca dos bens e serviços que lhe são ofertados (artigo 6º, inciso III), b) a proteção contra publicidade enganosa e práticas comerciais abusivas (artigo 6º, inciso IV), c) a revisibilidade das cláusulas contratuais que imponham obrigações desproporcionais ou que venham a se tornar excessivamente onerosas em decorrência de fatos supervenientes (artigo 6º, inciso V), d) o princípio da vinculação da oferta no contrato (artigo 30), e, entre as mais importantes, a conceituação e o estabelecimento de proibição de cláusulas contratuais abusivas, dentre as quais se destacam: a) cláusulas que excluam, limitem ou transfiram a responsabilidade do fornecedor (artigo 51, incisos I e III), b) imponham a utilização compulsória da arbitragem (artigo 51, inciso VII), c) criem obrigações em detrimento do consumidor consideradas abusivas, desarrazoadas ou que imponham vantagem excessiva ao fornecedor (artigo 51, inciso IV), entre outras.

            O ponto nevrálgico de ordem constitucional acerca do tema alude ao seguinte aspecto: tendo o constituinte tratado de forma dessemelhante o consumidor e o fornecedor, com proveito ao primeiro, não teria ferido o princípio constitucional da igualdade?

            A resposta negativa se impõe. Com efeito, o princípio da igualdade, segundo o qual "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]", demanda a aplicação igualitária da lei a todos os que forem iguais. Mas esta igualdade há de ser de ordem substancial e objetiva, como seja, a igualdade deve ser inferida por elementos objetivos de modo a que a aplicação igualitária da lei a casos objetivamente dessemelhantes não importe em gravame ao princípio da justiça, objetivo fundamental da República Federativa do Brasil.

            Com efeito, o princípio da igualdade, na sua formulação clássica, já demandava a discriminação, pois há de se tratar igualmente ou iguais e desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade.

            Substancialmente o consumidor é o elo mais frágil no mercado de consumo, posto que, no mais das vezes, está sujeito aos contratos de adesão, sendo estes aqueles que o consumidor não "[...] possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo". (artigo 54, caput, do CDC), consectário do que a doutrina civil-constitucionalista denomina de contratualismo difuso, ou contratualismo de massa, ou mesmo não tem o conhecimento indispensável para o pleno entendimento do produto ou do serviço que adquire. Além disso, está sujeito ao marketing e à publicidade que vende os produtos como sendo a "oitava maravilha do mundo", ou os benefícios de se adquirir ou se filiar a produto ou serviço desta ou daquela empresa.

            Assim, é evidente que existem diferenças de ordens substanciais e objetivas entre os consumidores e os fornecedores, de modo que o tratamento discriminatório se impõe.

            Os dois exemplos que nós colhemos na legislação pátria são bastante para fundamentar aquilo que dissemos no início do presente item, como seja, de que o direito privado moderno se assenta não mais no princípio da autonomia da vontade puro, mas sim, no princípio da autonomia da vontade regrada, na medida em que o ordenamento jurídico, a começar dos princípios e normas constitucionais, impõe uma série de limitações há direitos que não concepção clássica eram ilimitáveis.

            A propriedade não é mais sacra. O contrato não se fundamente mais na palavra. Ambos desempenham o papel quase que preponderante na vida econômica da sociedade, não podendo ficar livres da influência, ao menos, limitadora de abusos nos seus respectivos exercícios.

            Desta sorte, entendemos que o princípio reitor do direito privado hodiernamente é o que denominamos de princípio da autonomia da vontade regrada.

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Sobre o autor
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira

advogado em Porto Velho (RO), bacharel em Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia, professor de Direito na Faculdade Associadas de Ariquemes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Marcus Vinícius Xavier. Os princípios reitores do direito público e do direito privado e o princípio da autonomia da vontade regrada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3871. Acesso em: 19 mai. 2024.

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