Perspectiva sociológica e pluralismo jurídico:

a necessidade de superação do bacharelismo-tecnicista na formação do profissional do direito

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11/05/2015 às 00:47
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3. O pluralismo jurídico e o profissional do direito

Buscamos salientar o caráter social do direito para fazê-lo emergir como instrumento de garantia da igualdade e justiça, que não pode ser ignorado na formação do profissional do direito. Para este profissional, torna-se fundamental considerar o direito como processo, entendendo-o como realidade móvel, flexível, dialógica e não  estritamente “lógico”, no sentido de não estar aprisionado ao formalismo das leis e à coerência dos fatos. O direito nasce da luta de classes, dos conflitos sociais, do permanente desejo de libertação e superação das desigualdades. É processo em devir, produto e produtor das transformações históricas.

Nessa perspectiva, entendemos que o direito, na sociedade capitalista, não é a pura e simples expressão da vontade da classe dominante. Nem é o simples reflexo das determinações econômicas, que uma concepção simplista da relação entre infra-estrutura e superestrutura poderia nos fazer crer. Podemos dizer que o direito moderno, pela sua função ideológica, institui-se como mediador entre as classes, uma vez que, para que o direito apareça como justo é necessário que possa manter uma lógica coerente com os critérios de igualdade, que possa ser utilizado como um  obstáculo à exploração desenfreada da classe dominada pela classe que está no poder. Trata-se aqui, de ocuparem-se as “brechas”, as lacunas que o próprio direito deixa, para o exercício da justiça.

Assim, fundamental distinguir entre direito e lei, uma vez que o direito deve ser entendido como um sistema de relações e interesses classistas, codificados através da lei, porém, não se reduzindo a ela. De certa maneira,podemos falar em aplicação do direito através da lei – podendo ser entendida esta lei como instrumento muitas vezes injusto para a classe oprimida, se representar os interesses arbitrados pela classe dominante e garantidos pelo Estado. Contudo, também podemos interpretar o Direito como libertador, se considerarmos que sua fonte de emanação não se restringe ao Estado, podendo nascer dos embates e lutas sociais que marcam a vida cotidiana. Nesta perspectiva, o Direito ganha poder de ação dialética, revelando sua essência contraditória e, conseqüentemente, transformadora. Para que isso se concretize, contudo, torna-se fundamental construir um “direito comprometido”, um direito que seja fruto do “conflito entre o direito posto, vigente e eficaz, contra um direito potencial que emerge das lutas dos dominados, dos destinatários esmagados na ordem jurídica posta.” (Aguiar, 1980, p.183)

Depreendemos assim, que o direito, dialeticamente compreendido, emerge como um mediador entre as classes, um mediador entre as contradições do real. Lembrando Roberto de Aguiar, sempre que existe direito é porque existe um problema que o gerou. O direito não nasce da concordância e do consenso, pelo contrário, ele nasce do conflito  das contradições (Aguiar, 1980).

Numa sociedade de classes, a diversidade de interesses favorece uma diversidade de consciências jurídicas e, conseqüentemente, a emergência de diferentes fontes de Direito. Nessa perspectiva, nem todo o direito pode ser visto como direito estatal, bem como, não podemos reduzir o direito à política e à ideologia da classe dominante. O direito estatal é parte de uma totalidade, que por sua vez pode ser percebida como um momento no processo de totalização. Tal percepção nos faz compreender o caráter processual e transitório do direito – histórico, portanto!  Em outros termos, o Direito é constituído pela, e constituinte da realidade social.

Uma vez que consideremos o direito como um fato social de profundo significado, possuidor de um caráter voltado para a normatividade e o controle social, falar em mudança social é, necessariamente, falar em mudança do direito. De acordo com Roberto Lyra Filho, as normas devem ser expressão do direito móvel, aquele que está em constante progresso. Mas quando o direito é confundido com o legalismo, com normas envelhecidas, tornando-se “direito em si”, torna-se reificado, perdendo seu caráter de processo, de instrumento de mudança social. O direito não nasce metafisicamente, ele é fruto de um processo de lutas, fruto de oposições e conflitos, avanços e recuos. Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições fazem brotar as novas conquistas (Lyra Filho, 1982).

Segundo tal perspectiva, a proposta de mudança implica num complexo processo social, marcado por transformações da sociedade civil. Em tal empreitada, emerge como fundamental o papel do profissional do direito e sua inserção nas lutas democráticas. Caberá a este profissional desempenhar a função de um intelectual orgânico, capaz de construir a contra-hegemonia, no sentido que dá Gramsci, a esses conceitos (Arruda Jr., 1997). Daí a necessidade de formação de um profissional com perspectiva sociológica, capaz de dialogar com a realidade concreta, que dá vida e eficácia às normas legais.

Sob tal ótica, percebemos a sociedade civil como sede principal das lutas transformadoras, uma vez que é a sede do pluralismo que serve de base para os movimentos  sociais comunitários. A medida que os profissionais do direito questionam os “descaminhamos do sistema normativo”, marcado pelo excesso de formalismo, pelo reforço das situações de injustiça e pelos critérios arbitrários de decisão, inicia-se a construção, o fortalecimento e a emergência de juridicidades latentes. Nesta percepção, o conceito de anomia ganha um papel central, agora reinterpretado, porque fica “vinculado à crise estrutural e ao desgaste de valores”, mostrando a presença de uma imposição ideológica que não corresponde efetivamente aos valores existentes, nem tampouco à realidade concreta.

Torna-se essencial adotar-se uma perspectiva crítico-dialética, na tentativa de relacionar anomia e mudança, voltando-se para a possibilidade de ruptura da ordem vigente. Fundamental perceber o conflito latente entre legalidade e legitimidade, uma vez que a legalidade expressa o interesse e forças predominantes na sociedade de classes (considerada ideologicamente como sociedade global), enquanto a legitimidade está voltada para as subculturas e grupos econômica e politicamente minoritários, que também possuem suas normas e códigos.

Essa percepção passa necessariamente pelo resgate do pluralismo jurídico, que compreende o direito como essencialmente múltiplo e heterogêneo, significando que num mesmo espaço social podem coexistir diversos sistemas jurídicos, já que existe uma pluralidade de fontes. Por meio da correlação entre anomia-legitimidade, estabelece-se a importância e a possibilidade da criação de espaços sociais alternativos para o exercício do direito, na construção de algo que podemos denominar de “legalidade alternativa”.

Como forma de ilustrar essa idéia, tomemos como exemplo os bairros de periferia: espaços sociais de luta que possibilitam a transformação da realidade social por meio da ação cotidiana. Observemos os grupos de moradores de bairros que, unidos por laços de vizinhança, amizade ou parentesco, voltam-se para a discussão de problemas concretos, experimentados na realidade dos bairros em que vivem, tornando-se  com isto embriões de organização popular, defendendo seus interesses, identificando necessidades e fortalecendo-se nas formas de resistência que favorecem as reivindicações sociais e o alargamento de direitos (Novaes, 1999). A esta realidade devem estar atentos os profissionais do direito em formação, capazes de articular o universo jurídico às lutas sociais e políticas, voltando-se para as representações sociais que animam o direito vivo.

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4. Considerações finais

Evidenciamos a ação dos chamados movimentos populares que caracterizam uma anomia emergente, por meio do fortalecimento da capacidade de mobilização e organização das lutas populares, ao ponto de oferecerem propostas concretas de democracia da sociedade e alternativas para o estabelecimento de um poder popular. Entendemos que aqui se encontra uma importante fonte de ação política e de exercício do direito, constituído sobre o pluralismo jurídico, que necessariamente passa por uma compreensão sociológica da realidade jurídica e social por parte do profissional do direito.

Por isso, amarrando as considerações e reflexões tecidas até o momento, apontamos para a necessidade da eclosão de um novo paradigma jurídico, que  esteja presente na formação do profissional do direito adequado às necessidades do real. Um paradigma calcado na construção e reconhecimento de um pluralismo participativo e democrático, capaz de perceber a emergência de novos direitos nascidos dos movimentos sociais populares. Tais profissionais, verdadeiramente comprometidos com a eficácia real das leis por meio de sua legitimidade, contribuirão para a legitimação de novos sujeitos de direito, democratizando os diferentes espaços sociais e favorecendo a busca por formas alternativas de resoluções de conflitos que fortaleçam a sociedade civil e a construção da verdadeira cidadania. Como explicita Antonio Carlos Wolkmer,

Este pluralismo ampliado e de novo tipo, além de possuir certos pressupostos fundantes de existência  material e formal, encontra  a força de sua legitimidade nas práticas sociais de cidadanias insurgentes e participativas. Tais cidadanias são, por sua vez, fontes autênticas de nova forma de produção dos direitos, direitos relacionados à justa satisfação das necessidades desejadas. (Wolkmer, 2001, p. 347)

O profissional do direito que não estiver afeito a estas percepções e perspectivas estará concorrendo para reproduzir os anacronismos do bacharelismo e as arbitrariedades do tecnicismo, em prejuízo da realização de um ideal de justiça que favoreça uma sociedade igualitária, que sirva a um direito sustentado nas bases sólidas da eficácia social, e não engessado no limitado formalismo das leis.


Referências bibliográficas

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