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Jurisdição, ação e processo à luz da processualística moderna:

para onde caminha o processo?

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01/04/2003 às 00:00
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12- Jurisdição, Ação e Processo

Feitas estas considerações, estamos em condições de nos lançar a uma apreciação crítica dos objetos de nossa abordagem. Colhendo elementos da moderna doutrina do processo, voltada a uma efetividade da tutela jurisdicional, poderemos fazer algumas considerações que procuraram tratar dos problemas mais relevantes que pudemos levantar no cotejo histórico dos institutos. Lembremos, mais uma vez, que o estudo do processo deve hoje ser levado a efeito através de um método de ampla aplicação das ciência sociais, repelindo-se uma visão estanque. Com efeito, se o que se busca é uma tutela efetiva, é necessário que tenhamos um instrumental apto a aferir os efeitos da atividade jurisdicional frente aos seus destinatários. Para tanto, é de mister nos valermo-nos de meios idôneos de aferição dos resultados da atividade jurisdicional, meios estes que nos são fornecidos por outras ciências sociais como sejam a sociologia, a ciência política, a sociologia do direito e a antropologia jurídica.

12.1- Considerações acerca da jurisdição.

Como visto, não podemos ter uma visão estanque do fenômeno do exercício do poder sub especie jurisdicionis, pena de chagarmos a um resultado parcial e errôneo. A jurisdição é das dimensões da ciência processual aquela que mais se aproxima da política e mais suscetível de ingerência exteriores ao sistema. Logo, o conceito e a compreensão da jurisdição estão intimamente ligadas às concepções sócio-políticas vigentes na época e local tomados.

Por séculos a jurisdição teve um feição mais ou menos estável, fruto da velocidade com que se operavam as mudanças no contexto da sociedade. Quando sobreveio o Estado Liberal, a jurisdição tomou a feição que seria a mais útil ao sistema organizacional vigente, prestigiando o cunho declaratório da sentença, a separação rígida direito processo e fundamentou-se no sistema tradicional de sentença condenatória-execução forçada, adquirindo um apostura introspectiva que distanciou o processo das realidades em que ele deveria operar. Isto não causava rubores em um Estado que limitava-se a garantir direitos no plano meramente formal. Daí surgem as visões que limitam os objetivos perseguidos pela jurisdição enquanto exercício do poder jurisdicional. Chiovenda já evoluiu ao afirmar que a jurisdição visava a aplicação da vontade da lei e não mais a consecução do direito subjetivo da parte. Isto já representava um avanço ma caminhava de evolução rumo à transformação da visão da jurisdição a uma visão de ótica publicista. Mas ainda assim, vemos a postura de Carnelutti que centra sua teoria sobre a lide, o que é um apostura voltada ao direito subjetivo, embora seja inegável uma ligação entre a lide e o contexto social, pois que a lide é um conceito sociológico e não processual.

A terceira fase da ciência processual põe fim a esta dicotomia do mundo do processo em relação à realidade. Hoje verificamos uma relativização do binômio direito-processo, de modo à poder-se conferir uma estrutura ao instrumento apta a torná-lo capaz de realizar cada espécie de direito, sem desatentar para as suas peculiaridades. Busca-se uma plasticidade da forma, adequando-a ao objeto que visa realizar. Conseqüentemente, as visões parciais da jurisdição que lhe atribuíam um caráter secundário, subsiddiário, fulcradas na predominância da Ação ao centro da teoria processual, não podem ser mais aceitas [43]. Não é da substância da jurisdição a formação da coisa julgada, nem tampouco a aplicação da lei ao caso concreto ou a justa composição da lide, embora estes escopos estejam presentes, sem dúvida, o exercício da jurisdição. O que não se pode e torná-los isoladamente o fator diferencial.

Neste sentido, ganha em precisão a teoria instrumentalisata ao identificar uma série complexa da escopos no exercício da jurisdição, desmistificando um pretenso isolamento da jurisdição em face dos demais poderes-funções do Estado. Não há somente um escopo jurídico e a jurisdição não deve ser vista como um fenômeno secundário ante as funções poderes do Estado.

Mas a conquista da corrente instrumentalista não chega, ao descortinar mais longos horizontes, a nos dar uma definição da jurisdição apta a separá-la dos demais poderes-funções, o que é fundamental para a compreensão de seu sistema funcional. Dinamarco nos dá uma definição próxima ao definir a jurisdição como a atividade levada a cabo pelo Estado tendo a aplicação da lei como fim. Aqui chegamos a uma separação da atividade jurisdicional da atividade administrativa porque esta última não tem a aplicação do direito como fim em si mesmo mas sim o bem comum, que quase sempre no Estado de Direito deve coincidir com a lei. Se nos parece que falta a menção ao um componente indispensável, qual seja a, a incontrastabilidade. Com efeito, a característica fundamental da atividade jurisdicional parece residir na incontrastabilidade das decisões e atos que lhe dão corpo. Não podemos concordar em erigir um conceito de jurisdição baseados unicamente na aplicação da lei ao caso concreto porque podem existir casos em que a Administração Pública exercita atividades em que o componente da aplicação da lei exsurge em caráter principaliter como podemos verificar nos casos em que são julgados recursos administrativos.

É claro que a administração pública sempre tem em vista o bem comum, mas nestes casos, ganha força a finalidade de aplicação da lei ao caso concreto. O grande diferencial é que na atividade jurisdicional este exercício se torna incontrastável por qualquer outro Poder, o que não ocorre em relação à atividade administrativa, que pode sofrer o contraste do Poder Judiciário em exercício da jurisdição. Note-se bem que isto nada tem a ver com a formação de coisa julgada, que diz com a impossibilidade de discussão no âmbito do judiciário.

Logo, podemos definir a jurisdição como a atividade levada a cabo pelo Estado de forma a aplicar o direito concretamente e de forma incontrastável exceto pelo exercício de jurisdição tendo por objeto a própria atividade em questão. Ou seja, os atos que caracterizam o exercício da jurisdição, seja qual for a sua natureza, só podem ser contrastados por outros atos jurisdicionais. Nesta concepção poderemos ter então atos jurisdicionais exercidos por outro Poder que não o Judiciário? Certamente que sim, naqueles países em que houver dualidade de jurisdições, ou seja, naqueles casos em que os provimento e atos em geral exercidos pela administração na atividade de aplicação do direito ao caso concreto, sejam dotados de incontrastabilidade [44].

Verificamos, portanto, que tomada esta posição, nenhuma razão há para excluir-se do exercício de verdadeira atividade jurisdicional aqueles casos compreendidos na denominada jurisdição voluntária. A presença de coisa julgada ou de litígio não retira a incontrastabilidade da atividade levada a efeito no bojo da jurisdição voluntária, que só pode ser revista pelo poder judiciário em exercício de atividade jurisdicional.

12.2- Considerações sobre a Ação

Não há maiores dificuldades em concebermos hoje a ação como um direito subjetivo de provocação da tutela jurisdicional. A grande questão reside me saber-se se é um direito abstratamente considerada ou a uma tutela concretamente configurada. Nos encontramos frente a duas visões que dão corpo a uma teoria abstrata da ação ou a uma teoria eclética, já que a teoria da ação concreta ( O rechutzansprüch de Wach ) discrepa por completo de qualquer visão moderna. Somos levados nesta senda, a fazer algumas considerações acerca do papel das condições da ação e da sua natureza.

O grande problema é que encetado um juízo de carência não encontramos um antecedente lógico para justificar as atividades jurisdicionais levadas a efeito até a prolação da decisão que assim declara.

Se o autor e o réu são carentes de ação, o que justificou a apreciação de suas alegações até então? A que título encontravam-se no processo e exercendo que espécie de direito? Por outro lado, admitida a ação sem qualquer limitação perde-se um poderoso mecanismo de depuração representado pelas condições da ação. Estaria aberta a porta para as demandas infundadas e temerárias serem postas lado a lado a aqueles casos em que verdadeiramente existe um fundamento subjacente à aplicação do direito.

A doutrina, na tentativa de contornar estes óbices, construiu as condições não como condições da ação, mas como condições à apreciação do mérito. Esta parece ser uma boa saída, no entanto, seremos obrigados a redimensionar as condições hoje ditas da ação para sua verdadeira dimensão, e teremos de concluir que não há um juízo de carência de ação, mas uma impossibilidade de julgamento de mérito. Deveras, não é possível negar a atribuição de uma natureza jurisdicional às atividades levadas a termo antes e na declaração de impossibilidade de julgamento de mérito desde que realizadas como atividade fim e dotadas da incontrastabilidade diferenciadora da jurisdição. E como a atividade de provocação da jurisdição por parte do interessado toma sempre a feição de ação é certo que ação houve. Via de conseqüência, não tratamos rigorosamente de condições da ação, mas sim de condições para o julgamento de mérito.

A grande dificuldade, então, reside em qualificar-se as condições de julgamento do mérito dentro do trinômio de questões enfrentados, concernentes ao processo, à ação e ao mérito. Com certeza as ditas condições da ação, que melhor reputamos condições para o julgamento do mérito, como fez certa doutrina, não pertencem à tratativa da relação processual, pois auferem elementos de fora da relação processual. O que nelas se versa é o objeto da relação processual, porque a noção de mérito em nossa sistemática é equivalente a de pedido, e o pedido é objeto da relação processual. Se nos parece, portanto, que o material a ser examinado nas ditas " condições da ação" pertence ao mérito, no entanto não se consubstancia em um julgamento de mérito, mesmo porque, frente a nossa sistemática processual, o artigo 267 do CPC é peremptório ao afirmar que dito julgamento, ou seja, acerca das condições da ação constitui sentença que não julga o mérito. É preciso, então, que distingamos julgamento de mérito, que é aquele que se realiza como prestação jurisdicional tipo do processo de conhecimento, via de regra após cognição plenária e exauriente, do mérito enquanto matéria de apreciação. Procedida esta separação, podemos conceber as ditas condições da ação como elementos do mérito sem tornar a sua apreciação um julgamento de mérito necessariamente. Assim teríamos que as denominadas condições da ação inexistem como elementos autônomos, pertencendo ao mérito, ou seja, não á um trinômio de questões, mas sim um binômio, formado por pressupostos processuais e questões de mérito.

A doutrina italiana já concebe de longa data a possibilidade jurídica do pedido como elemento do mérito. E neste passo calha uma indagação: Não estaria a possibilidade jurídica do pedido em idêntica situação em relação ao mérito às demais questões, quais sejam, legitimidade ad causam e interesse. Se nos parece que sim, e então, o fato de na sua análise se conceber a hipótese dos autos como uma possibilidade ainda não concreta, carecendo de uma análise mais acurada no juízo de mérito, as coloca em condições de igualdade. Se já se concebeu que a possibilidade jurídica pertence ao mérito não há porque não considerar que as demais também não pertençam a esta categoria. Mas então qual seria a natureza do juízo acerca destas questões levado a efeito para fim de verificação se a parte faz jus ao julgamento de mérito.? Este juízo, que hoje enquadramos como juízo acerca das condições da ação, e que se faz, me tese previamente ao juízo de mérito, em verdade constitui um juízo preliminar acerca a possibilidade de julgamento ulterior de mérito, tendo por objeto uma fração das mesmas questões que compõe o mérito, amas sem ser um julgamento de mérito. Trata-se a nosso ver de um julgamento sobre o mérito, ou melhor um juízo sobre parcela do mérito em caráter delibatório, ou seja, admissional, tão somente.

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Em síntese, um juízo de admissibilidade, à semelhança do que ocorre em sede recursal. Chegamos, via de conseqüência a uma composição de um binômio de questões que dá margem a três juízos, um referente aos pressupostos processuais um referente à admissibilidade do julgamento de mérito e o último referente ao mérito em si.

Outra conseqüência desta construção reside na supressão do problema da ação processual e da ação constitucional [45]. Com efeito, na medida em que deixam de existir condições da ação no sentido em que a doutrina as construía, ou seja, de que na sua ausência não haveria ação processual, podemos deixar de referir a esta dicotomia. O direito de ação é um só, apresentando duas facetas, uma estática que está prevista na Constituição Federal e que se aproxima do direito de petição, e poderíamos dizer é conteúdo do direito de petição, e oura fase dinâmica, correspondendo à fase processual, do direito de ação. Mas neste último caso, o atingimento do escopo magno da prestação jurisdicional "in concreto", haja vista contingências políticas e práticas, se condiciona a um juízo prévio pelo qual o sistema verifica se diante de si o julgamento preenche uma série de requisitos externos que surgem como triagem. Esta limitação não se encontra ontologicamente arraigada no sistema, mas é externa a ele e se origina das opções da sociedade em condicionar a prestação jurisdicional a uma viabilidade e a um interesse justificável ante os custos econômicos e sociais do processo. Não se há mais falar, portanto, em nosso sentir, acerca de um direito constitucional de ação e de um direito processual de ação, pois estas são facetas de um mesmo fenômeno, duas faces da moeda. Sempre que houver a movimentação da máquina judiciária frente a um caso concreto, objetivando a aplicação da lei ao caso concreto como atividade fim e dotada de incontrastabilidade frente aos outros poderes, estaremos diante do direito de ação, constitucional e processual simultaneamente.

12.3- Considerações sobre o Processo:

Na visão que marca a terceira etapa de evolução do processo, passamos à busca de uma efetiva instrumentalidade do processo ao direito material. O fetichismo das formas deve ser abolido e o binômio processo- direito material relativizado mediante tutelas aptas a se moldarem ao direito material veiculado, afastando-se a supremacia absoluta do ordo judicum privatorum, do rito ordinária, da cognição exauriente e plena e do binômio condenação- execução forçada. Mais do que nunca, sobressai o caráter instrumental do processo, sem que isto, como ocorria no sincretismo, represente uma menos valia ao processo, muito pelo contrário. O fato é que entre a certeza e a segurança jurídica e a celeridade, o sistema orienta-se cada vez mais para a última, até mesmo no processo penal, reduto fortificado da segurança jurídica ( Lei dos Juizados), campo este onde todos os cuidados são recomendáveis.

A técnica processual tem importante papel na busca da efetividade da jurisdição, agora revigorada e revisitada, compondo-se à luz dos novos valores. Atrela-se, assim, a forma a uma finalidade, o que é a máxima do instrumentalismo. As formas processuais só têm sentido na medida em que cumpram uma finalidade, e esta, além da ordenação própria ao erguimento de um sistema, também é o veículo por excelência da infiltração e proteção dos valores sociais no sistema processual, outrora hermeticamente fechado e estanque. Sob a égide de uma Teoria Geral do Processo, condensam-se no processo os valores axiológicos, tornando-se o processo um meio mais eficaz e legítimo de exercício do poder estatal. Isto fortalece o sistema e a justiça, entendida esta como a qualidade de decisões que reflitam o conjunto médio dos valores preponderantes na sociedade em determinado momento.

Assim sendo, não há mais lugar para um processo exclusivamente judicial e litigioso, fruto de uma visão reduzida de jurisdição [46]. Se o processo é o veículo da jurisdição, onde houver jurisdição há processo, e jurisdição há também onde não há lide. Mas a noção de processo transcende mesmo á de jurisdição, infiltrando-se na esfera administrativa, pois lá também se exerce verdadeiro processo, que diga-se "en passant" se submete ao mesmo princípios constitucionais e está compreendido dentro da teoria geral [47]. É oras de as grandes conquistas do processo civil de conhecimento atingirem os outros ramos do processo, ou melhor dizendo, suas especializações e é exatamente o que se busca nessa nossa visão panorâmica: constatar a unidade do processo e estender as conquistas da teoria processual a todos os rincões da ciência do processo, na busca de sua efetividade concreta.

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Jurisdição, ação e processo à luz da processualística moderna:: para onde caminha o processo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3902. Acesso em: 25 abr. 2024.

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