Algumas questões controvertidas sobre o crime de furto

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13/05/2015 às 09:08
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Apresenta apontamentos da jurisprudência e da doutrina sobre o crime de furto.

I – HISTÓRIA

Já ensinava Gaio[1] que, em Roma, o furto podia ser manifesto e não manifesto. Era o furtum manifestum aquele em que o agente era surpreendido em flagrante, executando a ação, ou no lugar do crime. As sanções eram corporais, envolvendo açoites e servidão do homem livre, para o furto manifesto,  e pecuniárias para o furto não manifesto: o duplo ou o triplo da coisa furtada.

Posteriormente o furto passou a considerar-se um crime privado, punido com pena pecuniária.

O furto era distinto da rapina, que era o apossamento violento das coisas.

Mas, no período do Império, já tínhamos exemplo de uma série de exemplos de furto com penas mais severas:  o plagium, o sacrilegium, o abigeatus(furto de gado)[2], o furto com rompimento de obstáculo(effractarius), o fur balnearius(furto nos locais onde se tomava banho), o furto de grande monta, onde havia exemplo de penas arbitrárias, envolvendo a forca ou a exposição as feras.

No Código Imperial do Brasil, considerava-se furto como tirada de coisa alheia, para si ou para outrem(artigo 257), impondo-se a pena de prisão com trabalho, por dois meses a quatro anos, e de multa de cinco a vinte por cento do valor furtado.

Na República, da leitura do Código Penal de 1890, o furto era definido como subtração de coisa alheia contra a vontade do dono(artigo 330), considerando também como modalidade de furto a apropriação indébita(artigo 331). A pena era cominada segundo o valor do objeto furtado.


II – O ARTIGO 155 DO CÓDIGO PENAL

Observe-se o núcleo verbal do tipo penal exposto no artigo 155 do Código Penal:

¨Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel.¨

Pena: Reclusão de 1(um) a 4(quatro) anos, e multa.

A teor do artigo 89 da Lei 9.099/95 poderá existir hipótese de aplicação de proposta pelo Ministério Público, titular da ação penal pública incondicionada, de benefício de  suspensão condicional do processo, o sursis processual, nas bases disciplinadas naquele dispositivo legal.


III – SUJEITO ATIVO E SUJEITO PASSIVO

Pode ser sujeito ativo qualquer pessoa. O empregado de uma fábrica é detentor das ferramentas com que trabalha, cometendo furto,  transforma a posse transitória, precária, de forma ilícita. O balconista, o caixa, que venham a desviar dinheiro dos fregueses,  podem cometer tal crime. 

Sujeito passivo é a pessoa física ou jurídica que tem a posse ou propriedade da coisa móvel.


IV   – OBJETIVIDADE JURÍDICA E TIPO OBJETIVO

Tanto a propriedade, como a posse, como a mera detenção são protegidas no crime de furto.

A ação típica consiste em subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel.

Sendo assim subtrair consiste em tirar a coisa do poder de fato de alguém, para submetê-la ao próprio poder de disposição. Há um rompimento do poder de fato sobre a coisa.

Pratica furto o ladrão que furta ladrão(RJDTACRIM 5/96).

Coisa é tudo aquilo que existe, podendo tratar-se de objetos inanimados ou de semoventes. Para tanto, é imprescindível para efeito do crime de furto que a coisa tenha, para seu dono ou possuidor, algum valor econômico.

O Supremo Tribunal Federal já entendeu que a coisa alheia móvel a que se refere o artigo 155 do Código Penal é tudo quanto, para a vítima, representa valor; assim não é preciso que a decisão reclame, para ver caracterizado o furto, tenha a res ponderável valor de comércio(RE 100.103 – 2ª Turma, Relator Ministro Francisco Rezek, 27.04.1984.

É indispensável que se trate de coisa móvel que para o direito penal é tudo o que possa ser transportado de um lugar para o outro. São coisas móveis para o direito penal, por exemplo: os títulos de crédito, os navios, os aviões, apólices de dívida pública, a energia elétrica, contrastando com a natureza que podem ter no direito civil. A res nullius(coisas que não pertencem a ninguém), as coisas que não têm valor econômico, na medida em que não integram um patrimônio, não podem ser objeto de furto, porém já se entendeu que a lei não exige que a coisa furtada tenha valor comercial ou de troca, bastando que seja um bem que represente alguma utilidade para quem detenha a coisa(RT 425/362). Acessórios do imóvel, como árvores, uma vez mobilizados, podem constituir objeto do crime de furto(RTJ 86/791: RT 518/441). Todavia, os direitos obrigacionais, por óbvio, não podem ser furtados, pois apenas poderão sê-lo os títulos.

As coisas comuns como água dos rios e dos mares, luz, ar, poderão ser objeto do crime se forem destacadas, como no caso do ar comprimido ou liquefeito, como bem disse Júlio Fabbrini Mirabete. [3]

Desviando o agente, de forma indevida, a energia elétrica cometerá o crime de furto, podendo praticar estelionato se induz a vitima em erro, usando qualquer artefato, como é o caso de viciar o relógio de marcação de consumo, por exemplo. O furto de eletricidade, por meio de extensão clandestina, é crime permanente e não continuado.

 Porém, já se decidiu que atua em estado de necessidade o agente que, tendo suspenso o fornecimento de energia elétrica por não ter condições para pagar a conta, faz ligação clandestina(TACrSP, Ap. 1.201, j. 17.08.00, in Bol.IBCCr 100/524).

Falei em estado de necessidade, lembrando agora do chamado furto famélico que é admitido àqueles que, vivendo em condições de maior indigência, subtraíram objetos, aptos a satisfazer privação inadiável, na qual padeciam tantos eles como seus familiares e dependentes para saciar a fome e atender as suas vicissitudes imediatas(TJPB, Ap. 99.004701-5, RT 773/647).

O Superior Tribunal de Justiça já enfrentou caso em que se imputava ao acusado a ligação clandestina, a subtração, em tese, de coisa alheia móvel consistente em energia elétrica de sinal de áudio e vídeo da Empresa Net São Paulo Ltda. Naquela ocasião, entendeu-se haver indícios apontando o uso irregular de sinais de TV a Cabo por um período de cerca de 1(um) ano e 9(nove) meses, sem o pagamento da taxa de assinatura ou as mensalidades pelo uso, apesar da cientificação pela empresa vítima da irregularidade da forma como recebiam o sinal, tendo sido refeita, inclusive, a ligação clandestina após a primeira desativação pela NET(HC 17.867 – SP, 5ª Turma, Relator Ministro Gilson Dipp, DJ de 17 de março de 2003.

Bem disse Guilherme de Souza Nucci[4] que quem faz uma ligação clandestina, evitando o medidor de energia elétrica está praticando o crime de furto.

Há crime de furto no desvio de água captada e servida por concessionária de maneira a impedir a passagem do liquido pelo hidrômetro(RT 671/336-7).

A ligação irregular no encanamento, sem passar pelo hidrômetro, é situação ínsita ao próprio furto do liquido, tratando-se de crime permanente(RT 779/589).

Entendeu-se que o mineral quando extraído do solo equipara-se a categoria de bens móveis, como é o caso do furto de areia, pois se dá a extração sem a autorização do Poder Publico(Tribunal Regional Federal da 3ª Região, RT 748/735).

Discute-se o momento consumativo do crime.

Sabe-se que a consumação dos delitos de furto e de roubo é permeada por quatro diferentes teorias: a) teoria da contrectatio, pelo qual a consumação se da pelo simples contato entre o agente e a coisa alheia; b) teoria da apprehensio ou amotio, segundo a qual se consuma esse crime quando a coisa passa para o poder do agente; c) a teoria da ablatio, onde a consumação ocorre quando a coisa além de apreendida é transportada, mediante posse pacífica e segura de um lugar para outro; d) a teoria da illatio exige, para ocorrer a consumação, que a coisa seja levada ao local desejado pelo ladrão para tê-la a salvo.

A doutrina clássica da amotio, segundo o qual o furto se consuma com o deslocamento da coisa, do lugar em que estava situada, foi defendida por Carrara.

Por sua vez, Pessina[5] formulou a teoria da ablatio, entendendo que, para a consumação do furto, era necessário não só a apreensão da coisa, como ainda seu transporte a outro lugar.

O Supremo Tribunal Federal(RTJ 155/194) já entendeu que se a coisa subtraída saiu da esfera de vigilância da vítima, está consumado o roubo próprio, pois este fato e a posse tranquila do objeto roubado, ainda que por breve tempo, dão a tônica entre o roubo consumado e o roubo tentado. Para tanto, dizia Nelson Hungria[6] que a doutrina clássica considerava que se após o emprego da violência pessoal não puder o agente, por circunstâncias alheias à sua vontade, executar a subtração, mesmo o ato de apreensão da coisa é simples tentativa. A consumação se dava com o deslocamento da coisa, mas de modo que esta se transfira para a posse exclusiva do ladrão.

Para Heleno Claudio Fragoso[7], a consumação do crime de roubo se daria, sempre, com a efetiva subtração. Haveria tentativa se a vítima resiste, impedindo a subtração(RT 405/140). Para essa corrente, exige-se a retirada da coisa da esfera de vigilância do proprietário ou possuidor. Nessa linha de pensar, veja-se: Damásio de Jesus[8], Magalhães Noronha,[9] dentre outros. Para Oscar Stevenson[10] o critério da subtração não é espacial, porém, como que pessoal. Se, ao tirar a coisa, o agente é perseguido e, finalmente preso, não haverá furto consumado, pois não chegou a estabelecer o seu poder de fato sobre a coisa, o que exige a detenção mais ou menos tranquila.

Já se entendeu que há tentativa de furto no fato do agente esconder em suas roupas a coisa que quer subtrair e é detido ao tentar passar pelo caixa de supermercado(RJDTACRIM 2/179, 6/78). Há tentativa se o agente não obtém a subtração uma vez que houve instalação de dispositivo antifurto no automóvel(RJDTACRIM 5/98).

Mas, corretamente, o mesmo Supremo Tribunal Federal bem entendeu que não é necessário que a coisa roubada haja saído da esfera de vigilância da vitima, bastando a fuga com o bem subtraído para caracterizar a existência de posse pelo criminoso(RE 102.490, DJU de 16 de agosto de 1991, pág. 10.787; HC 69.292, DJU de 19 de junho de 1992, pág. 9.521).

Em verdade, superada esta a fase de aplicação do entendimento segundo o qual  consumava-se o crime no simples contato do agente com a res objeto de subtração, como havia no direito romano.

Todavia haverá tentativa se a ausência da coisa é apenas acidental e relativa, como no caso do ladrão que encontra vazio o bolso da vítima ou o cofre arrombado. Tal não é crime impossível.

Ora, o delito de roubo assim como o de furto  é de cunho material e não formal. O roubo é, além disso, um crime comum(aquele que não demanda um sujeito ativo qualificado ou especial); comissivo, especialmente comissivo por omissão; instantâneo, de dano, plurissubsistente, admitindo tentativa.

Até meados de 1987, o Supremo Tribunal Federal adotava a teoria da ablatio, segundo a qual os requisitos para a consumação seriam: apreensão da coisa; afastamento da disponibilidade da vítima e posse tranquila do objeto.

Louvável o voto do Ministro Moreira Alves ao aduzir que ¨para que o ladrão se torne possuidor, não é preciso, em nosso direito, que ele saia da esfera de vigilância do antigo possuidor, mas, ao contrário, basta que cesse a clandestinidade ou a violência, para que o poder de fato sobre a coisa se transforme de detenção em posse, ainda que seja possível ao antigo detentor retomá-la pela violência, por si ou por terceiro, em virtude de perseguição imediata.¨

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Daí correto dizer que a fuga com a coisa em seu poder traduz de forma inequívoca a existência de posse(Recurso Extraordinário 102.490 – SP, 17 de setembro de 1987).[11]

Trago ainda a colação, entendimento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 89.958 – SP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 27 de abril de 2007, pág. 68, quando se reiterou que se dispensa para a consumação do furto ou do roubo, o critério da saída da coisa da chamada esfera de vigilância da vítima e se contenta com a verificação de que, cessada a clandestinidade ou a violência, o agente tenha tido a posse da res furtiva, ainda que retomada, em seguida, pela perseguição imediata.

Conclusivo o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do HC 92.450/DF, Relator Ministro Marco Aurélio, Relator para o acórdão, o Ministro Ricardo Lewandowski, 16 de setembro de 2008, quando se disse que a prisão do agente ocorrida logo após a subtração da coisa furtada, ainda que sob a vigilância da vítima, ou de terceira pessoa, não descaracteriza a consumação do  roubo.

Aplicou-se o entendimento de que deve ser dispensado, para a consumação do crime de roubo, o critério da saída da coisa da ¨chamada esfera de vigilância da vitima¨, contentando-se com a verificação de que cessada a clandestinidade ou a violência, o agente tenha a posse da coisa furtiva, ainda que retomada, em seguida, pela perseguição imediata(HC 89.959 – SP, Primeira Turma, Relator Ministro Carlos Ayres de Britto, 29 de maio de 2007). Nessa linha, ainda podemos encontrar: RE 102.490/SP, DJU de 16 de agosto de 2001; HC 89.958/SP, DJU de 27 de abril de 2007, dentre outros julgados.

Ganha, desta forma, no Supremo Tribunal Federal força a orientação de que não basta que a coisa saia da esfera de disposição da vítima, bastando que cesse a violência para que o poder de fato sobre ela se transforme de detenção em posse, consumando-se o delito(RT 677/428).

Para alguns, então, o crime de furto, tal como o roubo, se consuma quando a coisa sai de vigilância da vítima(JSTJ 4/292) Por sua vez, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça  seguia a doutrina da amotio, como se lê de julgamento no REsp 407.162 – SP, Relator Ministro Fernando Gonçalves, DJ de 26 de novembro de 1993 e ainda no EREsp 229.147 – RS, Relator Ministro Gilson Dipp, julgado em 9 de março de 2005, dentro de precedentes no EREsp 197.848 – DF, DJ de 15 de maio de 2000 e ainda no EREsp 78.434 – SP, DJ de 6 de outubro de 1997.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.220.817 - SP, DJe de 28 de junho de 2011, em que foi Relator o Ministro Og Fernandes, reafirma esse correto entendimento no sentido de que o crime de roubo – da mesma forma que o crime de furto – se consuma no momento em que o agente se torna possuidor da coisa alheia, ainda que não seja a posse tranquila, fora da vigilância da vítima. Veja-se ainda: Recurso Especial 932.031/RS, Relator Ministro Félix Fischer, DJ de 14 de abril de 2008.

De toda sorte, há julgamento no sentido de que estará consumado o crime, porém, se agente, antes de ter a posse tranquila da coisa, se desfaz dela quando perseguido, não a recuperando a vítima(RT 674/359).

O crime de furto é material a se consumar com a subtração, podendo se falar, por óbvio, em tentativa, quando o agente inicia a execução, de forma dolosa, se o agente penetra na casa alheia(RT 175/355).

Pode haver concurso formal de furto praticado contra várias vitimas e ainda crime.

Já se decidiu que há crime único na ligação irregular de encanamento de água a permitir seu ingresso na residência sem passar pelo hidrômetro no caso de crime permanente(RT 799/589).

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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