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Judiciário que não julga?

O tenebroso futuro da atividade jurídica no Brasil

27/11/2016 às 11:32
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Crítica à obliteração da necessidade de fundamentar as decisões judiciais.

Julgar, em essência, é fundamentar, não somente decidir. Aquele que segue uma decisão sem fundamento pratica um ato de fé, loucura ou total submissão. O ato de fé é inquestionável na medida em que as convicções pessoais impedem o debate acerca do que se acredita. O ato de loucura também é inquestionável, dada a impossibilidade de arrazoar. Outrossim, inquestionável para o submisso é a decisão daquele que lhe domina. Dentre todas essas posturas — e aqui não se critica nenhuma delas, na medida em que cada uma apresenta sua valia em diferentes situações — há um ponto em comum: a dogmática. O dogma é uma verdade inquestionável, incontestável e indiscutível, bem traduzido pela máxima: “é assim e pronto!” Dogma e fundamentação, portanto, são conceitos inconciliáveis: enquanto uma decisão dogmática apenas proclama dado resultado, a decisão fundamentada justifica, expõe, arrazoa e, portanto, será sempre questionável e discutível. Paradoxalmente, as decisões judiciais não podem ser dogmáticas por força do dogma constitucional expressamente estabelecido pelo inciso IX do art. 93 da Constituição Federal de 1988. A perplexidade decorrente da constatação da existência de um dogma que estabelece uma postura antidogmática é extensível também à própria concepção da necessidade de fundamentação das decisões judiciais — atualmente interpretada não apenas como uma obrigação do Poder Judiciário, mas como um direito fundamental do jurisdicionado. Decisão despida de fundamentação é nula e inconstitucional por ser arbitrária, aleatória, discricionária, despótica e absolutista. Mas o que é fundamentar uma decisão? Ou, formulando de outra maneira, em que medida se pode considerar que dada decisão está fundamentada?

Se a literalidade apresenta algum norte ao questionamento, fundamentar é verbete que se afigura sinônimo de arrazoar, motivar, justificar, alicerçar, firmar, apoiar, assentar em bases sólidas. Mas, o que são bases sólidas? Lei, doutrina e jurisprudência — os três pilares multisseculares do conhecimento jurídico — parecem ser as bases mais sólidas nas quais se pode assentar dada decisão judicial. Exsurge, entretanto, outra questão, como correlacionar lei, doutrina e jurisprudência a determinado caso concreto. É aí que reside o maior problema interpretativo acerca da fundamentação da decisão judicial: como a decisão deve correlacionar as peculiaridades do caso à abstração da norma extraída do conhecimento jurídico.

A atividade silogístico-subsuntiva — pela qual a norma representa a premissa maior em que se deve enquadrar a premissa menor, consubstanciada no caso concreto — é a regra interpretativa segundo a qual se orienta classicamente o processo hermenêutico da civil law brasileira. Muitas críticas doutrinário-filosóficas recebe a referida atividade. Quem dera, entretanto, o único problema das decisões judiciais fosse o modelo exegético eleito como parâmetro do sistema. A verdade é que, antes da preocupação com os parâmetros decisórios é preciso confrontar a prática institucionalizada no Brasil segundo a qual não se aprecia o caso concreto. A chamada jurisprudência defensiva — assim compreendida como a tendência artificiosa e tecnicalista empregada pelos Tribunais para a negativa exacerbada ao conhecimento dos recursos — constitui apenas uma parcela do iceberg. Vários exemplos poderiam ser mencionados para ilustrar essa particularidade, mas basta um: o que se extrai do cotejo entre os acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal na QO no AI 791.292/PE e no MS 22.693/SP, ambos de relatoria do Eminente Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Na QO no AI 791.292/PE, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que:

O art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que suscintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que sejam corretos os fundamentos da decisão.

O tema, apreciado pela Corte em 23/06/2010, teve sua repercussão geral reconhecida e, desde então, o entendimento ali consignado vem sendo replicado pelos Tribunais pátrios para a negativa de seguimento aos recursos extraordinários interpostos contra as mais diversas decisões. Por outro lado, quase cinco meses depois, em 17/11/2010, o STF — por unanimidade e nos termos do voto do Ministro Relator — decidiu o MS 22.693/SP, em acórdão no qual constou o seguinte:

Daí afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5º, LV, da Constituição, contém os seguintes direitos: [...] c) direito de ver seus argumentos considerados [...], que exige do julgador capacidade de apreensão e isenção de ânimo [...] para contemplar as razões apresentadas [...]. Sobre o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão julgador [...], que corresponde, obviamente, ao dever do juiz de a eles conferir atenção [...], pode-se afirmar que ele envolve não só o dever de tomar conhecimento [...], como também o de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas [...]. É da obrigação de considerar as razões apresentadas que deriva o dever de fundamentar as decisões [...].

É de bom alvitre lembrar aqui que o entendimento consubstanciado na QO no AI 791.292/PE está perfeitamente alinhado ao que se encontrava no famigerado (e atualmente extinto) enunciado de súmula nº 400/STF, segundo o qual se estabelecia que: “decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário [...]”. À época do enunciado nº 400/STF, vale sublinhar, o Supremo Tribunal Federal se encontrava sobrecarregado de processos — período conhecido pela designação “crise do Supremo” ou “crise do recurso extraordinário” — em virtude da cumulação das atribuições de unificação das interpretações da legislação federal constitucional e infraconstitucional. E atualmente? Quais as razões para a existência do entendimento consubstanciado na QO no AI 791.292/PE?

Sim, o excesso de processos persiste, mas tal fato justifica a obliteração da necessidade de fundamentar as decisões? Na prática, o posicionamento adotado pela Corte na QO no AI 791.292/PE tem permitido, em palavras simples, que os magistrados deixem de ler os recursos: afinal, se não é preciso examinar pormenorizadamente os argumentos suscitados nem é preciso que os fundamentos estejam corretos, então confere-se carta branca à arbitrariedade. Se o julgador pode decidir fundamentando incorretamente, isso significa que qualquer fundamentação serve, inclusive aquela baseada na arbitrariedade, em crenças religiosas, em convicções filosóficas, no bom ou mau humor do magistrado. Se o julgador pode decidir sem examinar as alegações das partes, isso significa que a postulação em juízo é inócua: na medida em que o magistrado não tem de refutar as alegações contra as quais decide — podendo apenas declarar as razões pelas quais decide — abre-se o caminho para a aleatoriedade e para a desnecessidade de argumentação das partes.

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Note-se que, se não for necessário argumentar — já que o magistrado não precisa refutar as alegações contra as quais sua decisão é proferida —, cada vez menos se precisará de outro profissional que não seja o juiz: a advocacia, o Ministério Público, as defensorias e procuradorias são rebaixadas à inutilidade. Observe-se, igualmente, que a própria atividade jurisdicional resta minorada quando não há necessidade de fundamentação: exercícios como o de “tirar no cara-ou-coroa” ou “girar na roleta” quem deve vencer o processo afiguram-se mais fidedignos, eis que estatisticamente mais previsíveis do que o estado de espírito (animus) do magistrado.

Na contramão, entretanto, da aludida anarquia decisória, encontra-se o posicionamento consagrado no isolado precedente do MS 22.693/SP: ali está o embrião de um parâmetro das decisões que permite futuras discussões acerca da adequação ou não de métodos silogístico-subsuntivos. Até que esteja incrustada indelevelmente na mentalidade judicial a ideia de que, mais do que decidir, a jurisdição deve fundamentar, deixando de lado o medo de sobrecarga de processos e zelando pelo prestígio das decisões, não será possível evoluir, nem levar o debate mais além. Cabe a nós, profissionais do direito combater com todas as forças essa espécie de entendimento que promete extirpar qualquer importância da atividade argumentativa. Também nos incumbe zelar pela preponderância do entendimento isolado do MS 22.693/SP sobre o da QO no AI 791.292/PE, o que implica em advogar contra uma decisão com efeitos erga omnes: preço a se pagar pela sobrevivência da atividade jurídica (profissional, acadêmica, filosófica etc.) e por um Poder Judiciário que efetivamente desempenhe a incumbência para a qual foi projetado. Judiciário que não julga é mero poder.

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Sobre o autor
Tagore Fróes

Doutorando pela PUC-SP. Mestre e especialista pelo IDP. Graduado pela Harvard University. Bacharel pelo UniCeub. Advogado. Professor. Escritor de livros jurídicos. Pesquisador.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRÓES, Tagore. Judiciário que não julga?: O tenebroso futuro da atividade jurídica no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4897, 27 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39246. Acesso em: 25 dez. 2024.

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