A inconstitucionalidade do parágrafo 3º do artigo 36 do Projeto de Lei nº 236/2012 (Novo Código Penal)

Leia nesta página:

As leis infraconstitucionais devem guardar observância ao que se encontra contido na Constituição Brasileira, sob o risco de serem material e formalmente incompatíveis com a Carta Maior.

INTRODUÇÃO

A dinâmica social e econômica transformou o Brasil dos anos 40, país essencialmente agrário, politicamente instável e com instituições nacionais ainda incipientes em uma das maiores economias do planeta e em uma democracia estável, com instituições consolidadas.

A necessidade de que a legislação material penal, atualmente regida pelo Código Penal de 1942 e leis extravagantes, evoluísse para uma codificação mais moderna e compatível com a hodierna sociedade brasileira deu azo, no Senado Federal, ao Projeto de Lei nº 236, de 09 de julho de 2012[1], qual seja o Novo Código Penal Brasileiro.

O referido códex incorpora em seu texto relevantes avanços doutrinários e jurisprudenciais como, por exemplo, a textualização do princípio da insignificância (artigo 28, § 1º) e do dolo eventual (artigo 20), na parte geral e, na parte especial, a tipificação do crime de terrorismo (artigo 239) e a necessidade de representação no crime de furto simples (artigo 155, § 3º, III).

Contudo, por mais que busque o Projeto de Lei trazer a codificação penal brasileira para o Século XXI, ele não pode, de maneira alguma, incompatibilizar-se com o texto constitucional. Redunda em evidente inconstitucionalidade o artigo 36, § 3º, do Projeto de Lei 236/2012 uma vez que afronta o princípio da legalidade, insculpido no artigo 5º, inciso XXXIX, questão a ser tratada no presente texto.


 1 – BREVE HISTÓRICO DAS CODIFICAÇÕES PENAIS NO BRASIL

Do período colonial até 1830, quando foi sancionado o Código Criminal do Império, o Direito Penal brasileiro foi disciplinado pelas Ordenações do Reino, primeiro as Afonsinas (1456), depois as Manuelinas (1521) e, a partir de 1603, as Filipinas. Conforme Cintra, Pellegrini e Dinamarco:

As ordenações Filipinas, promulgadas por Felipe I (1603) foram as grandes codificações portuguesas, precedidas pelas Ordenações Manuelinas (1521) e pelas Afonsinas (1456), cujas fontes principais foram o direito romano e o direito canônico, além das leis gerais elaboradas desde o reinado de Afonso II, de concordatas celebradas entre reis de Portugal e autoridades eclesiásticas, das Sete Partidas e de Castela, de antigos costumes nacionais e dos foros locais.[2]

Claramente influenciada pelo Direito Medieval, as Ordenações Filipinas foi o diploma legal que por mais tempo vigorou no Brasil, estando os crimes e as penas previstos em seu Livro V [3]. Possuía forte cunho religioso, com o crime sendo confundido com o pecado, como o delito de sodomia, previsto no seu título XIII[4].

 As penas eram cruéis e difamantes, sendo a pena de morte cominada para a maior parte dos delitos [5]. Sobre as Ordenações Filipinas, manifesta-se Frederico Marques:

Além de bárbaras e atrozes, as penas eram desiguais: influía na sanção a qualidade ou condição da pessoa, pois se puniam diversamente os nobres e os plebeus. A arbitrariedade imperava também no tocante à aplicação da pena, como se vê no título 1º, em que se mandava punir os hereges com as penas determinadas pelo direito, mas sem esclarecer qual era esse direito aplicado.[6]

Tais práticas legais não se ajustavam ao grau de civilidade que havia atingido o Brasil já naquela época. Para tanto, urgia a elaboração de uma legislação penal que refletisse os avanços sociais e políticos alcançados pelo mundo de então. Sancionado em 16 de dezembro de 1830 Código Criminal do Império, mostrou-se avançado para a época, com medidas como a individualização da pena, previsão de agravantes e atenuantes e especificação da forca como o único meio para se executar a pena de morte[7].

O Código Penal da República, de 1890, aboliu a pena de morte e instalou um regime penitenciário voltado à correção do preso. Por ter sido elaborado às pressas, dada a necessidade premente de o recém instalado regime republicano se despir de tudo o que se referisse à monarquia há pouco extinta, resultou em um código legal mal feito, mal sistematizado, sendo por esta razão alvo de duras críticas pela doutrina [8]. Assim, foi sucessivamente modificado por inúmeras leis reunidas, por fim, em uma Consolidação de Leis Penais, em 1932 [9].

O atual código penal brasileiro data de 01 de janeiro de 1942 e foi elaborado com o que havia de mais avançado nas legislações penais da época como os códigos belga e italiano. A lei 7.209/84 promoveu uma ampla reforma em sua parte geral e em alguns pontos da parte especial como a introdução do erro de tipo e de proibição substituindo o erro de fato e de direito, adoção do sistema vincariante em substituição ao duplo-binário, instituição da figura do arrependimento posterior, a punição dos co-autores e partícipes proporcional às suas condutas, dentre outros [10].

Consoante já mencionado, a dinâmica social ensejou a elaboração de nova codificação penal, consubstanciada no Projeto de Lei nº 236/2012, atualmente em trâmite na sua Casa Iniciadora, o Senado Federal.


2 – A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 36, § 3º, DO PL 236/2012

O princípio da legalidade ou reserva legal significa que a aplicação de sanções penais incriminadoras está limitada à prévia e expressa determinação legal. Assim, somente poder-se-á punir um indivíduo pela ofensa à lei penal se ela for precedida por norma que a incrimine. De acordo com Greco:

É o princípio da legalidade, sem dúvida, o mais importante do Direito Penal. Conforme se extrai do art. 1º do Código Penal, bem como do inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal, não se fala da existência de crime se não houver uma lei definindo-o como tal. [11]  

A razão fundamental para a reserva da matéria à lei reside no fato de que esta emana do Poder Legislativo, constituído pelos representantes do povo, refletindo a sua ideologia e valores essenciais em determinado momento histórico.

As garantias que este princípio propicia ao cidadão também são uma forma de segurança. Com a atividade estatal limitada aos mandames legais e com o aumento crescente, absurdo até, da interferência do Estado na sociedade civil, a previsibilidade de suas atitudes são da maior importância. Se não o cidadão não tiver um mínimo de desta previsibilidade relativamente ao Estado, estará vivendo uma situação absurda, em que um gigante pode invadir seu quintal a qualquer momento com a força de um elefante e a astúcia de uma raposa, vale dizer, viverá uma situação de angústia.[12]

Os destinatários da norma ficam desta maneira, legalmente advertidos acerca dos limites de suas liberdades. Consequentemente adquirem condições de agir com segurança e cônscios das próprias responsabilidades, conhecedores das sanções que podem advir do comportamento que viole a norma legal.

O artigo 36, § 3º, do PL 236 de 09 de julho de 2012 dispõe o seguinte:

Art. 36. Aplicam-se as regras do erro sobre a ilicitude do fato ao índio, quando este o pratica agindo de acordo com os costumes, crenças e tradições de seu povo, conforme laudo de exame antropológico.

(...)

§ 3º Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos indígenas recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.

A justificativa dos autores do anteprojeto, na exposição de motivos é bem sucinta e resume-se  a afirmar que “se mesmo o “homem branco” procura formas alternativas de punir, negar esta possibilidade às comunidades indígenas seria desarrazoado”.

Contudo, ante a redação dada pelo artigo 5º, inciso XXXIX, percebe-se claramente a incompatibilidade material do texto do Códex em análise:

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal

A inovação do PL 236/2012 equivale a introdução no país do direito penal fulcrado em usos e costumes. Ora, se é permitido aos povos indígenas a aplicação de métodos próprios advindos de suas tradições é curial supor que ocorrerá o afastamento das leis penais formalmente vigentes no país.

Não se deve olvidar também que o artigo 5º é cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, § 4º, IV.  Se sua alteração ou revogação é vedada até mesmo por meio de Emenda Constitucional, quiçá por Projeto de Lei, como é o caso do Novo Código Penal.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

CONCLUSÃO

As inovações legais são salutares e bem-vindas, na medida em que se adequam à evolução das sociedades que regem. A atuação do legislativo e do judiciário para debelar desigualdades diversas, tais como de gênero, de raça e de origem, são necessárias com vistas a tentar corrigir injustiças históricas que grassam no Brasil.

Há que se ter limites até para as boas intenções sob o risco de, ao invés de proteger, trazer mais malefícios. Indubitavelmente o anteprojeto buscou, em seu bojo, respeitar as tradições indígenas, em atendimento ao disposto no artigo 231 da Constituição Federal. Mas o império da lei para tratar de questões penais, o que também implica na tipificação de condutas e estipulação das penas correspondentes, é fruto de uma longa evolução histórica mundial.

Admitir que, em pleno Século XXI, o Brasil permita, mesmo que sob o manto do politicamente correto, que comunidades indígenas reprimam crimes de acordo com os próprios costumes significa retrocesso histórico, além de ser medida temerária, que poderá dar vazão ao arbítrio e atecnicismo, prejudicando essencialmente aqueles que deveriam ser seus reais beneficiários.

Mesmo que os chamados “homens brancos”, como vem explicitado na exposição de motivos do Projeto de Lei 236/2012, utilizem-se de meios alternativos de punição, tais medidas são fruto de construção legislativa formal, em total consonância com o ordenamento jurídico pátrio e não baseado em meros usos e costumes.

Destarte, o artigo 36, § 3º, da PL 236/2012 deve ter sua análise feita não somente com vistas a inovar, teoricamente, em favor dos povos indígenas, mas principalmente à luz da Constituição a qual é, formal e materialmente, obrigado a se compatibilizar.


Notas

[1] Projetos e Matérias Legislativas, disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=, acesso em 26/05/2015

[2] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 22.ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.111.

[3] CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, Idem.

[4] Dos que cometem pecado de sodomia, e com alimarias: toda pessoa, de qualquer qualidade que seja, que peccado de sodomia per qualquer maneira commetter, seja queimado e feito per fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memoria, e todos os seus bens sejam confiscados para a Coroa de nossos reinos, postoque tenha descendentes; pelo mesmo caso seus filhos e netos ficarão inhabiles e infames, assi como os que commetem crime de lesa Magestade. Ordenações Filipinas on line, disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm, acesso em 23/05/2015.

[5] ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique, Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 8.ed. São Paulo: RT, 2010, v.1, p. 181.

[6] MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Campinas: Milenium, 2002, v.1, p.91.

[7] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 21.ed. São Paulo: Atlas. 2010, v.1.

[8] Neste sentido, v.g., VARGAS, José Cirilo de. Instituições de Direito Penal: Parte Geral - Tomo I. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p.55; BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte Geral. Tomo I. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense. 2003, p.104 e NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: Parte Geral Parte Especial. 4.ed. São Paulo: RT, 2008, p.68.

[9] MIRABETE, op. cit. p. 23.

[10] Ibid., p. 24.

[11] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 12.ed.Niterói: Impetus. 2010, v. 1, p. 90.

[12] SILVA, Alexandre Rezende da. Princípio da legalidade . Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 63, mar. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3816>. Acesso em: 26 mar. 2010, p.1.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Carlos Frederico Benevides Nogueira

Advogado <br>Sócio do Escritório Oliveira e Benevides Advogados Associados,<br>Pós-Graduado em Direito Tributário. Membro da Comissão de Estudos e Acompanhamento da Reforma do Código Penal OAB/CE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos