A responsabilidade do Estado por ato legislativo no ordenamento Alemão

02/06/2015 às 17:03
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O presente artigo tem como objetivo principal propiciar maiores informações sobre o complexo sistema jurídico alemão no que tange a responsabilidade estatal por ato legislativo, desde um contexto inicial histórico de responsabilidade até atualidade.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo principal propiciar maiores informações sobre o complexo sistema jurídico alemão no que tange a responsabilidade estatal por ato legislativo, desde um contexto inicial histórico de responsabilidade até as perspectivas atuais, ou seja, sobre como a legislação alemã contempla este tema atualmente.  

Sumário: 01.Distinções fundamentais sobre o tema da responsabilidade estatal no direito alemão. 02. A responsabilidade estatal no BGB. 03.A doutrina alemã sobre o tema da responsabilidade estatal. 04. A importância do jurista Otto Mayer na defesa da caracterização da responsabilidade estatal na doutrina alemã. 05. A jurisprudência alemã sobre o tema da responsabilidade estatal por ato legislativo. 06. A legislação alemã sobre o tema da responsabilidade estatal por ato legislativo.07.Conclusão. 08.Bibliografia. 09.Legislação.

01.Distinções fundamentais sobre o tema da responsabilidade estatal no direito alemão.

A disciplina jurídica alemã sobre a responsabilidade estatal esta fundamentada em uma distinção fundamental entre a responsabilidade pessoal dos funcionários públicos por atos ilícitos cometidos no desempenho de suas funções, a chamada Amtshaftung, e a responsabilidade do Estado ou das autoridades públicas, para a qual, é prevista uma indenização aos indivíduos que estariam sujeitos a determinados sacrifícios, ou seja, no caso da perda de direitos individuais no interesse da sociedade, chamada Aufopferung, como exemplo, podemos citar o caso da expropriação prevista no Código Civil Alemão, no que se refere ao  interesse da coletividade.

Tal entendimento está inserido no Código de 1794, chamado de Código Prussiano, o qual, afirmava que: “Todo direito ou vantagem  individual deve ceder em relação aos direitos e deveres relativos a perseguição do interesse público, se existir realmente um conflito entre estes dois, o Estado é obrigado a indenizar aquele que for coagido a sacrificar os seus direitos e vantagens individuais pelo bem comum”. ( parágrafo 74) ( tradução nossa ).

02. A responsabilidade estatal no BGB ( Código Civil da Alemanha ).

Na complexa estrutura alemã se distinguem dois tipos de responsabilidade estatal, a primeira denomina-se responsabilidade estatal indireta por ato ilícito extracontratual que deriva da ação ilegítima e culposa cometida por um indivíduo que exerça uma função pública prevista no art. 34 do Grundgesetz  e no parágrafo 839 do Bürgerlichesgesetzbuch. Existe também, a chamada responsabilidade estatal direta através do sacrifício de direitos individuais, que traz consigo o direito a uma indenização no caso de uma atuação legítima do Estado, culposa ou não, que estaria prevista no artigo art. 14 do GG.

A questão da responsabilidade estatal foi contemplada no Código Civil Alemão e inserida sob o título XXV que refere-se as chamadas “Condutas Ilícitas” previstas no Livro II, o qual, disciplina as obrigações e os deveres na realização de serviços públicos de uma forma geral, sob o Título “Responsabilidade pela violação de deveres do funcionário público”. Tal previsão legal reza que: “Qualquer funcionário público que, intencionalmente ou culposamente, realize menos do que lhe fora atribuído, em relação a um terceiro, deverá ressarcir o mesmo de todos os danos” ( parágrafo 839 )( tradução nossa )

O artigo 14 do GG, citado acima, reza que  : “Uma expropriação é admissível somente pelo bem da coletividade. E esta pode ocorrer somente através da lei ou baseada em uma lei que regule o modo e a forma da indenização.A indenização deve ser estabelecida mediante um consenso entre os interesses da coletividade e o interesse das partes”.(tradução nossa )

03.A doutrina alemã sobre o tema da responsabilidade estatal.

Os juristas alemães, principalmente do ano de 1820 demonstraram-se opostos ao dogma da incompatibilidade entre a responsabilidade no exercício das atividades administrativas de direito público e a soberania estatal, mesmo que tal dogma esteja muito presente em vários ordenamentos jurídicos até os dias atuais.

Os autores alemães procuram sustentar uma responsabilidade direta do Estado, a chamada Staatshaftung, porém, tal teoria contrastava com a Teoria do Mandato que previa uma relação contratual.

Alguns autores alemães defendiam a tese de que o exercício do poder estatal de forma ilegítima acarretaria uma responsabilidade pelos danos que porventura viessem a ocorrer através de uma ação imediata e de forma originária, não abrindo espaço para maiores discussões neste sentido.

Porém, mais tarde este modelo foi abandonado e retornou-se a acolher a chamada Teoria do Mandato, a qual,  defende a ideia de que o Estado não seria juridicamente capaz de assumir obrigações, nem mesmo poderia ser um sujeito de direito e obrigações de forma direta, pois, a base deste pensamento renascido no século XIX,  seria que a relação entre o Estado e seus agentes públicos seria um contrato de mandato. 
   

A Teoria do Mandato foi muito criticada, pois, o mandato é um contrato mediante o qual o mandante outorga poderes a outro, o mandatário, a fim de que este realize determinados atos em nome daquele, mas sob a responsabilidade do mandante, portanto o agente seria o mandatário, como pessoa física, do mandante como pessoa jurídica que agiria em seu nome e sob a responsabilidade do mandante, tendo em vista, a outorga de poderes.

Outras críticas surgiram na época sobre tal teoria, porém, a mais significativa seria a incapacidade voluntária do Estado em outorgar mandatos, ficando em aberto a questão sobre a titularidade daquele que outorgou o mandato.

Bem como, outra questão bastante discutida fora o fato de haver ou não uma responsabilização do Estado no caso de abuso por parte do agente público, ou seja, do mandatário, pois, neste caso o Estado não responderia por seus atos perante terceiros se o agente público agisse com excesso ou além das atribuições que lhe foram conferidas através do mandato.

Esta última teoria encontrou espaço no Código Alemão que entrou em vigor em janeiro de 1900, o qual, disciplinava alguns Estados de forma singular, mas outros Estados introduziram a responsabilidade estatal através de uma responsabilidade indireta e derivada daquela culposa dos funcionários públicos no exercício de suas funções. 

04. A importância do jurista Otto Mayer na defesa da caracterização da responsabilidade estatal na doutrina alemã.

Com o resurgimento do pensamento jusnaturalista e a ideia do sacrifício individual em detrimento do interesse público volta à tona, mas agora com a sua extensão para as atividades estatais ilegítimas, por obra do autor alemão O. Mayer em sua obra denominada Deutsches Verwaltungsrecht, de 1896.

Para o ilustre jurista alemão o Estado e os cidadãos possuem uma relação de direito público, que se caracteriza justamente pela sujeição daqueles ao poder soberano estatal, bem como, suas ideias encontram guarida na necessidade de ressarcimento de danos, chamada no direito alemão de öffentlichtliche Entsschädigung, ou seja, no seu entendimento, sendo a relação do Estado com o cidadão uma relação de direito público, aquele estaria sujeito a acatar os interesses estatais em detrimento de seu direito individual, o chamado besondere Opfer, e também, estariam os cidadãos sujeitos a obrigações desiguais na relação de uns contra os outros quando uma atividade pública assim o determinasse, tratando de forma diferenciada as pessoas em nome da soberania estatal,  que poderia tratar-se exatamente de uma previsão legal.

As ideias defendidas pelo jurista alemão Otto Meyer podem ter sido um início importante na caracterização da responsabilidade estatal, pois, foram gradualmente sendo acatadas pela jurisprudência na defesa de uma coincidência de fundamentos que baseavam-se na especialidade, ou seja, no ônus imposto aos cidadãos em benefício do interesse de uma coletividade.

05. A jurisprudência alemã sobre o tema da responsabilidade estatal por ato legislativo.

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Podemos dizer que o Tribunal Federal de Justiça alemão, chamado Bundesgerichtshof, passou a definir um modelo de responsabilidade do Estado fundado sobre o ressarcimento em matéria de obrigações coercitivas originárias da lei, estendendo a obrigatoriedade do ressarcimento aos danos causados pelas atividades públicas ilegítimas do poder soberano do Estado.

A jurisprudência alemã passou a contemplar também o chamado  enteignender Eingriff, o qual, abrangia as consequências danosas acessórias, ou seja, aquelas consequências que não poderiam estar previstas no ordenamento, justamente  pelo caráter atípico de algumas  atividades legítimas do Estado, mesmo que não substancialmente eivadas do elemento culpa.

Porém, em contrapartida, o Tribunal Federal Constitucional alemão passa a não permitir que os juízes de primeiro grau reconheçam o direito a indenização de forma direta, passando a adotar o entendimento da responsabilidade por atos ilícitos em sentido stricto, no qual, seria predominante o elemento culpa ( Amtshaftung).
 

Ocorreu na Alemanha uma reforma temporária na questão da responsabilidade estatal, que fora aprovada em junho de 1981, porém, tal reforma fora  imediatamente declarada inconstitucional por violação de competência através de uma sentença proferida pelo  BverfG em 19 de outubro de 1982, que previa a introdução de uma forma de responsabilidade direta e originária do poder público pela violação de um dever de direito público, excluindo os danos referentes a atividades legítimas do Estado e unificando a tutela jurisdicional neste sentido, tanto que existe na Alemanha uma dupla jurisdição nesta matéria, pois, existe o juiz de questões administrativas e o juiz ordinário, portanto,  “ quando acaba a fase processual administrativa se inicia a fase processual através do juiz ordinário que irá julgar as questões referentes ao ressarcimento” conforme afirma o jurista Calzolaio em sua obra denominada “O ilícito do Estado entre direito comunitário e direito interno” ( pág. 111). ( tradução nossa )

06. A legislação alemã sobre o tema da responsabilidade estatal por ato legislativo.

Mesmo com a modificação constitucional alemã de 1994, a qual, atribuiu ao Bundesanleih a competência legislativa concorrente sobre a responsabilidade do Estado e apesar dos numerosos entendimentos doutrinários neste sentido, não existe ainda na Alemanha uma lei federal que preveja reformas no que tange as responsabilidades do poder público. 

Contudo, nas palavras no ilustre jurista Bifulco podemos entender que  “a tendência da doutrina alemã através do Amtshaftung é de reconhecer a  responsabilidade do Estado por atos legislativos, sustentando que a adoção de uma lei inconstitucional constitua uma violação dos deveres atribuídos ao parlamentar”. (R. Bifulco, “A responsabilidade do Estado por atos legislativos.” , pág. 136 ) ( tradução nossa ).

Alguns entendem que a tese da responsabilidade estatal por ato legislativo do Direito Alemão seria muito rígida, pois, segundo a teoria alemã, a injustiça de um dano derivado da eventual declaração de inconstitucionalidade de uma lei incluiria necessariamente a vontade culposa do legislador e assim estaria demonstrado o elemento culpa, em contra partida, muitos autores, e dentre eles podemos citar M. Clarich, entendem que “é muito abrangente a questão da responsabilidade da administração pública do ordenamento alemão”. ( tradução nossa ) ( R. Bifulco. “A responsabilidade do Estado por ato legislativo”. pág. 141 e G. Berti, “Função de vigilância e responsabilidade civil da administração pública”, Nápoles, 2005, Vol. II págs. 880 e seguintes. )

07.Conclusão.

A teoria alemã sobre a responsabilidade estatal por ato legislativo, foi construída através de disposições normativas de direito comum para regular as relações das pessoas entre si e as relações das pessoas ou do cidadão comum com a administração pública, por atividades predominantemente técnicas, sendo inconciliáveis com as relações do chamado estado constitucional de direito e com o modo de conceder a função legislativa, pois, esta tem uma essência predominantemente política de valores constitucionais democráticos, e inclusive, as atribuições feitas ao legislador devem estar equilibradas com os chamados “valores constitucionais democráticos e pluralistas”.( V. Angiolini. “ Liberdade e jurisprudência constitucional”. Turim. 1992, p.47)

08.Bibliografia.

Mayer O. Deutsches Verwaltungsrecht, Leipzig. 1896.

Calzolaio E. “O ilícito do Estado entre direito comunitário e direito interno”. Milão, 2004.

Bifulco R. “A responsabilidade do Estado por atos legislativos.” Padova,1999.

Berti G. “Função de vigilância e responsabilidade civil da administração pública”, Nápoles, 2005.

Angiolini V. “ Liberdade e jurisprudência constitucional”. Turim, 1992.

09.Legislação.

Código Prussiano (1794) - Allgemeines Landrecht für die Preußischen Staaten.

Grundgesetz (GG).

Código Civil Alemão ( BGB) - Bürgerlichesgesetzbuch.

  

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Sobre a autora
Vanessa Massaro

Doutora (PhD) em Direito pela Università degli Studi di Torino Turim - Itália.Doutorado em Direito, Pessoa e Mercado. Pesquisadora na área do Direito Privado pela Università degli Studi di Torino - Campus CLE. Participação em 2014, 2015 e 2017 no Doutorado Organizado pela União Europeia - Erasmus Mundus e no Doutorado em Direito na Università Degli Studi di Milano. Milão - Itália. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná - IAPPR. Curso de aperfeiçoamento em Comparative Private Low na Università Uninettuno-Roma. Curso de Aperfeiçoamento em Direito dos Mercados Financeiros pela Università degli Studi di Milano.Milão - Itália. Pós-graduação em Direito pelo Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos. Formada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.Contato: [email protected]@gmail.comSite: www.unito.it Home > Studenti > Massaro VanessaDipartimento di Economia e Statistica "Cognetti de Martiis"Home > Personale > Vanessa Massaro. LIVROS DISPONÍVEIS NO SITE DA AMAZON E NO CLUBE DE AUTORES. Público alvo: estudantes de Direito, Economia e Administração de Empresas; operadores do direito e concurseiros.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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