Lineamentos sobre a seguridade social e a garantia da irredutibilidade dos vencimentos

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O artigo traça um paralelo entre o art. 194, inciso IV, e o art. 201, §4º, da Constituição Federal, para compreensão do significado da irredutibilidade de vencimentos e garantia do valor real dos benefícios na Seguridade e Previdência Social.

A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações por parte dos Poderes Públicos e da sociedade, destinados a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

O mosaico das garantias referentes a estes direitos, espraiados por toda a Constituição e legislação infraconstitucional, necessita de algo além da promessa normativa. Assim, para conferir densidade aos mesmos, cria-se um conjunto de instituições, princípios, órgãos, práticas administrativas, destinações orçamentárias, concretizando no SUS, na Previdência Social e na Assistência Social o real alcance aos cidadãos de seus direitos.

A seguridade social, em sua composição trina, está aferrada a objetivos comandados pela carta magna, destacando-se a universalidade do atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade dos vencimentos; equidade na forma de participação no custeio; diversidade da base de financiamento; caráter democrático  e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

A importância conferida à seguridade social é tamanha, que a própria CF estabelece que a pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios. Ou seja, àquele que se fecha ao propósito social tem para si fechado o acesso econômico fomentado pelo governo.

Registre-se, que ao contrário do que ocorreu outrora, com significativos prejuízos ao equilíbrio financeiro e atuarial, a CF em seu art. 167, inciso XI,  veda a utilização dos recursos provenientes das contribuições sociais para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência social, ainda que a pretexto de fomento público para suprir quadro de grave instabilidade econômica.

Conforme lição de Uadi Lâmmego Bulos, entende-se por equilíbrio financeiro o controle equânime das receitas e das despesas, de forma que não haja gastos superiores  àqueles previstos no orçamento público e por equilíbrio atuarial a boa preservação entre a estatística e o montante de despesas da previdência social,[1] aqui há um notório elemento prospectivo que preocupa-se com a sustentabilidade futura do regime.

Como visto, um dos objetivos constitucionalmente prescritos é a irredutibilidade de vencimentos. O art. 201, §4º da CF, tratando especificamente de um dos ramos da seguridade social, a Previdência Social, assegura o reajustamento dos benefícios para preservar-lhe, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios definidos em lei.

Tem-se registrado em artigos e decisões judiciais uma certa confusão quanto à extensãoi e significado de ambos os artigos (194, inciso IV e 201, §4º). Perquire-se se eles confluem ou se distinguem, e, no caso de distinguirem-se,  em que medida.

Não há dúvidas que, no que se refere à Previdência Social, a garantia é do valor real dos benefícios.

Entende-se por valor real àquele que garante o poder de compra dos indivíduos, isto é, que é compulsoriamente reajustado para fazer face a corrosão promovida pelo processo inflacionário. Por sua vez, o valor nominal é àquele singelamente estampado em números.

A garantia do valor real no que atine à Previdência Social está expressamente disposta na CF.

Para Horvath Júnior  “benefício é a prestação pecuniária exigível pelos beneficiários. [...] os benefícios previdenciários são dívida de valor, ou seja, são dívida em dinheiro mas não de dinheiro, o qual tem apenas o sentido de medir o valor do objeto da prestação[2]”. Segundo Castro e Lazzari  a irredutibilidade dos benefícios busca, da mesma forma que o princípio da intangibilidade do salário dos empregados e do vencimento dos servidores do ramo do direito do trabalho, que o benefício legalmente concedido não pode ter seu valor nominal reduzido, dentro da mesma idéia do art. 201, § 2º que estabelece o reajustamento periódico dos benefícios para preservar em caráter permanente seu valor real.  [3]

Pese haja quem aponte jurisprudência do STF no sentido de que a garantia é apenas do valor nominal, ousamos discordar. Do que colhemos dos precedentes da corte suprema, o que esta afirma é tão somente que o índice de correção será fixado legalmente, não sendo pré-determinado por este ou aquele que se preste ao reajuste inflacionário. Isto não quer dizer que o STF está a atribuir aos benefícios a manutenção do valor meramente nominal e admitindo a  corrosão inflacionária. Cito:

"Conversão do benefício para URV. Observância das Leis 8.542/1992, 8.700/1993 e  8.880/1994. Inconstitucionalidade da palavra 'nominal' contida no inciso I do art. 20 da Lei 8.880/1994, por ofensa à garantia constitucional do direito adquirido (CF, art. 5º, XXXVI). Improcedência. O referido vocábulo apenas traduz a vontade do legislador de que no cálculo da média aritmética do valor a ser convertido para a nova moeda fossem considerados os reajustes e antecipações efetivamente concedidos nos meses de novembro e dezembro de 1993 e janeiro e fevereiro de 1994." (RE 313.382, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 26-9-2002, Plenário, DJ de 8-11-2002.) No mesmo sentido: AI 587.822-AgR, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 14-9-2010, Segunda Turma, DJE de 3-11-2010; AI 720.695-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 8-6-2010, Segunda Turma, DJE de 25-6-2010; ADI 2.536, Rel. Min.Cármen Lúcia, julgamento em 15-4-2009, Plenário, DJE de 29-5-2009.

EMENTA: CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIOS: REAJUSTE: 1997, 1999, 2000 e 2001. Lei 9.711/98, arts. 12 e 13; Lei 9.971/2000, §§ 2º e 3º do art. 4º; Med. Prov. 2.187-13, de 24.8.01, art. 1º; Decreto 3.826, de 31.5.01, art. 1º. C.F., art. 201, § 4º. I.- Índices adotados para reajustamento dos benefícios: Lei 9.711/98, artigos 12 e 13; Lei 9.971/2000, §§ 2º e 3º do art. 4º; Med. Prov. 2.187-13, de 24.8.01, art. 1º; Decreto 3.826/01, art. 1º: inocorrência de inconstitucionalidade. II.- A presunção de constitucionalidade da legislação infraconstitucional realizadora do reajuste previsto no art. 201, § 4º, C.F., somente pode ser elidida mediante demonstração da impropriedade do percentual adotado para o reajuste. Os percentuais adotados excederam os índices do INPC ou destes ficaram abaixo, num dos exercícios, em percentual desprezível e explicável, certo que o INPC é o índice mais adequado para o reajuste dos benefícios, já que o IGP-DI melhor serve para preços no atacado, porque retrata, basicamente, a variação de preços do setor empresarial brasileiro. III.- R.E. conhecido e provido.(RE 376846, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 24/09/2003, DJ 02-04-2004 PP-00013 EMENT VOL-02146-05 PP-01012).

Este tribunal fixou entendimento no sentido de que o disposto no art. 201,§4º, da Constituição do Brasil, assegura a revisão dos benefícios previdenciários conforme critérios definidos em lei, ou seja, compete ao legislador ordinário definir as diretrizes para conservação do valor real do benefício. Precedentes. AI 668.444-AgRg, Rel. Eros Grau. Julgamento em 13-11-2007, 2ª Turma, DJ 7-12-2007.

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Em se concordando que no caso dos benefícios previdenciários garante-se o valor real, resta a questão quanto ao "objetivo" da seguridade social (mais ampla) de manter a irredutibilidade dos benefícios.

Por objetivo, a princípio, compreende-se que não é "garantia", mas meta a ser alcançada.

Ora, se no que toca aos benefícios previdenciários, em artigo próprio e específico a CF garantiu a manutenção do valor real, o que nos sobra? Sobra-nos os benefícios assistenciais, igualmente integrante da seguridade.

Para estes, e aqui fazemos cotejo diferencial entre o disposto nos artigos confrontados, "objetiva-se" a irredutibilidade dos vencimentos, mas não há como se dar isto por garantia, nem que os reajustes serão necessariamente feitos com base no "valor real".

De fato, os benefícios assistenciais pagos hoje, são iguais ou inferiores ao salário mínimo, e este, pese venha sendo reajustado muitas vezes acima do processo inflacionário, já oscilou em margens deficitárias. Da mesma forma, se pensarmos no "bolsa família", não há garantias de reajuste que lhe garanta o valor real, tão só o valor nominal.

Veja trecho de reportagem do Correio Braziliense:

A inflação tem sufocado tanto o custo de vida dos mais pobres que nem o Bolsa Família anda salvando as contas do mês. Apesar de o benefício do governo federal ter sido reajustado em ritmo mais acelerado do que o da própria carestia nos últimos anos, a atual conjuntura econômica embaraçou de vez o orçamento das famílias de baixa renda. Estrangulada pela alta dos preços e dos juros, a ajuda criada para garantir o direito à alimentação e o acesso à educação e à saúde não consegue assegurar itens básicos da cesta de consumo, como ocorria em um passado recente.[4]

O objetivo de "irredutibilidade de vencimentos" na seguridade social é longa manus do princípio maior da proibição do retrocesso social, transcrito com maestria pelo Ministro Celso de Mello em acórdão assim ementado:

A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO EAO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. - O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados. (...) (ARE 639337 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125)

Mesmo em face da proibição do retrocesso, a Assistência Social e seus benefícios são caracterizados por uma certa flexibilidade que considera as necessidades dos assistidos e as possibilidades do governo, sempre tendo em mente a célebre frase de Ronald Reagan: “o sucesso de um programa assistencial não é medido pelo número de pessoas que nele entram, e sim pelo número dos que dele saem”.

Concluímos, portanto, que, o art. 194, inciso IV, traça um objetivo da seguridade social, que não garante manutenção do valor real dos benefícios, mas almeja sua irredutibilidade, ao passo que o art. 201, §4º, que trata dos benefícios pagos especificamente pela Previdência Social, garante-lhes o valor real, impedindo a corrosão inflacionária.


Notas

[1] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada - 10ª ed. rev. atual. e reformulada até a EC 70/2012. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 1434.

[2] HORVATH JÚNIOR, Miguel. Direito previdenciário. 6 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 78

[3] CASTRO; Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI; João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 2 ed. São Paulo: LTr, 2001. p. 82.

[4] Disponível em http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2015/03/08/internas_economia,474471/inflacao-corroi-renda-de-beneficiario-do-bolsa-familia-e-complica-orcamento.shtml  Consulta em 03/06/2015.

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Sobre os autores
Júlio César Prado de Oliveira (JC Rörschak)

Advogado e Parecerista. Professor em Cursos de Pós-Graduação e Graduação. Formado pela UNESP - Franca/SP.Pós-Graduado (lato sensu) - Especialista em Ciências Penais pela UNISUL. Pós-Graduado (lato sensu) - Especialista com formação para o magistério superior, em Direito Ambiental e Urbanístico pela UNIDERP. Pós-Graduado (lato sensu) - Especialista com formação para o magistério superior, em Direito Constitucional pela UNIDERP. Qualificado no Curso Tutela de Interesses Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo - ESMPSP. Qualificado no Curso em Direito Penal e Processo Penal pelo IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público. Qualificado no Curso de Introdução ao Direito Eleitoral pela Escola Superior de Advocacia OAB/SP. Qualificado no Curso Legislação Aplicada à Gestão de Pessoas - Lei 8.112/90 pela Escola Nacional de Administração Pública.Qualificado no Curso Ética e Serviço Público pela Escola Nacional de Administração Pública. Qualificado no Curso Ética e Administração Pública pelo Instuto Legislativo Brasileiro - Senado Federal.Qualificado no Curso de Doutrinas Políticas - Novas Esquerdas pelo Instituto Legislativo Brasileiro - Senado Federal.Pós-Graduado (lato sensu) em Direito Civil, Processual Civil e do Consumidor pelo UNIASSELVI /FMB – Flávio Monteiro de Barros Pós Graduação.Pós-Graduado (latu sensu) em Direito Público - UNIASSELVI/Verbo Jurídico.

Ana Paula Thomazo

Advogada no Escritório de Advocacia Silvio Cesar Oranges.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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