O CRIME DE DESCAMINHO: UM EXEMPLO DE CRIME FORMAL

03/06/2015 às 18:36
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O ARTIGO PÕE EM DISCUSSÃO A NATUREZA JURIDICA DO CRIME DE DESCAMINHO.

O CRIME DE DESCAMINHO: UM EXEMPLO DE CRIME FORMAL


ROGÉRIO TADEU ROMANO
Procurador Regional da República aposentado

I – CONCEITO

O artigo 334 do Código Penal prevê o crime de contrabando ou descaminho ao dizer: ¨Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.¨
O crime é sancionado com pena de um a quatro anos. Porém, se o sujeito se utiliza de transporte aéreo, para o crime de contrabando ou descaminho a pena deve ser dobrada, parágrafo terceiro.
Desde já, na linha de Júlio Fabbrini Mirabete , lembro que a doutrina orienta  que contrabando designa a importação ou exportação fraudulenta da mercadoria e descaminho o ato fraudulento destinado a evitar o pagamento de direitos e impostos.
Do que se tem do artigo 89 da Lei 9.099/95, se for o caso, poderá o Parquet apresentar pedido de suspensão condicional do processo.
Já de algum tempo, há censura a forma de um tratamento único para duas figuras penais distintas.
Foi o que disse Alfredo Pinto Araújo Corrêa , que já censurava a reunião num único dispositivo de fatos sensivelmente diversos.
O contrabando é a exportação ou importação de mercadoria proibida, não sendo ilícito fiscal. Por sua vez, o descaminho representaria, para a doutrina,  uma fraude ao pagamento de tributos aduaneiros, configurando um ilícito de natureza tributária, apresentando uma relação fisco-contribuinte, algo que não existe no contrabando.
Para Paulo José da Costa Jr , o  descaminho representa uma fraude fiscal, insista-se, importando verificar se os impostos, taxas ou direitos são realmente devidos, se foram calculados com exatidão, se as formalidades legais foram obedecidas.
Assim o núcleo verbal do crime de descaminho se observa na ação de iludir, burlar, enganar, ludibriar, fraudar o pagamento, total ou parcial, de imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.

II – OBJETIVIDADE JURÍDICA

O objeto jurídico do crime é o erário público, uma vez que há evasão de renda como resultado do crime de descaminho.
Para Heleno Cláudio Fragoso  o objeto da tutela penal neste crime é, fundamentalmente, a salvaguarda dos interesses do erário público, seriamente prejudicado pela evasão da renda que resulta do descaminho. Interesses de outra ordem são ainda tutelados, de forma secundária, como a saúde e a moralidade pública(não repressão à importação de mercadorias proibidas), bem como a indústria nacional, que se protege com a barreira alfandegária. Mas, de forma essencial, esses crimes encontram sua objetividade jurídica na economia pública.

III – SUJEITOS DO CRIME

Tanto o contrabando como o descaminho devem ser considerados como crimes comuns, podendo ser praticados por qualquer pessoa.
Porém, quando participam do fato funcionários públicos, que infringem o dever funcional, respondem estes pelo crime previsto no artigo 318 do Código Penal,  facilitação de contrabando ou descaminho.
Se essa circunstância elementar não ocorrer, poderão eles ser partícipes ou coautores de crime de descaminho ou ainda de contrabando.
Se o crime for praticado por uma associação criminosa, teremos a aplicação do artigo 288 combinado com o artigo 334 do Código Penal.

IV – CONDUTA E TIPO SUBJETIVO. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

No crime previsto no artigo 334 do Código Penal, onde há um tipo misto cumulativo, nenhuma de suas práticas delitivas acha-se subordinada a qualquer questão prejudicial, no âmbito administrativo.
Assim louvo a lição de Paulo José da Costa Jr.  ao concluir que nenhuma das práticas delitivas acha-se subordinada a qualquer questão prejudicial, no âmbito administrativo. Segundo ele, não procede a alegação de que o processo criminal dependeria de uma condição objetiva de punibilidade(lançamento fiscal) ou de procedibilidade, qual fosse a verificação prévia do contrabando ou descaminho, em sede administrativa.
Na mesma linha de pensar, Heleno Cláudio Fragoso  esclareceu que este crime de descaminho não se subordina a quaisquer questões prejudiciais prévias, de natureza administrativa.  
Lúcida a afirmação de que o processo penal não fica, pois, dependendo da prévia decisão administrativa. Isso porque tais esferas, a administrativa e a judicial, são, verdadeiramente, autônomas e independentes.
O exame pericial, por outro lado, não é condição de procedibilidade para o ajuizamento da ação penal.
Mas, vamos a segunda parte do dispositivo presente no caput do artigo 334 do Código Penal: a fraude empregada para evitar o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada ou saída da mercadoria proibida.
Assim se entende que configura-se o crime na posse de mercadoria estrangeira sem comprovante da importação regular e em quantidade superior às necessidades de uso pessoal do agente.
Já se entendeu que não configura o crime de descaminho com a entrada de produto sobre o qual não incide o tributo  ou ainda a saída se não são devidos tributos fiscais.
Repita-se que, no caso do descaminho, a ação incriminada consiste em iludir(enganar, burlar, fraudar), no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. Na importação é obrigatório o pagamento de direitos(ora cobrados ad valorem) e do ICMS(se a mercadoria estiver sujeita a esse tributo). Este pagamento deve ser feito através da guia de despacho. Na saída de mercadoria é devido o imposto de exportação. Nessa modalidade, há entendimento de Heleno Cláudio Fragoso  de que o crime consuma-se quando as mercadorias são liberadas, entrando na posse do agente ou de seus prepostos ou mandatários, sem que tenham sido pagos os direitos ou impostos devidos.
Discute-se se pode incidir o princípio da insignificância.
O princípio da insignificância não deve ser estudado à luz das causas de exclusão da antijuridicidade. Deve ser estudado á luz da tipicidade material.
É certo que Francisco de Assis Toledo  trouxe à  análise a posição de Welzel que considerava que o princípio da adequação social era levado em consideração para excluir certas lesões insignificantes. Assim se permitiria excluir tipos onde os danos fossem de pouca significância.
Segundo o princípio da insignificância o direito penal só vai até onde seja necessário para  a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas. O dano, previsto no artigo 163 do Código Penal, não deve ser aplicado para qualquer lesão, mas sim para aquelas que representam um prejuízo de alguma significação. O crime de descaminho, previsto no artigo 334, § 1º, do Código Penal, não será a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão para o Fisco. A injúria, a calúnia, a difamação devem restringir-se a fatos que possam afetar, significativamente, a dignidade, a reputação.
A infração bagatelar ou delito de bagatela expressa o fato insignificante, de ninharia, ou, em outras palavras, de uma conduta ou, de um lado, de um ataque ao bem jurídico que não requer(ou não necessita a intervenção penal) como aduziu Luiz Flávio Gomes.
A infração bagatelar deve ser compreendida sob dupla dimensão: a) infração bagatelar própria; b) infração bagatelar imprópria. Própria é a que nasce sem nenhuma relevância penal, ou porque não há desvalor da ação(não há periculosidade da conduta, Isto é, idoneidade ofensiva relevante) ou porque não há o desvalor do resultado(não se trata de ataque grave ou significativo ao bem jurídico). Para todas as situações da infração bagatelar própria o princípio o princípio a ser aplicado é o da insignificância(que tem o efeito de excluir a tipicidade penal, ou seja, a tipicidade material). A infração bagatelar imprópria é a que nasce relevante para o direito penal(porque há relevante desvalor da conduta bem como desvalor do resultado), mas depois se verifica que a incidência de qualquer pena em caso concreto apresenta-se totalmente desnecessária.
Há lição de Luiz Flávio Gomes  no sentido de que o principio da insignificância está para a infração bagatelar própria assim como a irrelevância penal do fato está para a infração bagatelar imprópria. De toda sorte, o princípio da irrelevância penal do fato está coligado de forma estreita com o princípio da desnecessidade da pena.
O fundamento da desnecessidade da pena reside em múltiplos fatores: ínfimo desvalor da culpabilidade, ausência de antecedentes criminais, reparação de danos, reconhecimento da culpa, colaboração com a justiça, o fato de o agente ter sido processado, o fato de ter ficado preso por um período, em análise que deve ser feita em concreto, caso a caso.
A infração bagatelar imprópria resulta na ofensa de bem juridicamente relevante para o ordenamento jurídico penal. Contudo, por uma questão de política criminal, mediante a análise das circunstâncias judiciais(artigo 59 do código penal) que envolvem o caso concreto, a aplicação da pena torna-se desnecessária.
Diverso é o principio da intervenção mínima. O ordenamento positivo deve ter como excepcional a previsão de sanções penais e não se apresentar como um instrumento de satisfação de situações contingentes e particulares que podem servir a situações políticas de momento que servem para aplacar o clamor público que e exacerbado pela propaganda. Além  disso, a sanção aplicada para cada delito deve ser a necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime.   Tais ideias que consubstanciam o princípio da intervenção mínima servem para inspirar o legislador, que deve buscar na realidade fática o substancial dever ser, como explica Fabbrini Mirabete para tornar efetiva a tutela dos bens e interesses considerados relevantes quando do momento da criminalização, neocriminilização, descriminilização e despenalização.
Reporto-me ao que foi decidido no AgRg no Recurso Especial 1.275.206 – RS, a partir do entendimento do Supremo Tribunal Federal, onde se repele a aplicação do princípio da insignificância quando a conduta delituosa foi praticada por agente envolvido em reiteração ou habitualidade da prática do delito de descaminho.
Decidiu-se pelo afastamento do princípio da insignificância, nos casos de prática reiterada da infração.
Seriam pressupostos para aplicação desse princípio: a mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Mas, lembro que o criminoso contumaz, mesmo que pratique crimes de pequena monta, não pode ser tratado pelo sistema penal como se tivesse praticado condutas irrelevantes, pois crimes considerados ínfimos, quando analisados isoladamente, mas relevantes quando em conjunto, seriam transformados pelo infrator em verdadeiro meio de vida, como disse a Ministra Cármen Lúcia, no julgamento do HC 111.618/MG. Assim o princípio da insignificância não se aplica quando se trata de paciente reincidente, porquanto não há falar em reduzido grau de reprovabilidade do comportamento lesivo, como disse a Ministra Cármen Lúcia, no julgamento do HC 107.067, DJ de 26 de maio de 2011.
Segundo a jurisprudência que foi firmada no Superior Tribunal de Justiça, Primeira e Segunda Turmas, incide o princípio da insignificância aos débitos tributários que não ultrapassem o limite de R$10.000,00( dez mil reais), a teor do artigo 20 da Lei 10.522/02.
Nessa esteira, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal vem assentando a orientação que falta justa causa para a ação penal por crime de descaminho quando a quantia sonegada não ultrapassar o valor do referenciado dispositivo, aplicando-se o princípio da insignificância.
Esse ainda o entendimento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 100.367/RS, Relator Ministro Luiz Fux. 
Já se entendeu também que é inadequada a incidência de contribuições sociais para a configuração do descaminho, pois não há incidência de PIS e COFINS sobre a importação de bens estrangeiros que são objeto de pena de perdimento.
Em verdade, tenha-se que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se consolidou, desde o julgamento do Recurso Especial 1.112.748/TO, representativo de controvérsia na matéria, no sentido de se admitir o limite de R$10.000,00(dez mil reais), para fins de aplicação do princípio da insignificância quanto ao crime de descaminho. Por outro lado, a existência de condições pessoais desfavoráveis, como maus antecedentes, reincidência ou ações penais em curso, não impedem a aplicação do principio da insignificância. 
De toda sorte, exige-se o dolo, como elemento subjetivo do tipo, pois sem ele não se tem como configurado o crime de descaminho. Se assim é não se configuraria o crime quando são cobrados pelo menos em parte os direitos relativos às mercadorias trazidas do estrangeiro.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal reiterou entendimento com relação a aplicação do princípio da insignificância ao delito de descaminho, nos casos em que os débitos tributários sejam menores que o valor estipulado para a atuação do Estado em matéria de execução fiscal. Com esse entendimento o Ministro Luis Roberto Barroso deferiu o HC 122.050, para restabelecer sentença que absolveu sumariamente o réu denunciado pela suposta prática do delito descrito no artigo 334 do Código Penal.
Ao proferir a decisão, o ministro observou que, apesar de haver certa uniformidade no STF nas condicionantes para a caracterização da bagatela (mínima ofensividade da conduta do agente, ausência de periculosidade social da ação, grau reduzido de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada), não há um enunciado claro e consistente que sinalize para as instâncias inferiores o que o Tribunal considera suficiente para a utilização do princípio da insignificância e possibilite, por consequência, afastar aplicação da norma penal. Ressaltou que o resultado dessa falta de uniformização é a ocorrência de julgamentos com resultados diversos para fatos relativamente semelhantes.
O ministro salientou que essa disparidade não é observada nos casos que tratam da aplicação do princípio da insignificância ao delito de descaminho. Nessa circunstância, explicou, as decisões do STF têm sido sempre mesmo sentido, pois o fundamento que orienta a avaliação da tipicidade da conduta é o mesmo estipulado como parâmetro para a atuação do Estado em matéria de execução fiscal, ou seja, o valor do tributo devido. Destacou que, para aferir o requisito objetivo, assim como estabelecido na legislação fiscal, o Tribunal considera a soma dos débitos consolidados e, consequentemente, a reiteração na conduta.

É certo que, para o caso, o Superior Tribunal de Justiça   entendeu que não seria possível aplicar o princípio da insignificância porque o valor do imposto devido teria ultrapassado o limite de R$10.000,00(dez mil reais) para o não ajuizamento de ação fiscal, valor este previsto no artigo 20 da Lei 10.522/2002. Mas o Ministro Barroso assinalou, no entanto, que o Ministério da Fazenda, por meio da Portaria 75/2012, definiu o montante de R$20.000,00(vinte mil reais) como novo parâmetro para a atuação da Procuradoria da Fazenda Nacional e para a análise das pretensões de natureza fiscal. Disse o Ministro: ”Nessas condições não há como deixar de reconhecer a atipicidade dos fatos imputados ao paciente. Notadamente se se considerar que eventual desconforto com a via utilizada pelo Estado-Administração para regular a sua atuação fiscal não é razão para a exacerbação do poder punitivo”.
O julgamento noticiado está em dissonância com o  parecer exarado pelo Ministério Público que foi veemente ao alertar que “uma providência que tem em conta os princípios da economicidade e da boa gestão da coisa pública não autoriza leitura de desinteresse ou disponibilidade na cobrança do tributo”.  Concluiu o Parquet ao aduzir: “Aliás, a própria realidade empírica estaria a desautorizar tal entendimento. Num País com tantas necessidades ainda não atendidas, com persistência de bolsões de miséria e grande desigualdade, seria incompreensível se considerar insignificantes valores da ordem de R$10.000,00, 20.000,00, e principalmente considerando o volume que isso representa em termos globais”. Mas o efeito mais perverso nesse entendimento é a certeza da impunidade que é forte vetor de reprodução da conduta típica estudada.

V– A DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL: CRIME FORMAL OU MATERIAL

O crime de descaminho tal como ocorre no crime de contrabando se consuma com a liberação da mercadoria.
Se o expediente cercado de ardil se consuma, iludindo as autoridades alfandegárias, aperfeiçoa-se o crime na medida em que o destinatário entrar na posse da mercadoria sem pagar os tributos ou impostos devidos.
Penso haver inequívoca diferença entre o crime de descaminho ou contrabando e o crime contra a ordem tributária. São tipos penais com objetividade distinta, não podendo ser aplicado o entendimento para ambos, no que se refere ao que se denomina condição objetiva de punibilidade. O delito de contrabando ou descaminho tutela a Administração Pública, em especial o erário, protegendo ainda a saúde, a moral, a ordem pública. De outra parte, no crime do artigo 1º da Lei 8.137/90, o bem jurídico protegido é a ordem tributária, entendida como o interesse do Estado na arrecadação dos tributos, para a consecução de seus fins.
O bem jurídico protegido pela norma que tipifica o ilícito de descaminho é mais do que o mero valor do imposto. Isso porque engloba a própria estabilidade das atividades comerciais dentro do país, que reflete na balança comercial do Brasil e de outros países. Assim mais do que um prejuízo ao fisco, há o interesse de proteção ao comércio legal. combatendo-se a concorrência desleal com os bens produzidos no país, de sorte a evitar prejuízos à atividade empresarial brasileira. 
Considero que o processo administrativo não é condição de procedibilidade para a deflagração do processo-crime pela prática do delito previsto no artigo 334 do Código Penal, tampouco a constituição definitiva do crédito tributário é pressuposto ou condição objetiva de punibilidade.
Assim não entendeu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do RHC 31.368/PR, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Quinta Turma, DJe de 14 de junho de 2012.
Foi dito que o Direito Penal só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes. Diante disso,  concluiu o Relator: 
¨Por consequência, entendo que o bem jurídico que o Estado procurou tutelar foi a ordem tributária ou a Administração Pública em seu aspecto fiscal. Dessa forma, parece-me desnecessária a reprimenda estatal quando inexistir prejuízo à Fazenda Nacional.¨
Soma-se a isso que o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 48.805/SP, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ de 19 de novembro de 2007, entendeu, diante de crime de descaminho, que há extinção da punibilidade mediante pagamento de tributo antes do oferecimento da denuncia. Ora, de acordo com a Súmula 560 do STF, a extinção da punibilidade, pelo pagamento do tributo devido, estender-se-ia  a crime de contrabando ou descaminho, por força do artigo 18, parágrafo segundo, do Decreto-lei 157/67.
Para tal entendimento, somente a autoridade administrativa, por meio do procedimento tributário, detém competência para aferir acerca da existência do tributo, além de determinar o seu valor.
Para tanto, nutre-se esse entendimento das lições de Hugo de Brito Machado , para quem a exigência de prévio exaurimento da via administrativa, para que validamente possa ser proposta a ação penal, nos crimes contra a ordem tributária, é uma forma de fazer efetivas as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, que seria um induvidoso direito ao regular e prévio procedimento administrativo de acertamento.
Ouso divergir.
Disse bem a Ministra Laurita Vaz, no julgamento do HC 218.961/SP, DJe de 25 de outubro de 2013, que o crime de descaminho ser perfaz com o ato de iludir o pagamento do imposto devido pela entrada da mercadoria no país. Não se faz necessário a apuração administrativo-fiscal do montante que deixou de ser recolhido para a configuração do delito.
Isso porque estamos diante de crime formal, e não material,  razão pela qual o resultado da conduta delituosa relacionada ao quantum do imposto devido não integra o tipo penal.
Nessa linha de pensar, o Ministro Luiz Fux, no julgamento do RHC 119.960/SP, DJe de 30 de maio de 2014, entendeu que “a consumação do delito de descaminho e a posterior abertura de processo-crime, não estão a depender da constituição administrativa do débito fiscal. Primeiro, porque o delito de descaminho é rigorosamente formal, de modo a prescindir da ocorrência de resultado naturalístico. Segundo, porque a conduta materializadora desse crime é ´iludir´ o Estado quanto ao pagamento do imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. E iludir não significa outra coisa senão fraudar, burlar, escamotear”(HC 99.740, Segunda Turma, Relator Ministro Ayres Britto, DJe de 1.2.11). No mesmo sentido: HC 120.783, Primeira Turma, Relatora Ministra Rosa Weber, DJe de 11.4.14. Neste último julgamento, ficou assentado que é desnecessária a constituição definitiva do crédito tributário na esfera administrativa para configuração dos crimes de contrabando e descaminho.

VI – FATOS ASSIMILADOS A CONTRABANDO OU DESCAMINHO. O TRANSPORTE AÉREO.

A primeira delas é a prática de navegação de cabotagem nas hipóteses fora dos casos permitidos em lei(artigo 334, § 1º, a).
A segunda hipótese é a pratica de fato assimilado, em lei especial, a contrabando ou descaminho(§ 1º, b), como, por exemplo, o caso da saída das mercadorias da Zona Franca de Manaus, sem autorização legal, sem o pagamento de tributos, se o valor excede à cota que cada viajante pode trazer livremente(Decreto-lei 288/67). Já se entendeu que quando se tratar de mercadoria produzida na Zona Franca de Manaus, a sua saída para outros pontos do território nacional, sem o pagamento dos tributos, não constitui contrabando ou descaminho, por não se tratar de mercadoria de procedência estrangeira, mas nacional confeccionada em regime especial(TRF 2ª Região, AP. 210.402, DJU de 15 de agosto de 1991).
A terceira hipótese, inserida no parágrafo 1º, c, é prevista para quem, ¨vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza-se em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no país ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem.¨
Na terceira hipótese, do parágrafo 1º, c, a lei prevê um caso especial de receptação, que absorve o ilícito previsto no artigo 180, caput, exigindo-se a ciência da origem irregular da mercadoria(dolo direto), pois a dúvida exclui o delito.
Volto-me a lição de Celso Delmanto e outros , quando aduzem que as expressões usadas ¨comércio¨, ¨exercido¨, indicam que deve estar presente na conduta o requisito da habitualidade, não se podendo falar em uma ou mais vendas esporádicas. Mas, parece-me, data vênia, de entendimento contrário, que este requisito não é necessário, bastando ter o agente uma atividade comercial ilícita ou irregular.
Disse a esse respeito, Fabbrini Mirabete : “Tratando-se, no primeiro caso, de conduta praticada pelo próprio autor da importação ilegal, responde este apenas pelo crime previsto no parágrafo, absorvido o tipo penal do caput. No segundo caso a lei prevê um caso especial de receptação, que absorve o ilícito previsto o artigo 180, caput. Exigindo-se a ciência da origem irregular da mercadoria, a dúvida exclui o delito, que não pode ser praticado com dolo eventual. Exige a lei, nesses casos, que o fato ocorra na atividade comercial ou industrial, equiparando àquela ´qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o comércio irregular ou clandestino de mercadorias, inclusive o comércio em residências´(art. 334, § 2º).
Quarta modalidade da conduta típica é a de quem ¨adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos”, § 1º, d. Mercadoria estrangeira, sem documentação fiscal, configura tal crime. 
Nesta última hipótese, deve a ação ser praticada no exercício de atividade comercial ou industrial. Ora, o exercício de atividade comercial ou industrial pressupõe habitualidade embora se vejam julgamentos do STF em sentido contrário, como se lê das lições de Heleno Cláudio Fragoso.
O tipo objetivo, na quarta hipótese, é constituído pelas ações de “adquirir(a título oneroso ou gratuito), receber(ter a posse a qualquer título, em nome alheio) ou ocultar(esconder), mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal(nota fiscal, fatura ou guia de despacho alfandegário), ou acompanhada de documentos que o agente sabe serem falsos. A ação deve ser praticada em proveito próprio ou alheio e o tipo subjetivo é composto pelo dolo, consciência e vontade de praticar qualquer das ações.
A pena para os crimes em discussão é aplicada em dobro se forem cometidos através de transporte aéreo. Para Alberto Silva Franco, Rui Stocco e outros  “a espécie, entretanto, não é  mais, hoje, regulada pelo Código e sim pelo Decreto-lei  975, de 20. 10. 69, que, no art. 1º, considera crime contra a segurança nacional, “transportar em aeronaves contrabandeadas ou não, registradas no Registro Aeronáutico Brasileiro, “RAB”, ou não, mercadorias contrabandeadas de qualquer espécie, inclusive, armas, munições, minérios, pedras preciosas ou entorpecentes”. É extremamente importante a lição de Celso Delmanto e outros  para quem essa figura agravada do § 3º deve ser reservada aos voos clandestinos e não os de carreira. Realmente não se vê sentido em equiparar os últimos aos primeiros, pois os voos internacionais regulares utilizam-se de aeroportos dotados de perfeita fiscalização alfandegária, como anotou Francisco de Assis Toledo.

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VII – O PROBLEMA DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE

A matéria já foi discutida quando foi falado  da Súmula 560 do STF, que estabelecia que a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido estende-se ao crime de descaminho ou contrabando, por força do artigo 18, parágrafo 2º, do Decreto-lei 15767.
Sabe-se que a Lei 6.910, de 1981, impossibilitou a extinção da punibilidade em razão de pagamento do tributo devido. No entanto, a Lei 9.249, de 1995, previu tal possibilidade ao estabelecer no artigo 343, que extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei 4.729, de 14 de julho de 1965, se o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes da denúncia.
Na matéria, coloco a colação entendimento do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no julgamento dos Embargos Infringentes 98.02.27550-6, onde se disse:
¨De fato, apesar de situado no capítulo dos crimes praticados pelo particular contra a administração em geral, nota-se que o descaminho é uma fraude meramente aduaneira. Dessa forma, o tipo protege tão somente o interesse do Fisco, não restando atingidos outros interesses públicos. Esta é a tese esposada pelo ilustre procurador regional da República, dr. Juarez Tavares. Veja-se trecho do seu douto parecer:...o entendimento que abraçamos, mais condizente com a realizada e a estrutura da ordem jurídica, bem como com os fins que o próprio Estado se propõe para a sua política criminal, afora os dados da ordem econômica, é de que aqui há a salvaguarda tão-somente do interesse fiscal... (...). Assim, tendo havido o pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia, há que ser reconhecida a extinção da punibilidade nos termos do art. 34 da Lei 9.249/95, diante do parecer do MPF e dos aspectos fáticos do presente caso.¨
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 81.929/RJ, Primeira Turma, Relator para o acórdão, o Ministro Cezar Peluso, DJ de 27 de fevereiro de 2004, entendeu que o pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário. Nessa mesma linha de pensar, tem-se, dentre outros julgamentos, o que foi decidido no HC 116.828/SP, Relator Ministro Dias Toffoli, Dje de 16 de agosto de 2013.
No julgamento do HC 85.942/SP, Relator Ministro Luiz Fux, DJe de 1º de agosto de 2011, acentuou que o crime de descaminho, mercê de tutelar o erário público e a atividade arrecadatória do Estado, tem nítida natureza tributária. Disse ele: “1. Os tipos de descaminho previstos no art. 334, § 1º, alíneas “c” e “d”, do Código Penal têm redação definida pela Lei nº 4.729/65. 2. A revogação do art. 2º da Lei nº 4.729/65 pela Lei nº 8.383/91 é irrelevante para o deslinde da controvérsia, porquanto, na parte em que definidas as figuras delitivas do art. 334, § 1º, do Código Penal, a Lei nº 4.729/65 continua em pleno vigor. 3. Deveras, a Lei nº 9.249/95, ao dispor que o pagamento dos tributos antes do recebimento da denúncia extingue a punibilidade dos crimes previstos na Lei nº 4.729/65, acabou por abranger os tipos penais descritos no art. 334, § 1º, do Código Penal, dentre eles aquelas figuras imputadas ao paciente – alíneas “c” e “d” do § 1º. 4. A Lei nº 9.249/95 se aplica aos crimes descritos na Lei nº 4.729/65 e, a fortiori, ao descaminho previsto no art. 334, § 1º, alíneas “c” e “d”, do Código Penal, figura típica cuja redação é definida, justamente, pela Lei nº 4.729/65. 5. Com efeito, in casu, quando do pagamento efetuado a causa de extinção da punibilidade prevista no art. 2º da Lei nº 4.729/65 não estava em vigor, por ter sido revogada pela Lei nº 6.910/80, sendo certo que, com o advento da Lei nº 9.249/95, a hipótese extintiva da punibilidade foi novamente positivada. 6. A norma penal mais favorável aplica-se retroativamente, na forma do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal. 7. O crime de descaminho, mercê de tutelar o erário público e a atividade arrecadatória do Estado, tem nítida natureza tributária. 8. O caso sub judice enseja a mera aplicação da legislação em vigor e das regras de direito intertemporal, por isso que dispensável incursionar na seara da analogia in bonam parte”.


Em síntese, na matéria, disse Heleno Cláudio Fragoso  que o descaminho é sonegação fiscal, razão pela qual é cabível falar em extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo.
É inadmissível, não se aplicando o artigo 34 da Lei nº 9.249/95, a extinção da punibilidade pelo perdimento de bens, pois não se pode equiparar pagamento de tributos ou contribuição à pena de perdimento de bens, como já decidiu o Tribunal Regional Federal da 3ª Região(RT 792/730, 763/694, 755/760).

VIII – COMPETÊNCIA

A teor da Súmula 151 do STJ, “a competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do juízo federal do lugar da apreensão dos bens”. A competência é do lugar onde foi apreendida a mercadoria como já definiu o Superior Tribunal de Justiça(JSTJ e TRF 76/201).

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

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