Vive-se atualmente em um mundo onde as relações entre os homens ganham proporções inimagináveis no que diz respeito ao uso e aproveitamento dos recursos naturais. Tal fato se deve ao estágio atual de desenvolvimento tecnológico e de informação, que trouxe reflexos diretos sobre a organização das diversas sociedades.
Estas sociedades vivem em um contexto tão complexo que de sua interação nascem necessidades que a pouco nem podiam ser imaginadas. Na busca da satisfação dos mais complexos interesses, o homem se volta para a natureza para dela extrair os elementos capazes de dar vida a tais interesses.
Frise-se que muitas destas “necessidades criadas” não são realmente necessárias, são aptas apenas a garantir uma inserção na sociedade global, onde a recusa a tais produtos pode gerar uma segregação mortal para um “desenvolvimento” pessoal.
Ocorre que nos dias atuais nota-se, constantemente, um quadro de escassez de inúmeros recursos naturais e da extinção de inúmeros seres da fauna e da flora. No que tange aos recursos naturais o que mais preocupa, certamente, é a água, uma vez que este recurso (em condições de potabilidade) torna-se cada vez mais escasso para a dessedentação humana e animal. É indubitável a importância deste recurso para a manutenção da vida, e principalmente para a manutenção de uma vida com qualidade.
Inúmeros agentes poluentes (indústrias, comércios, residências, etc.) são responsáveis, cada vez mais, pela contaminação dos recursos ambientais, principalmente a água, o ar e o solo/subsolo, contaminações estas que em muitos casos são irreversíveis ou que levarão centenas e até milhares de anos para serem revertidas. Devido a este estágio de “desenvolvimento” observado principalmente nos países centrais e nos chamados países emergentes, trazendo consigo tais mazelas citadas, a comunidade científica internacional passou denominar tais sociedades como sendo “Sociedades de Risco”[1].
Para Ney de Barros Bello Filho, o conhecimento inabalável nos legou à sociedade do risco apoiado que foi – e por prestar apoio à globalização utilitarista. Ele afirma ainda que o risco é fruto da modernidade e, como filho da globalização, do progresso e da ciência, gestou-se de diversas maneiras. E continua sua lição destacando outro ponto interessante, a saber, o da participação popular na execução de políticas públicas, quando diz: “ ... a maioria da sociedade vive no perigo na medida em que não participa das decisões tomadas por uma escala restrita de indivíduos que se sustentam formalmente no conhecimento-regulação, e no direito autopoiético-sistêmico, que afasta da prática política a maioria das vítimas potenciais do risco”[2].
Ainda segundo este autor, no instante em que garante a participação popular na construção da norma, o direito faz retornar ao cerne das decisões jurídicas a ética coletiva e a solidariedade, perdida pela automação científica da regulamentação moderna.
Diante deste novo quadro, o direito, como instrumento que visa à pacificação das relações humanas precisou adaptar-se, sob pena de não ter sob seu alcance qualquer forma de controle sobre a realidade posta. Neste sentido, precisou superar o ideal individualista e de mundividência que prevalecia nas relações humanas até a segunda metade do século XX para ingressar na era das preocupações com os direitos difusos.
Nesta linha de raciocínio, Paulo Cunha ensina que a época anterior a que hoje vivemos, no nível do direito, assentou num paradigma, construído na base do racionalismo cartesiano, na doutrina jurídico-política do individualismo e na multividência humanista, que conduziu ao movimento formidável dos direitos humanos. Hoje, a mundividência é vista como um dos fatores da sociedade de risco, que traz novos problemas ao direito, e o direito parece ter perdido a habilidade de lidar com eles. As fórmulas tradicionais do direito, os mecanismos até agora utilizados para resolver os conflitos estão decadentes e carentes de urgentes reformas, que suscitam uma adaptação às novas tendências, dos novos problemas e das suas mais recentes abordagens e implicações, às suas estruturas, institutos e abordagens jurídicas[3].
Verifica-se, diante destas idéias, que uma nova ordem estatal se faz necessária. Trata-se da idéia de um Estado ambiental ou, como preferem alguns doutrinadores, Estado de direito ambiental. Para os seguidores desta tese, é necessário que o Estado modifique profundamente sua forma de encarar o desenvolvimento, trazendo para o interior de suas decisões e políticas ações positivas de afirmação de um desenvolvimento sustentável, ou seja, um modelo de desenvolvimento que permita a exploração dos recursos naturais necessários ao uso presente, sem comprometer o uso destes bens ambientais pelas futuras gerações. Esta relação não é tão simples, e em alguns casos, questiona-se a efetividade desta forma de exploração dos recursos naturais, uma vez que para atender às necessidades atuais em determinados segmentos sociais e alguns setores da economia pode-se levar ao esgotamento de determinados bens ambientais, o que eliminaria, por completo, a idéia de manutenção dos mesmos para as futuras gerações.
Sobre este assunto vale recordar lição de José Rubens Morato Leite, quando este enfatiza que o Estado ambiental é um quadro de mais sociedade, mais direitos e deveres individuais e mais direitos e deveres coletivos e menos Estado e menos mercantilização.
Desta forma, é possível afirmar que o Estado de direito ambiental é a forma de Estado que se propõe a aplicar o princípio da solidariedade econômica e social para alcançar um desenvolvimento sustentável, orientando a buscar a igualdade substancial entre os cidadãos, mediante o uso racional do patrimônio nacional[4].
Percebe-se, diante do exposto até então, que a participação popular é de suma importância para a consolidação de uma concepção de Estado centrada na necessidade de observância de normas e condutas sustentáveis, que possam assegurar a todos a satisfação das necessidades reais, e não de necessidades “criadas” em função da necessidade de estímulo ao consumo, e ainda, a redução e minimização das intervenções causadoras de significativas degradações ambientais.
Neste sentido, convém destacar que Vicente Bellver Capella define Estado de Direito Ambiental como a forma de Estado que se propõe a aplicar o princípio da solidariedade econômica e social para alcançar o desenvolvimento sustentável, orientado a buscar a igualdade substancial entre os cidadãos, mediante o controle jurídico do uso racional do patrimônio natural[5].
Por fim, vale lembrar os ensinamentos de José Rubens Morato Leite, que sintetizou cinco funções fundamentais para a discussão do Estado de Direito do Ambiente, entre elas: 1) Moldar formas mais adequadas para a gestão dos riscos e evitar a irresponsabilidade organizada. Na sociedade de risco, o Estado não pode ser “herói”, garantindo a eliminação do risco, pois este subjaz ao próprio modelo que serve de base à sociedade. O Estado, então, busca a gestão dos riscos, tentando evitar a irresponsabilidade organizada; 2) Juridicizar instrumentos contemporâneos, preventivos e precaucionais, típicos do Estado pós-social. É aqui que fornece especial atenção aos princípios da prevenção e da precaução inscritos no art. 225 da Constituição. Faz-se necessário, numa sociedade de risco, abandonar a concepção de que ao Direito só cabe se ocupar com os danos evidentes.
A complexidade do bem ambiental na sociedade de risco exige que haja a introdução de aparatos jurídicos e institucionais que garantam a preservação ambiental diante de danos e riscos abstratos, potenciais e cumulativos; 3) Trazer a noção, ao campo do Direito Ambiental, de direito integrado. Considerando que o ambiente não é uma realidade naturalística segregada, sua defesa depende de considerações multitemáticas, em que se considere a característica do macrobem, pugnando-se por formas de controle ambiental, tanto no plano normativo como fático, que atentem para a amplitude do bem ambiental; 4) Buscar a formação da consciência ambiental. É impossível o exercício da responsabilidade compartilhada e da participação popular como forma de gestão de riscos sem que haja profunda consciência ambiental; 5) Propiciar maior compreensão do objeto estudado. É vital a definição do conceito de ambiente, pois possibilita a compreensão da posição ecológica do ser humano e das implicações decorrentes de uma visão integrativa de ambiente. Verifica-se que o objeto bem ambiental é dinâmico, envolvendo sempre novas conformações, como, por exemplo, as novas tecnologias, tais como os OGM’s. Assim, é importante um conceito aberto, procurando trazer flexibilidade[6].
[1] Sobre este assunto, Paulo Cunha ressalta que a globalização e a consequente sociedade de risco com que a pós-modernidade nos brindou parecem ser um dos principais desafios que até hoje se colocou à ordem jurídica, porque fez estremecer as suas estruturas, sem as abalar, mas também porque fez repensar os paradigmas da ordem jurídica, consistindo de que vai depender a eficácia do direito no futuro, a sua utilidade e, em conseqüência, a sua própria sobrevivência. (in: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato (org.). Estado de direito ambiental: tendências, aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
[2] FILHO, Ney de Barros Bello. in: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato (org.). Estado de direito ambiental: tendências, aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pág. 89.
[3] CUNHA, Paulo. In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato (org.). Estado de direito ambiental: tendências, aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pág. 112-113.
[4] LEITE. José Rubens Morato. Sociedade risco e estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
[5] CAPELLA, Vicente Bellver. Ecologia: de lãs razones a los derechos. Granada: Ecorama. 1994.
[6] LEITE. José Rubens Morato. Sociedade risco e estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007, pág. 151-152.