A natureza cambiária da certidão de crédito em precatório judicial

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09/06/2015 às 00:04
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3. COMERCIALIZAÇÃO DE PRECATÓRIOS NO DISTRITO FEDERAL

A liquidação de precatórios judicias é uma atividade estatal que envolve uma cooperação entre dois atores, o Poder Judiciário e o Poder executivo, numa espécie de arranjo híbrido de cooperação público-público. Se observarmos a dinâmica dessa interação na prática do Distrito Federal, veremos que o Governo local (GDF) consigna diretamente ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) o valor destinado ao pagamento de seus débitos vindicados nos autos de execução contra a Fazenda Pública, seja decorrente de provimentos definitivos (sentenças/acórdãos) seja de títulos executivos extrajudiciais. Já o Judiciário, por sua vez, ordenada esse pagamento e autoriza os saques na “contra precatório”, a que alude o art. 10 da Portaria GPR do TJDFT nº 815, de 6 julho de 201021, que estabelece procedimentos internos para o pagamento de obrigações previstas no art. 100 da Constituição Federal, de acordo com a EC nº 62/09.

É importante ressaltar que, a despeito do que diz a doutrina jurídica sobre o tema, o numerário depositado em Juízo pela GDF não é uma verba vinculada. É fato que a gênese do precatório judicial, entendido aqui como incidente processual na última fase do processo executivo destinado ao pagamento do débito executado, é um Ofício Requisitório. Ou seja, uma requisição, encaminhado pelo Desembargador Presidente do TJDFT, para a entidade pública devedora, a fim que seja incluído em seu orçamento o numerário necessário para fazer face a essa despesa. Todavia, o Distrito Federal, por meio do Decreto nº 31.398/2010, optou pelo Regime Especial de Pagamento de Precatórios (REPP), a que alude o § 1º, inc. I, c/c §§ 12 e 14 do art. 97 do ADCT, incluído pela EC nº 62/09. Com efeito, para a satisfação de sua dívida constituída em precatórios, o Distrito Federal obrigou-se, em apertada síntese, ao repasse mensal do valor correspondente a 1/12 (um doze avos) calculados sobre 1,5% de sua receita corrente líquida, na forma ali disciplinada. Essas dotações para o atendimento de precatórios compõem, em seu conjunto, uma espécie de fundo para liquidação dessa dívida.

Nesse contexto, o que ocorre de fato no momento da quitação de um precatório é algo análogo a uma imputação legal do pagamento. Em outras palavras: (i) os valores consignados na conta precatório estão à disposição do TJDFT para a realização do pagamento dos débitos perseguidos em execuções contra a fazenda pública, tanto em RPVs quanto em PCTs; (ii) o TJDFT, ainda, organiza a lista de pagamento, observando as regras constitucionais aplicadas ao caso, tanto para RPVs quanto para Precatórios, distinguindo-se os comuns dos preferenciais, além dos casos de adiantamento; (iii) antes de ser expedida a autorização de levantamento em favor do exequente, cabendo tão somente ao GDF anuir com a indicação do credor beneficiário que passou a ocupar a primeira posição na(s) lista(s). Esse rito de pagamento, que compreende a indicação do beneficiário, aferição de sua legitimidade para tanto, pagamento e extinção do PCT, encontra-se disciplinada em ato administrativo do TJDFT d natureza processual, que prevê uma audiência de pagamento na COOPRE, realizada com a participação de um magistrado, um procurador do Distrito Federal e das partes e seus advogados, quando assistidas.

É importante ressaltar que, a despeito da tendência a uniformização, cada Tribunal brasileiros possui competência para expedir suas próprias normas internas sobre pagamento de obrigações previstas em precatórios judicias. Com efeito, é assaz desafiador para um pesquisador criar, a partir de casos singulares, regras de generalidade que se sustentem, após cotejadas com as realidades inúmeras realidades dos entes federativos. Prova disso que, após termos recorrido à doutrina pátria, não fora possível encontrar uma só obra que se articulasse adequadamente ao presente caso estudado do DF, especialmente porque elaboradas com fulcro em emendas constitucionais que no passado também disciplinaram o tema, mas que não se encontram mais em vigor. .

O Distrito Federal ainda encontra-se em débito com os precatórios do ano de 1998. Apesar da impontualidade de 18 anos no cumprimento de suas obrigações, o DF encontra-se em situação legal. Isso porque o Regime Especial de Pagamento de Precatórios (REPP), instituído pela EC nº 62/09 é uma espécie de parcelamento do valor devido à título de precatórios vencidos e o GDF encontra-se adimplente com as parcelas do REPP. Todavia, essa situação de fato é uma das principais razões para a comercialização de precatórios no âmbito do Distrito Federal. Para compreendê-la é preciso fazer uma análise em dois planos distintos, a saber, o plano fático e o plano normativo.

No plano normativo, temos uma autorização constitucional para essas operações, já que a Constituição Federal de 1988 (CF/88), em seu art. 100, § 13, aduz que “o credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros”. Do ponto de vista do direito local, o DF instituiu o Programa de Recuperação de Créditos Tributários e Não Tributários do Distrito Federal22, atualmente, em sua terceira edição (Refaz III). Por meio desse programa e de outros programas anteriores, os contribuintes brasilienses, pessoas físicas ou jurídicas, em débito com tributos cobrados pelo GDF tem uma oportunidade de refinanciar suas dívidas em mora, recebendo descontos que variam de 35% a 90%, conforme a data e condições de quitação. O regulamento do Refaz determina que o pagamento dos tributos em atraso poderá ser feito em dinheiro ou em precatórios judiciais. Portanto, dentro deste contexto legal, uma das principais finalidades da comercialização desse direito de crédito é a compensação tributária. Todavia, a compensação pode ser realizada com ou sem a adesão a programas como o Refaz. O exequente, inclusive, tem a faculdade de requerer uma certidão de compensação tributária e, com ela, iniciar um processo administrativo junto à Secretaria de Fazenda do DF.

Para o GDF o REFAZ é uma boa oportunidade para aumentar a arrecadação dos cofres públicos, mediante a quitação de débitos vencidos e não pagos. Através do REFAZ, desde sua primeira edição em 2003, a Secretaria de Fazenda do DF conseguiu recuperar uma parcela significativa do valor sonegado. Muitas das dívidas objeto de acordo jamais seriam solvidas sem a oferta de descontos e parcelamentos. Quanto aos precatórios vencidos e em atraso, com a compensação fiscal, o GDF o quita, ele deixa de receber uma dívida e também de fazer um pagamento, é um jogo de soma zero, pois a soma das utilidades auferidas por todos os atores envolvidos é equivalente (o benefício).

Para o contribuinte, especialmente pessoa jurídica, essa também é uma excelente oportunidade de ficar regular com o fisco distrital e preservar a exploração de sua empresa, o que gera benefícios para toda a coletividade, já que vivemos numa economia de mercado.

Para os compradores de precatórios esse negócio é extremamente vantajoso. Além da possibilidade de obter descontos e/ou parcelamento na via administrativa, através da adesão à programas de refinanciamento de tributos em atraso, os precatórios são comercializados também com deságio, em regra, de 30% a 70% do valor de face, como se verifica na prática.

De acordo com o procedimento adotado pelo TJDFT, o valor devido por meio de precatórios só são atualizados em dois momentos distintos, no momento de sua formação e no momento do pagamento. Essa regra procedimental é fruto da interpretação conferida pela Corte à parte final do § 5, do art. 100 da CF/8823. Como já mencionamos acima, entre o intervalo de tempo entre um ato e outro é de 18 anos. O valor de face, assim, é o valor sobre o qual ele é expedido, o valor do crédito principal. Esse valor é determinado na execução movida contra a fazenda pública, após a fixação do quantum debeatur. Logo, é fácil notar que no momento da quitação do PCT o valor a que terá direito o credor será muito superior ao originário, constante do Ofício Requisitório, sobretudo com a recente (25/03/2015) determinação exarada pelo STF para a adoção do IPCA-E (Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial) a partir de 26 de março de 2015, na sessão em que se modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade proferida no julgamento das ADIs 4357 e 4425, relativas ao REPP criado pela EC 62/2009.

Portanto, o contribuinte brasiliense, pessoa física ou jurídica, em débito com o erário distrital tem a oportunidade de quitar sua dívida por uma fração de seu valor, por meio da aquisição de um precatório e adesão ao REFAZ III. Também para os cedentes, credores originários, a cessão de seu precatório é uma vantagem, na medida ele antecipa o recebimento de seu crédito, evitando a permanência numa fila por longos 18 anos. É um bom negócio para as três partes.

3.1. O Problema de Pesquisa

Infelizmente, apesar da existência de permissivos legais e incentivos à prática de cessões de precatórios judiciais para fins de compensação tributária no âmbito do Distrito Federal, a maneira de circulação dessas obrigações no mercado não é disciplina por lei (em sentido amplo). A ausência de norma regulamentadora tem resultado em insegurança para os transatores, uma adversidade negativa para os atores econômicos envolvidos. O TJDFT já registra inúmeros casos de multiplicidade de cessões do mesmo crédito e tem dado uma resposta jurisdicional, a fim de conferir confiabilidade e segurança jurídica para esse ato negocial.

Na prática, a prova da existência do direito de crédito inscrito em precatório Judicial é feita por meio de uma certidão de crédito. Esse documento é expedido pelo TJDFT, a requerimento do credor. De posse desse documento, seu titular pode fazer prova do direito de crédito que possui e comerciá-lo. Em outros termos, na conformidade dos usos e costumes, tal certidão passou a ostentar o atributo de negociabilidade, tornando mais fácil a circulação dessas obrigações no mercado local do DF. O “vendedor” de um precatório é aquele que prova ser seu titular, e isso é feito com a exibição desse “título”.Com efeito, é possível asseverar que embora ao PCT se aplique o regime civil, já que o ato determinante de sua transmissibilidade é cessão de crédito, na prática efetiva, os atores econômicos têm aplicado um regime híbrido, com derrogação para a disciplina cambial.

Com base em nossa participação observante, constatamos uma relação direta entre multiplicidade de expedições de certidões do mesmo crédito e multiplicidades de cessões dele. Assim, a fim de se coibir essa prática, atualmente, o TJDF, atualmente, só extraí uma certidão de crédito para cada credor. E não é só. Além dessa providência, também exige a devolução de tal documento, caso quem a requereu se apresente, ulteriormente, como credor, para fins de recebimento do valor devido.

Na decisão abaixo transcrita é possível demonstrar o que vem sendo afirmado ao longo deste trabalho. Confira-se:

“Processo Nº 2008 00 2 008612-9 Requisitante DES. RELATOR DA EXECUÇÃO N. 2005 002 004874-1 Requisitado PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS (...) D E C I S Ã O Em que pese a informação da credora LUDIMAR VIANA GUIMARÃES (fl. 113 e 117) informando que não houve cessão do precatório, o despacho de fl. 115 não fora atendido. Assim, concedo o derradeiro prazo de 10 (dez) dias para que ela apresente o original da certidão recebida à fl. 12, ratificando sua titularidade em relação ao crédito estampado na presente requisição.”

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“Processo Nº 2006 00 2 015176-7 Requisitante CONSELHO ESPECIAL - RELATOR DA EXECUÇÃO Nº 2005002004880-7 Requisitado PRESIDENCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS (...) Quanto à credora MARIA SOCORRO CHAVES, para que seja apreciado seu pedido de preferência constitucional, primeiramente, intime-se referida credora, por telefone ou no endereço indicado à fl. 128, para devolver a certidão de crédito recebida à fl. 13, devendo, ainda, informar se cedeu seus direitos creditícios. (...)Publique-se. Intime-se. Brasília, 06 de fevereiro de 2015”

As decisões acima, extraídas, respectivamente, do DJe de 25.03.2015 e 27.04.2015, cuidam da situação de que temos nos utilizados como exemplo ao longo deste trabalho. Nelas, um dado credor, interessado em negociar seu crédito, formula requerimento de expedição de certidão de crédito para fins de cessão. Ulteriormente, a mesma parte se apresenta como beneficiária para fins de levantamento de valores, seja por que o PCT passou a ocupar o primeiro lugar na ordem cronológica de pagamento seja por que formulou pedido de preferência constitucional ou, ainda, porque formulou renuncia ulterior da parcela do crédito que excede ao limite de 10 salários mínimos, a fim de receber imediatamente o que lhe é devido por meio de RPV. Em casos como os tais, o TJDFT, atuando ex officio, tem disciplinado essa atividade econômica, exigindo a posse do título para a comprovação da titularidade do crédito, inibindo que alguém se apresente como credor, após ter negociado o crédito com outrem. Essa atuação criativa do Eg. TJDFT, consistente na aplicação do regime cambiário à comercialização de precatórios judicias, tem conferido maior segurança e dinamismo para esses negócios no âmbito do Distrito Federal. Isso porque, efetivamente, coíbe a ocorrência de fraudes e confere maior confiabilidade aos jurisdicionados.

Como dito no início deste trabalho, repita-se, embora o crédito exista por si só, podendo ou não existir um documento que o exteriorize (a certidão de crédito), em alguns casos, ele assegura ao portador sua exigibilidade e prosseguimento na execução por quantia certa contra a Fazenda Pública. Destarte, com base nos dados fáticos analisados, pode-se asseverar que o TJDFT, visando uma tutela efetiva (justa, adequada e tempestiva), passou a conferir à certidão de crédito em precatório um tratamento jurídico assemelhado àquele conferido aos títulos de crédito em geral, aplicando-lhe os princípios de direito cambiário, especialmente o da cartularidade, ainda que de maneira abrandada.

Infelizmente, não existem dados consolidados acerca do número de múltiplas cessões do mesmo crédito no âmbito do DF. Esse foi um dos principais obstáculos por nós enfrentados para o desenvolvimento desta pesquisa monográfica. As conclusões aqui apresentadas são empíricas e tomam como base nossa observação participativa. Felizmente, podem ser comprovadas através da realização de entrevistas com as autoridades e gestores da COOPRE do TJDFT.

Por fim, é importa ressaltar que a pretensão aqui não é a de enquadrar esse fato em uma moldura teórica pré-concebida. Ao revés, investiga-se, sobre a ótica da eficiência, a adequação da resposta jurisdicional do estado para uma situação de fato concreta, posta diante de sua apreciação, tendo como plano de fundo o constructo teórico da tutela efetiva. É o que será visto adiante.

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Sobre o autor
Paulo Sérgio Souza Andrade

graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia - UFBA e especialização em Poder Judiciário com ênfase em Direito Processual Civil, realizada com bolsa do Instituto Ministro Luis Vicente Cernicchiaro - Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). Publicou "O Estatuto do Concurso Público: análise do PL 399/08 do Senado Federal" (Clube de Autores, 2014). No âmbito acadêmico, ainda, atua como consultor e colaborar de periódicos científicos e possui interesse na área de Antropologia Social. Atualmente, é servidor do TJDFT onde já exerceu diversas funções comissionadas de direção, chefia e assessoramento, a saber, assistente de magistrado, secretário de audiências e oficial de gabinete (1º assessor), todas mediante seleção interna.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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