A natureza cambiária da certidão de crédito em precatório judicial

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09/06/2015 às 00:04
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4. A NATUREZA CAMBIÁRIA DA CERTIDÃO DE CRÉDITO

A questão central a ser enfrentada pode ser assim endereçada: a certidão de crédito em precatório assemelha-se aos demais documentos representativos de direitos e obrigações a ponto de ser lícito conferir-lhe o estatuto jurídico de título de crédito atípico, com vistas a conferir segurança e agilidade à comercialização de precatórios?

Para responder a essa questão é preciso ter em mente que a certidão de crédito em precatório judicial é um documento representativo de direitos creditícios. Do ponto de vista estritamente técnico-jurídico, esse atributo, por si só, não é suficiente para conferir-lhe o estatuto de título de crédito. Para Fábio Ulhoa Coelho, um título de crédito “prova a existência de uma relação jurídica, especificamente duma relação de crédito; ele constitui a prova de que certa pessoa é credora de outra” (COELHO, 2014, p. 443). Para ele, ainda, os títulos de crédito se distinguem dos demais documentos representativos de obrigações em três aspectos, a saber: ele se refere unicamente a relações creditícias; à facilidade da cobrança do crédito em juízo; ostenta o atributo de negociabilidade. Esse último decorre da disciplina jurídica a que está sujeito - os princípios de direito cambiário (COELHO, 2014, p. 444-445).

Na prática efetiva do mercado de comercialização de precatórios no Distrito Federal, a certidão de crédito em precatório judicial tem ostentado o atributo de negociabilidade do crédito que representa e despertado o interesse de “compradores”, mormente os atributos de certeza, liquidez e exigibilidade do crédito que ela representa, em razão da disciplina constitucional aplicada à hipótese.

Para Fábio Ulhoa, ainda, são justamente as características mencionadas no parágrafo precedente quem conferem aos documentos representativos de obrigações o estatuto de título de crédito e, por conseguinte, sua sujeição ao regime cambiário em detrimento do civil. Ele leciona que, in verbis:

“A fundamental diferença entre o regime cambiário e a disciplina dos demais documentos representativos de obrigação (que será chamada aqui, de regime civil) é relacionada aos preceitos que facilitam, ao credor, encontrar terceiros interessados em antecipar-lhe o valor da obrigação (ou parte deste), em troca da titularidade do crédito. (...) Documentos sujeitos ao regime civil de circulação não despertam o mesmo interesse de instituições financeiras, porque elas ficam em situação mais vulnerável quanto ao recebimento do crédito. A negociabilidade dos títulos de crédito é decorrência do regime jurídico-cambial, que estabelece regras que dão à pessoa para quem o crédito é transferido maiores garantias do que as do regime civil. Compreende-se melhor essas diferenças, após o exame dos princípios do direito cambiário“. (COELHO, 2014, p. 445).

Em resumo, para o referido autor a negociabilidade e a facilidade de circulação do crédito documento, são as duas características que de fato caracterizam o título de crédito. E é a garantia de recebimento do crédito, conferida pelo regime jurídico cambial, que o torna atrativo (COELHO, 2014, p. 443-4446).

A partir das conclusões de Fábio Ulhoa Coelho, ao menos em sede de cognição sumária, poder-se-ia afirmar que a certidão de crédito de crédito em precatório possuiu todos esses atributos aludidos acima, seja pelo uso que os comerciantes dessas obrigações têm lhe conferido na experiência do Distrito Federal seja pelo tratamento jurídico que o TJDFT tem lhe dispensado, ou, ainda, pela certeza de pagamento que o regime jurídico constitucional confere à liquidação de precatórios, muito embora seu pagãmente seja um evento certo e futuro, sem que possa, contudo, precisar de antemão o momento extado de sua quitação.

O regime cambial é uma disciplina jurídica pautada nos princípios de direito cambiário, a saber: cartularidade, literalidade e autonomia das obrigações cambiais. Esses três princípios são extraídos do clássico conceito cunhado por Vivante, que sintetizam com clareza os principais elementos da matéria, segundo o qual “título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado”24. Advoga-se na doutrina que é preciso a concorrência dos três princípios supra para que se possa afirmar que dado título esta submetido ao regime cambial, muito embora existam inúmeras exceções à regra – documentos aos quais não se encaixam em tal situação, mas que a lei trata como sendo títulos de crédito.

Leciona Fábio Ulhoa (2014, p. 448-452) que pelo Princípio da literalidade: “o direito decorrente de título é literal no sentido de que, quanto ao conteúdo, à extensão e às modalidades desse direito, é decisivo exclusivamente o teor do título. Já pelo princípio da autonomia das obrigações cambiais: “os vícios que comprometem a validade de uma relação jurídica, documentada em título de crédito, não se estendem às demais relações abrangidas no mesmo documento”. Esse último princípio, como sabido, subdivide-se em outros dois subprincípios, o da abstração e o da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé.

Resta-nos examinar o princípio da cartularidade, importante para o enfrentamento da questão central do presente trabalho. Vejamo-lo:

4.1.Princípio da Cartularidade

O Princípio da cartularidade determina que o exercício dos direitos representados por um título de crédito pressupõe a sua posse. Para Borges (apud COELHO, 2014, p. 446), esse princípio se refere não à posse, mas à noção de incorporação do direito de crédito pelo documento, ao ponto de sua tradição importar em transferência.

A despeito de tais explicações, é a tese advogada por Newton Lucca (apud COELHO, 2014, p. 447) quem melhor oferece uma compreensão para o tema do presente trabalho. O autor nos ensina que existem três categorias de documentos, os probatórios, constitutivos e dispositivos. Para ele, os títulos de crédito estariam inserem na última classe.

Os probatórios atestam a existência de uma relação jurídica. Já os constitutivos são necessários para o nascimento do direito, conquanto sejam dispensáveis no momento seguinte. Por fim, os dispositivos são necessários para o exercício do direito nele mencionado.

A certidão de crédito em precatório é um documento probatório, que cumpre a função de atestar a existência e titularidade da relação jurídica creditícia em um dado precatório judicial pendente de pagamento pela fazenda pública. Ele não é constitutivo da obrigação, nem tampouco dispositivo, pois nem sempre é necessário para o exercício do direito nele mencionado, que existe independentemente dele. Como se vê, não se aplicam à certidão de crédito em precatório, em sua totalidade, os princípios e norma de direito cambiário.

4.2.Título de Crédito Impróprio

Os títulos de crédito inominados ou impróprios, segundo Fábio Ulhoa, são aqueles “instrumentos jurídicos sujeitos a disciplina legal que aproveitam, em parte, os elementos do regime jurídico-cambial” (2014, p. 545). E são impróprios porque a eles não se aplicam, em sua totalidade, os princípios e norma de direito cambiário. A eles se aplica o regime civil.

Com se percebe, a conceituação é simples e não há consenso na doutrina. Alguns autores, quanto a eles, inclusive, adotam uma interpretação mais abrangente, enquanto outros são mais restritivos. A matéria ainda carece de uma sistematização adequada.

Como visto no decorrer deste trabalho, é incontroverso que os agentes econômicos, independentemente da previsão legal, conferiram à certidão de crédito um tratamento assemelhado ao regime cambiário. Isso é inegável. A partir dessa premissa de fato, poder-se asseverar que, ao menos no plano fático, tomando por base a realidade do Distrito Federal, a certidão de crédito em precatório judicial é um título de crédito impróprio, justamente porque a ela não se pode aplicar integralmente as regras e princípios de direito cambiário, até mesmo porque o ato determinante da transmissão da obrigação que representa é a cessão civil, como determina da Constituição Federal.

Resta-nos agora responder a questão central da investigação empreendida no presente trabalho, a partir da conduta do Poder Judiciário. É o que se fará nas considerações finais.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) tem jurisdição em todo o Distrito Federal, ente federativo composto pela Capital Federal (Brasília) e por 31 regiões administrativas (cidades satélites). Ao TJDFT compete ordenar os pagamentos devidos pelo Governo do Distrito Federal (GDF), relativos às suas administrações direta e indireta. Essa atividade é realizada por intermédio da Coordenação de Conciliação de Precatórios (COORPRE), órgão vinculado à Presidência da Corte e que centraliza todas as requisições expedidas pelos Juízos Fazendários e da Vara de Ações Previdenciárias do DF, tanto RPVs quanto PCTs. Conquanto seja um órgão de natureza administrativa, a CORRPRE também pratica atividades de jurisdição cível, sendo a alteração de legitimidades das partes o incidente processual que representa o maior número de pronunciamentos proferidos por ela, ao lado da análise de pedidos de adiantamento preferencial, formulado por credores de precatórios de natureza alimentícia com idade igual ou superior à 60 anos ou portadores de doença grave.

A alteração da legitimidade das partes nos autos de precatório judicial pode ocorrer mortis causa ou por ato inter vivos. No primeiro caso, os sucessores de dado credor falecido, após terem partilhado esse bem judicial ou extrajudicialmente, habilitam-se nos autos do PCT, a fim de ocuparem a mesma posição do autor da herança. No segundo caso, determinado cessionário de precatório cedido busca sub-rogar-se nos direitos creditícios consolidados em benefícios do cedente, credor originário. Essa segunda situação é a de que nos ocupou no presente trabalho.

Ocorre que a cessão civil de precatório judicial é um ato negocial, realizado por particulares, mas que necessita da participação também do Pode Judiciário. Isso porque o documento que representa esse crédito, a certidão de crédito é expedida pela COORPRE, a requerimento do titular de um precatório interessado em cedê-lo a terceiros. Entretanto, conforme os usos e costumes do mercado distrital, tal documento também tem sido usada para fomentar a circulação dessa obrigação, além de representar o crédito.

Sucedeu que, a partir do aquecimento do mercado de comercialização de precatórios judiciais no âmbito do Distrito Federal, o TJDFT passou a enfrentar um problema: a multiplicidades de cessões do mesmo crédito. Esse aquecimento se deu, em nosso sentir, pela concorrência de pelo menos três fatores: o permissivo constitucional que autoriza a cessão desses créditos; o atraso de 18 anos do GDF no pagamento de precatórios vencidos; e os programas de refinanciamento de débitos tributários instituídos pela Fazenda Distrital, que aceita, além de dinheiro, a oferta de precatórios para pagamento.

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Não raro, várias pessoas, físicas ou jurídicas, peticionavam nos autos do mesmo PCT requerendo a habilitação em sucedâneo ao mesmo credor. Não foi preciso muito para notar que muitos desses casos correspondiam à credores que havia requerido a emissão de mais de uma certidão de crédito, sem justo motivo para tanto. Essa constatação levou a uma consideração utilizada como premissa no presente trabalho: os atores econômicos estavam conferindo a este documento um tratamento análogo àquele conferindo aos títulos de crédito em geral, mormente quando exigiam a tradição da cártula para a transferência do direito e a exibiam para fazer prova da titularidade. Na prática, ao lado do instrumento público da cessão, dentre outros documentos, o cessionário também junta aos autos a cópia da certidão do crédito negociado.

A ocorrência de multiplicidade de cessões cria uma situação de desconfiança no mercado, sendo, pois, uma externalidade negativa para o mercado de comercialização de precatórios. Assim, a fim de assegurar aos transatores a confiabilidade e certeza quanto ao recebimento desses valores, o TJDFT passou a adotar, ex officio, três medidas no intuito de disciplinar essa atividade econômica, a saber: (i) a expedição de apenas uma certidão para cada credor, salvo justo motivo e comprovação para a renovação do requerimento; (ii) exigência da posse desse documento para a presunção de titularidade, nos casos nos quais quem a requereu se apresenta ulteriormente como credor; (iii) exigência da declaração dos cessionários de que ainda detém o crédito e não o negociou com terceiro e/ou a explicação da cadeia dominial. Tais medidas, de fato, têm se mostrados eficientes, evitado assim que credores cedam o mesmo precatório a mais de um interessado ou recebam o pagamento após terem cedido o crédito. Com efeito, evidencia-se a aplicação do princípio da cartularidade a um documento que a rigor está submetido ao regime civil.

Com base nos fatos narrados acima, uma questão foi levantada: a certidão de crédito em precatório judicial pode ser classificada como um título de crédito atípico? A resposta é sim. Isso porque, como foi visto ao logo deste trabalho, a certidão de crédito em precatório judicial, ao menos no âmbito do Distrito Federal, recebe dos atores envolvidos, incluindo-se aí o próprio Judiciário, um tratamento típico do regime cambial, com a aplicação das regras e princípios do direito cambiário. Em nossa opinião, independentemente, da subsunção desse fato a uma moldura jurídica pré-concebida, essa assertiva é inegável.

Por fim, falta-nos analisar a postura do TJDFT. À primeira vista, poder-se-ia chegar a precipitada conclusão de que seria mais um caso de ativismo judicial no ritualismo processual, fenômeno brasileiro acerca do qual já tivemos a oportunidade de teorizar, a partir de uma pesquisa de cunho empírico, que seria:

“A magistratura tem sim inventado novas práticas judiciais, recorrendo cada vez mais à ponderação, princípios constitucionais e métodos mais flexíveis de interpretação, assim como à valorização dos direitos fundamentais envolvidos nas demandas postas a sua apreciação, em especial o direito fundamental à celeridade processual.

(...)

um fenômeno coletivo decorrente de circunstâncias fáticas que se relaciona com a concretização do direito fundamental à celeridade processual por meio da flexibilização do ritualismo processual” (ANDRADE, 2014, p. 14-15).

Todavia, após uma análise exauriente, a conclusão a que chegamos neste caso é diversa. É importante ressaltar que a liquidação de precatórios judicias é uma atividade estatal que envolve a cooperação dos poderes Executivos e Judiciário, numa espécie de arranjo híbrido de provisão de um serviço público. Nesse contexto, a Justiça exerce uma função atípica, de natureza administrativa, mas imbricada com a judicante. Assim, nesse ajuste compete ao Executivo consignar os pagamentos devidos diretamente ao Judiciário, que, por seu turno, tem a atribuição de ordenar o pagamento e, ao final, autorizar os levantamentos para o beneficiário que ocupe a primeira posição na(s) lista(s) ordenada(s) para recebimento.

O pagamento de precatórios é realizado por meio de um incidente processual, que é instaurado na última fase da execução por quantia certa contra a fazenda pública, após a definição do quantum debeatur. Tal incidente é processado nos autos de um processo administrativo pelo próprio Presidente do Tribunal, que, no caso do TJDFT, delega a uma Coordenadoria criada para tal fim. Esse processo administrativo é destinado apenas à quitação do valor executado, já que a fazenda pública tem a prerrogativa (um direito potestativo) de não realizar seus pagamentos à vista.

Logo, o Poder Judiciário é corresponsável pelos pagamentos de precatórios, consoante as regras do sistema legal brasileiro em vigor. A postura do TJDFT, então, pode ser enquadrada como um ato de gestão responsável, direcionado à regularidade dos pagamentos administrados e autorizados pelo COORPRE. Isso se justifica pelo fato de a Corte ser interessada, não no proveito econômico de qualquer das partes, mas na correta administração do dinheiro público posto sob sua responsabilidade. Em nosso entender, a atuação do Poder Judiciário em aplicar o regime cambial à certidão de crédito em precatório, regulando essa atividade econômica, é perfeitamente adequada ao interesse social por celeridade e segurança nas relações comerciais.

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Sobre o autor
Paulo Sérgio Souza Andrade

graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia - UFBA e especialização em Poder Judiciário com ênfase em Direito Processual Civil, realizada com bolsa do Instituto Ministro Luis Vicente Cernicchiaro - Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). Publicou "O Estatuto do Concurso Público: análise do PL 399/08 do Senado Federal" (Clube de Autores, 2014). No âmbito acadêmico, ainda, atua como consultor e colaborar de periódicos científicos e possui interesse na área de Antropologia Social. Atualmente, é servidor do TJDFT onde já exerceu diversas funções comissionadas de direção, chefia e assessoramento, a saber, assistente de magistrado, secretário de audiências e oficial de gabinete (1º assessor), todas mediante seleção interna.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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