4. LEI PENAL EM BRANCO E RETROATIVIDADE BENÉFICA
Destaco, ab initio, na matéria o tratamento que foi dado a ela pelo Desembargador Edilson Pereira Nobre Júnior23, quando realçou a importância do tema e o quão ele é controvertido.
Estuda-se aqui a questão da retroatividade benéfica com atinência às normas penais em branco, que são aquelas desprovidas de certos elementos, que são encontrados em outros dispositivos legais, de grau inferior.
Disse, aliás, Augusto Frederico Gaffrée Thompson24, em Tese de concurso à docência livre de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que norma penal em branco, lei aberta, ou lei moldura, é norma penal específica, fragmentária e de complementação heterogênea, quanto ao preceito primário, adotando a definição de Giuseppe Maggiore25 que dizia que se tratava de norma penal que, prevista em lei formal-material quanto à sanção e a um preceito genérico, necessita de ser complementada, relativamente ao modelo abstrato do crime nela inscrito, por um ato normativo emanado de fonte hierarquicamente constitucional inferior.
Paulo José da Costa Jr.26 leciona que não são as normas em branco incompletas ou imperfeitas. Faltam-lhes apenas, como ensinou Leone, concreação e atualidade. Não se trata então de de uma sanção cominada à inobservância de um preceito futuro, mas de um preceito genérico, que irá concretizar-se com um elemento futuro, que deverá, entretanto, preceder o fato que constitui crime.
Para Rogério Greco27 as normas penais em branco apenas conferem a órgão legislador extrapenal a possibilidade de precisar o seu conteúdo, fazendo-o, por inúmeras vezes, com maior rigor e mais detalhes do que os determinados tipos abertos, que dependem da imprecisa e subjetiva impressão do juiz.
Assim as normas penais em branco podem ser compostas de maneira complexa, mas nunca imperfeita, em respeito aos princípios da legalidade e da taxatividade, que são primordiais em matéria penal.
Nelson Hungria, citado por José Frederico Marques28, Damásio de Jesus29 se manifestam pela irretroatividade de qualquer preceito extrapenal que cubra os claros da lei penal em branco, que não são revogadas em virtude da revogação de seus complementos.
Há, por sua vez, entendimento de que para se verifique a possibilidade de retroatividade quando da alteração do complemento da norma penal em branco deve-se primeiro observar-se se a norma complementar é lei em sentido estrito ou outra espécie normativa. Se for lei em sentido estrito qualquer alteração benéfica tem o condão de retroagir, contudo se complemento for norma outra, deve-se analisar se a alteração tem o fim de atualizar ou de discriminar a conduta. No caso de o complemento diverso de lei em sentido estrito for alterado para simples fato de atualização, não será retroativa a norma, contudo se o complemento for alterado no sentido de descriminar conduta específica, tal fato retroagirá atingido as condutas anteriores à sua mudança.
Damásio de Jesus30 aduziu que somente tem influência a alteração de complemento se importar em modificação substantiva do tipo penal e não quando modifique circunstância que não comprometa a norma em branco. O entendimento que esposa, na mesma linha de Frederico Marques31, na lição de Soler, é assim enunciado:
"A nosso ver, a seguinte lição de Soler resolve a questão: só tem influência a variação da norma complementar na lei de tipicidade carecedora de complemento" ( norma penal em branco) quando importe em real modificação da figura abstrata do direito penal (como disse Mayer) e não quando importe a mera modificação de circunstância que, na realidade, deixa subsistente a norma. Assim, a circunstância de que uma norma retire de determinada moeda a sua natureza, nenhuma influência sobre as decisões condenatórias existentes em consequência da falsificação de moeda, pois não houve variação quanto ao objeto abstrato da proteção penal. A norma penal permanece a mesma."
Por sua vez, José Henrique Pierangelli32 relata que a alteração de um complemento de uma norma penal em branco homogênea sempre teria efeitos retroativos, vez que, a norma complementar, como lei ordinária que é, também foi submetida a rigoroso e demorado processo legislativo.
Mas quando a legislação complementar não se revista de excepcionalidade e nem traga consigo a sua auto-revogação, como é o caso das portarias sanitárias estabelecedoras das moléstias cuja notificação é compulsória, cujo prazo para cumprimento da determinação legal é variável consoante a gravidade da moléstia, que, v.g no caso da cólera, deve ser imediata, mas que em relação a outras doenças pode ser feita até os três meses completados, a legislação complementar, então, pela sua característica, se revogada ou modificada, poderá conduzir também à descriminalização.
No julgamento, em 1952, do RE 21.132, Relator Ministro Nelson Hungria, ficou decidido:
"Lei penal em branco e atos administrativos complementares. A alteração destes não afeta a vigência daquela: o fato pretérito continua punível, tal como era ao tempo de sua prática. Não há falar-se, no caso, em retroatividade de lex mitior."
No mesmo sentido: HC 32.460 (Ministro Rocha Lagoa); RE 71.947 (Ministro Luiz Gallotti) e HC 58.614 (Ministro Djaci Falcão).
A matéria foi examinada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 73.168 – SP, Relator Ministro Moreira Alves, DJU de 15 de março de 1996, pág. 7.204, onde se disse que, em princípio o artigo 3º do Código Penal se aplica à norma penal em branco, na hipótese de ato normativo que a integra ser revogado ou substituído por outro mais benéfico ao infrator, não se dando, portanto, a retroatividade. Essa aplicação somente não se faria quando a norma, que complementa o preceito penal em branco, importa real modificação da figura abstrata nele prevista ou se assenta em motivo permanente, insuscetível de modificar-se por circunstâncias temporárias ou excepcionais, como sucede quando do elenco de doenças contagiosas se retira uma por se haver demonstrado que não tem ela tal característica.
No caso do artigo 334 do Código Penal tem-se uma norma penal em branco que é complementada por portarias administrativas que estabelecem quais são as mercadorias proibidas tendo em vista circunstâncias que variam no tempo em face de circunstâncias políticas ou econômicas temporárias ou excepcionais, sendo de aplicar-se o artigo 3º do Código Penal, seja pelo fato deque a variação da norma complementar não implica real modificação da figura abstrata do direito penal, quando se veda a importação ou exportação de mercadoria proibida, quer pela circunstância de que a norma complementar varia por motivo temporário ou excepcional.
Já se entendeu que o complemento da norma penal em branco não retroage no caso de alteração da chamada "tabela de preços", nos crimes contra a economia popular. Foi o que disse Damásio de Jesus.33
Aliás, o Supremo Tribunal Federal já entendeu que as novas tabelas que aumentam ou liberam os preços não permitem a retroatividade benéfica (RT 556/425;533/435; RTJ 74/590).
Sendo assim, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que "o complemento da norma penal em branco passa a integrar, indubitavelmente, o conteúdo da conduta censurada, formando um todo, de forma que a alteração de uma parte, como resultado de uma nova valoração jurídica do mesmo fato, tem repercussão total e imediata, na se aplicando, ao caso em exame, a solução que a jurisprudência vem dando às hipóteses de tabelamento de preços, já que estas têm realmente caráter excepcional, vez que são editadas como forma de disciplinar o mercado em situações especiais, revelando que se trata mesmo, da hipótese prevista no art. 3º do CP."34
Assim há os que aceitam a retroatividade se o complemento integrador não apresentar caráter repressivo, mas "feições genuinamente civil, comercial ou administrativa, como disse Antonio José Fabrício Leiria35 ou admitindo, outrossim, a retroatividade penal benéfica em se tratando de norma penal em branco em sentido lato, isto é, quando o complemento deriva da mesma fonte legislativa. Assim se o legislador retirar do rol de impedimentos do casamento civil determinado fato, semelhante exclusão se reflete sobre a figura típica do artigo 237 do Código Penal para beneficiar o agente. No caso da norma penal em branco em sentido estrito, ou seja, quando o complemento provém de instância legislativa diversa, a retroatividade benéfica poderá ou não verificar-se.
José Henrique PIerangelli36 considera que a retroatividade não será admitida se a legislação complementar foi editada em situação de anormalidade econômica ou social, pois nesse caso o complemento integrador apresenta afinidade maior com a norma excepcional ou temporária.
O Supremo Tribunal Federal (RTJ 120/1.095) já entendeu que a regra ou ato integrativo da norma penal em branco para ser eficaz há de ser anterior à ação criminosa.
Correto o entendimento de que revogada a portaria que considerava tóxica a substância traficada pelo agente, declara-se extinta a punibilidade de fato pela retroatividade benigna (RJTRS 110/60).
Nessa linha de entendimento tem-se as conclusões de Augusto Frederico Gaffré Thompson 37, para quem sempre que a alteração ou supressão da norma completiva for favorável ao réu, será de aplicar-se a retroatividade:
a) quer se considere que não há supressão do crime, mas apenas lei mais benigna;
b) quer haja ou não sentença com trânsito em julgado;
c) quer seja a completiva ou norma-mãe temporária, ou excepcional ou não.
Mas vamos seguir a orientação sábia de Basileu Garcia38, para quem a retroatividade benéfica é sempre imperiosa, visto que a disposição extrapenal de que se entretece a norma penal em branco, impregna-se do cunho penal, como parte que passa a constituir da figura delituosa e que, aliás, como diz Paulo José da Costa Jr.39, é a mais consentânea com o preceito constitucional, razão pela qual a retroatividade benéfica se impõe.
Notas
1 Ali, no artigo 122-13, se preceituou que as penas estabelecidas ou agravadas na lei nova não se aplicam aos fatos anteriores.
2 COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao Código Penal, parte geral, volume I, 2ª edição, 1987, pág. 7.
3 O Anteprojeto levou em conta as questões: a imputabilidade penal, da exigibilidade de conduta diversa, da coação irresistível (o mal deve ser certo, grave, inevitável, irresistível, inesperado, atual, iminente, indeclinável ou absoluto e vital para o ameaçado), da obediência hierárquica a ordem legal, a excluir a culpabilidade, juntamente com as hipóteses de erro de proibição.
4 Aqui o Anteprojeto teve a ambição de resolver a questão do conflito da lei penal, seguindo o exemplo do Código de 1969.
5 CAMPOS BATALHA, Wilson de Souza. Direito intertemporal, Rio de Janeiro, Forense, 1980, pág. 488.
6 GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal, São Paulo, Saraiva, volume I, tomo I, 1956, pág. 148.
7 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, volume I, tomo I, pág. 128.
8 ROUBIER, Paul. Les conflicts de lois dans les temps. tomo II, pág.551 e seguintes.
9 Quanto ao momento da realização do fato delituoso, descrito em lei de forma estrita, deve-se observar a existência de três teorias: teoria da atividade (o momento da consecução típica do fato criminoso é o tempo da ação ou da omissão, mesmo que outro seja o do resultado); teoria do resultado (o momento do crime é o instante de seu resultado) e teoria mista ou da ubiqüidade. O artigo 4º do CP segue a teoria da atividade.
10 FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de direito penal: a nova parte geral, Rio de Janeiro, 1984, pág. 107.
11 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, volume I, titulo I, pág. 130.
12 COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao código penal, São Paulo, Saraiva, 2ª edição, 1987, pág. 8.
13 FREDERICO MARQUES, José. Tratado de direito penal, São Paulo, 1964, volume I, pág. 219.
14 GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal, São Paulo, 1980, volume I, título I, pág. 162. e seguintes.
15 GRISPIGNI, Filippo. Diritto penale italiano, Milano, 1952, volume I, pág. 355.
16 CAMPOS, Francisco. Exposição de motivos ao código penal.
17 ROUBIER, Paul. Droit Transitoire, pág. 486. e 487.
18 ARAGÃO, Antônio Moniz Sodré de. Curso de direito criminal, volume I, 1934, pág.165.
19 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, tomo V, pág. 247.
20 GARCIA, Basileu. Obra citada, pág. 150.
21 COSTA JR., Paulo José da. Obra citada, pág.9.
22 GARCIA, Basileu. Obra citada, pág.9.
23 NOBRE JR., Edilson Pereira. Cinco temas controvertidos de direito penal, in Revista de informação legislativa, v.28, nº 109, pág. 171. a 182, jan./mar. de 1991.
24 GAFFRÉE THOMPSON, Augusto Frederico. Lei penal em branco e retroatividade benéfica, Separada do volume 19 da Revista de direito da Procuradoria Geral do Estado da Guanabara, Rio de janeiro, 1968, pag. 224.
25 MAGGIORE, Giuseppe. Derecho penal, volume I, pág. 147/148, Bogotá, 1954.
26 COSTA JR., Paulo José da . obra citada, pág. 9.
27 GRECO, Rogério. Curso de direito penal, parte geral, páginas 26 e 27.
28 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, São Paulo, 1964, volume I, pág. 226.
29 Jesus, Damásio E de. Direito penal, parte geral, São Paulo, 1983, volume I, pág. 87.
30 JESUS, Damásio. E. de. Direito penal, São Paulo, São Paulo, Saraiva, 2002.
31 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, volume I, 2ª edição, pág. 228.
32 PIERANGELI, José Henrique. Escritos jurídico-penais, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1999.
33 JESUS. Damásio E. de. Código penal anotado, 2007, São Paulo, Saraiva.
34 STF, LEX 164/331, Relator Ministro Carlos Velloso, 2ª Turma.
35 LEIRIA. Antonio José Fabrício. Teoria e aplicação da lei penal, pág. 92.
36 PIERANGELLI. José Henrique. A norma penal em branco e a sua validade temporal, RJTJSP, 85:28.
37 THOMPSON. Augusto Frederico Gaffré. Obra citada, pág. 269.
38 GARCIA, Basileu. Obra citada, pag.. 167. e seguintes.
39 COSTA JR., Paulo José da. Obra citada, pág. 10.