Trabalho avulso: um dobre ressonante para um futuro tenebroso...

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Toma-se por exemplo as características do trabalho avulso, A discussão é estendida para outros ramos de atividades trabalhistas, em estado de precarização. Ante o avanço tecnológico, o que valeria a garantia de direitos, sem a garantia de emprego?

A Lei nº 12.023, de 27 de agosto de 2009, em seu parágrafo 1º, assim dispõe:

Art. 1o  As atividades de movimentação de mercadorias em geral exercidas por trabalhadores avulsos, para os fins desta Lei, são aquelas desenvolvidas em áreas urbanas ou rurais sem vínculo empregatício, mediante intermediação obrigatória do sindicato da categoria, por meio de Acordo ou Convenção Coletiva de Trabalho para execução das atividades. 

Parágrafo único.  A remuneração, a definição das funções, a composição de equipes e as demais condições de trabalho serão objeto de negociação entre as entidades representativas dos trabalhadores avulsos e dos tomadores de serviços.

Trata-se de pessoa física que presta serviços sem vínculo empregatício, com a intermediação necessária do sindicato da categoria.  A garantia de que possui os mesmos direitos que o trabalhador com carteira assinada, inclusive o recebimento de vale transporte nos dias trabalhados foi definida pelo TST, Segunda Turma. Tal entendimento deu-se a partir da análise do caso de um trabalhador portuário avulso, a quem foi negado o pagamento dos vales transportes dos dias efetivamente trabalhados. A empresa foi condenada com base no artigo 7º XXXIV da Constituição Federal.

São, pois, direitos dos trabalhadores urbanos e rurais a igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso  (incisos XX a XIV do artigo 7º da Constituição Federal). Os trabalhadores avulsos, sindicalizados ou não, terão direito, anualmente, ao gozo de um período de férias, sem prejuízo da respectiva remuneração. As férias dos trabalhadores avulsos serão de trinta dias corridos, salvo quando o montante do adicional for inferior ao salário base diário multiplicado por trinta, caso em que gozarão férias proporcionais.

Na dimensão do “dever ser” - tão cara ao Direito - a Constituição cidadã sinalizou a oportunidade de construção, no Brasil, de uma sociedade democrática. Contudo, à luz da história, não se levar em conta a lógica da organização capitalista é um equívoco que transforma o ideal em inatingível. Uma síntese deste processo indica que não apenas o trabalhador avulso como todos os trabalhadores brasileiros correm iminente risco.

Quatro grandes “crises” engendraram processos de homogeneização, nas décadas de 1930, 1950, 1970 e 1990, numa surpreendente regularidade de uma vintena de anos, embora não pareçam guardar as mesmas características, em que pesem expressarem a agudização crescente das tendências gerais do capitalismo. Seguindo o esquema de Mandel (1985), em torno dos anos 1930 e 1970 se iniciam ondas longas com tonalidade de estagnação, ao passo que nos anos 1950 se inicia uma onda longa com tonalidade expansionista, assim como nos anos 1990, avançando para um período não analisado pelo autor.

No argumento desse autor, a tecnologia ocupa um papel fundamental na passagem de uma onda longa à outra, com tonalidades diferentes. Nas décadas de 30 e 70, de estagnação, os fatos emblemáticos foram a grande “quebra” da bolsa de Nova Iorque, seguida da guerra, e os preços do petróleo, quando os riscos de desemprego eram evidentes, devido ao retrocesso na produção material. Nos anos, 1950, o avanço tecnológico foi surpreendente. O boom econômico permitiu o restabelecimento da capacidade produtiva mundial respeitando a diversidade do mercado consumidor.

Já na década de 1990, iniciada como um momento de expansão do capital e justificada pelo ideário neoliberal, a análise torna-se mais complexa e delicada, inclusive porque se trata de um processo em andamento. Na última década do século XX, foi possível verificar um incremento tecnológico, que caracterizaria uma onda longa de tonalidade expansionista, não apenas implicando a mudança dos processos de produção existentes, mas também a criação de novos bens e serviços de consumo, propiciando o surgimento de novos ramos de produção como, aliás, ocorre em outras revoluções tecnológicas.

Entre os aspectos que caracterizariam o capitalismo contemporâneo, a terceirização tornou-se estrutural, com a fragmentação e a dispersão de todas as esferas da produção. Fundamentalmente resultante do desenvolvimento das forças produtivas que autonomiza e multiplica atividades de intermediação, a terceirização também diversifica o consumo, expandindo o setor de serviços. Em princípio os avanços tecnológicos tendem a liberar mão-de-obra, podendo comprometer a produção capitalista. Entretanto, como afirma Singer (1985, p. XXXII):

Com o grande aumento do exército industrial de reserva cresceu a disponibilidade de força de trabalho, permitindo o ressurgimento de formas arcaicas de exploração, tais como empresas familiares e trabalho a domicílio (grifo meu). Essas formas muitas vezes são estimuladas por capitais monopólicos, que demitem operários para subcontratar seus serviços como fornecedores externos. Como resultado, cai o nível de remuneração dos trabalhadores e se recupera a taxa de mais-valia e mais ainda, graças à menor composição orgânica do capital dos ‘novos setores’, a taxa de lucro.

Para o enfrentamento da crise, foi desencadeado um processo de reorganização do capital, buscando novas respostas para a retomada da acumulação. Esse processo denominado de globalização, agudizou as tendências percebidas no início do século XX, quando o capital financeiro assumiu a hegemonia (CHESNAIS, 1996; IANNI, 2004; HOBSBAWN, 1995).

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O desemprego estrutural; a terceirização e fragmentação das esferas produtivas; a rejeição da presença estatal e consequente privatização estrutural; a transnacionalização da economia implicando a transferência da base industrial dos países ricos para os países pobres, tendo como atrativo a força de trabalho a baixo custo; e a existência de bolsões de riqueza e pobreza substituindo a nomenclatura que designava a diferença entre países do primeiro e terceiro mundos, são algumas das condições materiais que o ideário neoliberal tenta justificar, dissimulando o fato de serem formas contemporâneas de exploração e dominação.

Organismos internacionais como o FMI e o Banco Mundial, que se tornaram o centro econômico e político global, ao adotarem esse ideário, pressionaram os países pobres a desarmar uma rede de proteção que, segundo análises de matiz ideológico diverso, ampliou a miséria expulsando dos processos produtivos um contingente humano de dimensões gigantescas e promovendo maior exploração daqueles que se mantêm ocupados.  Como decorrência do desemprego estrutural, o trabalho é desregulamentado, desenvolvido em situações ainda mais precárias, ampliando-se a terceirização e as atividades temporárias e ilegais (grifo meu). Isso implica a perda de conquistas históricas dos trabalhadores que, sob ameaça de não poder garantir a sobrevivência, aceitam as condições impostas, instaurando-se um processo desfavorável de negociação (grifo meu).

O avanço das forças produtivas torna cada vez menos necessário o trabalho vivo, incorpora trabalho morto nas máquinas e equipamentos eletrônicos, simplificando progressivamente o processo de trabalho. Essa simplificação dispensa trabalhadores qualificados, promovendo a especialização e, com ela, a perda da compreensão do processo de produção da existência. Mesmo admitindo-se que a produtividade daqueles que conseguirem trabalho possa ser aumentada com educação, “eles estarão sempre concorrendo entre si, e o salário dos que consigam empregar-se resultará antes de um processo de negociação em condições desfavoráveis do que de sua produtividade” (CORAGGIO, 1996, p.107).

Sob a alegação de que as pessoas estão sendo expulsas do mercado de trabalho, por não estarem qualificadas para as suas demandas, a educação passa a ser apontada como solução para a crise. Contudo, mesmo que existam funções que exijam maior domínio dos trabalhadores (grifo meu), a qualificação exigida pelo mercado de trabalho é antes uma justificativa de sua expulsão e de sua não absorção ao mercado. Maior escolarização é preferida quando, em face de pequena demanda, a oferta de força de trabalho é grande. O que será do trabalhador avulso, das empregadas domésticas e de tantos outros ramos do trabalho e diferentes qualificações?

Ante este quadro, o que vale a garantia de diretos trabalhistas, sem a garantia de emprego? É falácia que se pode combater tão-somente se a realidade histórica for compreendida, com lucidez. Um novo projeto de sociedade poderá ser construído a partir dessa constatação? No momento, é apenas utopia a ser perseguida. A tendência mantida, o futuro será tenebroso.

Referências

BRASIL.  Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo : Xamã, 1996.

CORAGGIO, José Luis. Propostas do Banco Mundial para a educação: sentido oculto ou problemas de concepção? In: TOMMASI; WARDE; HADDAD (orgs.) O Banco Mundial e as políticas educacionais. São Paulo: Cortez, 1996.p.75-123.

HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos - O breve século XX, 1914-1991.Tradução de Marcos Santarrita; revisão técnica  Maria Célia Paoli. 2ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

IANNI, O. A era do globalismo. 8ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. Apresentação de Paul Singer. Tradução de Carlos Eduardo S. Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah de A. Azevedo. 2a ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985 (Os economistas).

SINGER, Paul. Apresentação. In: MANDEL, E. Op.cit., 1985. p. VII-XXXIII.

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Sobre a autora
Ana Lúcia Eduardo Farah Valente

Titular da UnB. Pós-Doutorado em Antropologia da Educação (Bélgica). Pós- Doutorado em Economia UnB. Graduada, Mestre e Doutora pela USP.

Informações sobre o texto

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